terça-feira, 10 de novembro de 2015

NAPALM

Primeiro lugar no V Concurso de Contos Cidade de Lins/SP. 2015



“NAPALM”

Já no carro, em seu percurso de volta, uma profunda agonia tomou conta do Major. Vivenciara nesse onze de agosto um  dia em que a soma das perdas aniquila e derrota o mais resistente do mortais. E antes mesmo que chegasse ao Instituto Médico Legal – o IML,  onde faria o reconhecimento do corpo, o botão do rádio sentiu a pressão dos seus dedos, pois, ali, agora, ele necessitava  do silêncio como se fosse o próprio  ar que respirava.  E sob aquele vazio volumoso e  extremamente incômodo, o Major Benhur,  culpando a  si mesmo pela obediência cega  às  normas e às ordens da sua Corporação,  lembrara-se de  Jeff – o Chefe do Laboratório Químico nos USA,  responsável pela preparação e envio do napalm às frentes americanas no Vietnã. Também ele – recordava Benhur – também ele, Jeff, cumprira com rigor a  sua missão de apoio incondicional  às políticas  de  guerra, entretanto, experimentara  o grito antibélico na própria pele, na própria alma, diante das  enfermidades, mortes e do terror causados por sua presteza e competência!... Era assim que o Major se sentia à entrada do estacionamento: desacreditado, sem forças e desfalecido, e a um passo de tomar a mesma decisão de Jeff.    
Naquela manhã, quando o  Major  apertou fortemente o celular sob sua mão, já deixava  transparecer uma preocupação  incomum  para o início do  seu dia; era visível que se perturbara com o  telefonema,  e agora, ali, retrocedia o tempo,  avaliando  a conversa com o interlocutor.  Quem passasse à curta distância ouviria o Major se expressar  em tom de bronca ou de censura:  “ - Ah! Dona Nara!... Ah! Dona Nara!...”  O Major entendera de imediato que a mãe, dona Nara, ou talvez alguma amiga dela, inocentemente, teria  colaborado para que o general Juce tivesse acesso ao seu número particular... e da sua parte, o Major sabia que o general sempre fora um  obstinado, e  a conseqüência  disso é que se  transformara, hoje, no arqui-inimigo da Segurança Pública, o principal homem à frente do crime organizado que invadira todo o sistema prisional no estado.  Já na sala, ensaiando os preparativos para a reunião de cúpula, enquanto rodopiava o lápis entre os dedos, gesto que lhe servia para  estimular o pensamento, o Major Benhur  lembrou-se da sua habilidade para o desenho. Por essa razão,  faria surgir  sobre a folha em branco, o semblante perfeito do  filho Marcelo, revelando, ali,  para si mesmo, a preocupação  e o desconforto que vivenciava no seu íntimo, que em nada lembrava a noite em que se sentira atingido pelas  farpas doces da felicidade, quando, no  grande salão de eventos, sob  aplausos, o filho Marcelo  recebia uma destacada homenagem da Academia de Polícia, de onde saía  com o  reconhecimento de  todo o corpo docente. Nessa noite, o sorriso do Comandante Benhur   triunfou aos olhos de todos.   O que despertou Marcelo para o sentido da farda, foi a sua relação amistosa com  a  comunidade. A base móvel  dava-lhe o respeito  e  o compromisso de se fazer algo pelos moradores.  Era inegável, portanto,  que na Unidade Móvel da praça Joana D’Arc,  todos o enxergassem como  um amigo e excelente policial.   Para o  Comandante, no entanto,  sempre causara incômodo essa atitude do filho, pois imaginava para ele, um futuro mais próximo ao poder,  talvez uma Secretaria, a Diretoria de Operações, uma  Regional...  E mais – para o Comandante, a  base móvel estava aquém do filho e se revelava cada vez mais  perigosa.  “- Um alvo  a céu aberto!”  - afirmava.    O filho, porém,  sustentava a firme convicção de se fazer por si, de subir pelos seus próprios méritos,  ainda que todos os amigos o instigassem  - “mas você é o herdeiro do homem mais forte da Polícia”... Mesmo revelando uma  preocupação extrema pelo filho, no fundo, no fundo, o Major Benhur admirava aquela forte personalidade.  Entretanto, na manhã de hoje, o telefonema do general Juce fora claro:  incluía o policial Marcelo como moeda-de-troca nas exigências que fazia  para a saída de presos no Dia das Mães. Mesmo transtornado diante dessa morte anunciada, e sem saber como,  o Major, ainda  encontrou forças para reviver o  amigo  de infância,  ou melhor, a história da convivência de  ambos até à adolescência, quando tomaram rumos distintos.  Os pais de Juce e Benhur eram amigos, e  praticamente da mesma idade.  Quando se casaram, logo encomendaram os  filhos  que, coincidentemente,  nasceriam no  mesmo dia onze  de agosto.  Para alegria das famílias, os meninos  Benhur e Júlio César,  por  muito tempo, comemoraram juntos os festejos de  aniversário.  Vale dizer que ambos – Benhur e Juce,  tiveram  suas histórias de vida regidas por uma epopéia familiar. Dona  Nara, mãe de Benhur e Dona Laura, mãe de  Júlio César, quando grávidas,  debruçaram-se sobre  relatos  de  heróis medievais,  à cata de nomes que mais se fizessem apropriados ao primeiro filho.  Isso, tão logo o ultrassom acabara de confirmar o sexo das crianças!...  Dali à escolha dos nomes, o tempo fora rápido.  Empolgada com a vida de um rico mercador Judeu, traído e escravizado pelo antigo amigo romano, mas que se esforçara pela conquista da  liberdade,  Narinha não vacilou:   - Benhur!...  – disse à amiga, contornando a barriga, delicadamente, com as mãos,  e reiterando, inúmeras vezes, com amplo  sorriso nos lábios, o nome épico,  para que o próprio bebê  pudesse ouvi-la   - Benhur!... Benhur!...
- Júlio César, mas sem o Caio  -  de Caio não gosto!... Fica Júlio César!... dissera Laurinha,  colocando um ponto final à sua procura.  Júlio César!... E dissera de forma empolgadíssima, especialmente, porque o  achado era excelente:  um  general importante do Império Romano, um homem audacioso ... enfim,  um homem aguerrido!     “- E que melhor coisa o “Juce”  iria querer, hein?  -  acentuava, alegremente,  Laurinha,  com a certeza de que o  apelido criado pela junção das primeiras sílabas emprestava  prestígio e simpatia ao seu  grande general romano:   JU-CE!... -  e completava:- Juce é tão bonito, você não acha,  Narinha?... Dona Laura, mais que dona Nara,  pouco a pouco, apresentava-se com  uma habilidade acentuada para “Mãe”.  Parecia ter sido feita sob medida para a maternidade.  E por isso, pode-se dizer que adotara o filho de Narinha em seu lar, e reiterava, orgulhosamente:  amava Benhur, gostava do jeito compenetrado daquele  menino, e via para ele – mais que no próprio filho – um brilhante futuro!...    Daí pra frente o mundo dera voltas e mais voltas.  E do desgaste na  relação entre as duas crianças surgiram as brigas e desavenças entre os  dois adolescentes.  E  do desentendimento crescente entre ambos, aparecera o conflito latente  dos homens feitos:  Benhur, o major Benhur, hoje estava no   Comando Geral da Segurança; e  Júlio César, o Juce, o general Juce, o amigo de infância, hoje, era o  homem forte do tráfico,  chefe da maior organização criminosa implantada nos presídios.  Mas tiveram  por onde serem rivais  – ponderou o Major Benhur,  ainda com o lápis em punho,  lembrando-se de um antigo  episódio, quando, cada qual a sua maneira,  ainda galgava o seu espaço; o major Benhur surgira na corporação dando os primeiros passos no Presídio Disciplinar – a menina dos olhos da Segurança Pública -  de gestos fortes e irascível em decisões, Benhur  logo ganharia, internamente, o apelido que lhe faria jus por muito tempo:  – Dá-Sem-Dó!...  Por sua vez, ainda conhecido como   “Fonte Luminosa”,  Juce  apresentara-se à frente dos detentos com uma liderança ímpar  e criativa, capaz de articular  uma fuga memorável; ainda que  tivesse acabado  de forma  trágica, o  episódio somou pontos no mundo do crime,  dando origem  ao destemido JUCE, o general JUCE, como o apelidaram, pois com a inteligência e a audácia dos aguerridos teria  dado   liberdade a mais de uma centena de internos, não fora  o desabamento  imponderável do túnel que soterrara  a maior parte dos fugitivos.  Juce escapara do  incidente, no entanto, líder nato,  e temendo a prisão e transferência, enfrentaria  pela primeira vez, o antigo amigo, o Major Benhur,   por força de uma  ação de seqüestro sob seu comando.   Antes que se pudesse contar até três na velocidade do som,  o Major Benhur e sua tropa fizeram tombar a porta da sala onde Juce mantinha a refém,   entretanto,  recuaram temerosos diante do que viram. O general Juce desenhara um cenário  que exigia atenção e cuidados;  mantinha a Assistente Social junto  à mesa, deixando visível a faca ao  alcance da mão.   O Major Benhur pode ler nos olhos de Juce as artimanhas de um golpe anunciado, por isso, manteve-se em silêncio, sinalizando  à  tropa o posicionamento em círculo. Estava claro que Juce   levaria  essa   infâmia ao fim do mundo, pois mantinha  a refém a uma distância precisa, inibindo qualquer iniciativa precipitada.  Enquanto o   silêncio se prolongava,  o Major Benhur  tentava decifrar aquele cenário estratégico:  o episódio levado  às últimas conseqüências seria capaz de transformar o general Juce,  de  bandido a herói, pois  os tiros sobrariam em maior  parte para a própria  Assistente Social.  Sobre a mesa,  a faca  reluzia diante  de todos,  parecendo dizer que estava à espera, que aguardava  ordens  para cumprir o seu destino, ou seja, furar bem fundo a  jugular da  Assistente. Refém do silêncio, aos poucos,  o Major Benhur deixaria   ver em sua face os contornos de um sorriso enigmático, transformando-se paulatinamente no impulsivo Dá-Sem-Dó.  Era evidente que precisava agir  tal qual aprendera no comando da Polícia.  Sintonizada,  a tropa de choque interpretava aquele  código  em ordens  de Atenção, Preparar, Fogo!.... Nesse instante, porém,   o que se ouviu a partir dali,  foi um  grito ímpar. Um grito de mulher que, instintivamente,  decifrava o enigma e doava-se de corpo e alma aos seus rebentos.  De braços abertos, como um  sinal da cruz a intimidar os Fariseus,  a  Assistente  compreendeu que nenhum dos dois  cederia à intenção e ao gesto.  Cristãos todos,  o general Juce e  Dá-Sem-Dó recuaram, ambos,  intimidados. A  tropa baixou as armas. Juce afastou-se da faca.  E com a delicadeza de uma mãe, coube à  refém indicar um caminho  seguro para todos.   Dá-Sem-Dó  e o general Juce  acenaram – antagônicos -  com uma certa reverência diante dessa Nossa Senhora da Salvação.
Superado o incidente, seguiram, ambos,  cada qual o seu caminho. E então, ali, agora, sobre a mesa,  sob as mãos hábeis do  exímio desenhista, Major Benhur,   surgiria   no papel  o rosto  duro e grotesco do  general  romano Júlio César – aliado às palavras do telefonema daquela manhã;   “- ...Você me conhece, Benhur,  ou facilita a saída dos meus meninos  ou ponho fim na carreira do seu  moleque ... o que acha?   E  sem   dar qualquer trégua,  Juce acentuaria a data comemorativa; - Ah! Benhur... Dona Laura manda lembranças,  nunca esquece do nosso aniversário, você sabe! ...e  de mais a mais,  você sempre foi o xodó da  Velha, não é!?...   
O Major Benhur,  com as mãos ágeis e uma destreza incomum,  pouco a pouco,   impregnava a imagem do general  romano, Juce,  com  traços  agressivos,  Entretanto,  por mais que o rejeitasse,   não poderia deixar de  vê-lo  também nas cores puras da   infância: o corajoso Juce,  de semblante  inteligente, ágil e esperto... o estrategista Juce enganando  a todos na brincadeira de “Salva-Cadeia”...Já não havia mais a quem pegar, todos os meninos estavam presos na corrente indiana,  faltando apenas o general romano Júlio César... e nada do Juce aparecer pra libertar os amigos. Houve até quem o chamasse de general traidor!... Ali  na rua, próxima à praça,  apenas alguns bóias-frias solitários chegando do trabalho com seus apetrechos e enxadas às costas... Pois, exatamente quando passavam pela “cadeia” surgiria o aguerrido Juce, disfarçado num desses trabalhadores e, tranquilamente, daria o salvo-conduto a todos os meninos  naquela prisão inventada pelo imaginário infantil!... 
“- Bandido também tem Mãe, não é,  Comandante!...”
Já na reunião de cúpula, o Major Benhur  tentara esfriar os ânimos dos seus pares de linha mais dura sobre a transferência de detentos para presídios de segurança máxima no interior do estado.  Mas a sua ênfase  recaía quase sempre sobre a proposta de liberação  de presos no Dia das Mães. Era evidente que, mesmo  amaldiçoando Juce,  o Major tentasse ganhar tempo para reelaborar o  projeto destinado aos detentos de alta periculosidade.  Entretido nessa tese,  a  referência às genitoras, sem que o Major  percebesse, fora motivo de ironia entre os homens da mesa oval. A liberação de presos  no feriado da Mães  ganhara desdobramentos. Os gráficos da ala mais conservadora apontavam para um número excessivo de presidiários  com acesso ao benefício; o que traria pânico e insegurança  à população, além de descrédito à própria esfera da Polícia. Depois de muitos entreveros,  decidiu-se  por nenhuma liberação.  Voto vencido,  o  Major Benhur  deglutia o resultado; e o seu desconforto saltava aos olhos mais atentos de alguns membros da Corporação, como o Capitão Jardim, que lhe indagara:  - Está tudo bem, Major!?...       Ao deixar a sala, o Major  entendera que lhe restava, agora,  somente correr contra o tempo; restava-lhe   acionar o celular do filho  com  a  autoridade de Comandante e Pai.  Por essa razão dirigia-se, pessoalmente, ao  Controle Geral  para informar sobre   o desativamento  da  base Joana D’Arc.  Arriscava-se,  é verdade. Corria riscos,    porém,   era visível que  temia  pela presença do filho naquele local, pois o  recado do general Juce fora claro.  Em seu álibi, o major Benhur justificaria a iniciativa como um estudo para futuros desativamentos  dessas unidades!...   Mas,  o tempo fora curto. Curtíssimo até.   Antes mesmo que o Comandante Benhur dissesse “espera, Juce”  na velocidade digital  do próprio  celular,   a voz do  aguerrido general romano crescia poderosa, atingindo contornos que desfaziam qualquer acordo,  deixando, inclusive, suspeitas sobre o  vazamento da  operação Dia das Mães.   A voz  seca de Juce soara como   um   rojão, sinalizando   um único caminho de entendimento. Emudecido, Benhur sentia  no próprio corpo,  a pressão de um  incômodo  e dolorido soco  que o levava a  nocaute  no chão de um ringue:   “   -  Não brinco, Benhur!... Não brinco!.”.- finalizou Juce.   Atropelando  os seus próprios movimentos,  o major Benhur  avançaria  corredor adentro  no suntuoso prédio da Secretaria, enquanto  tentava, já, pela quinta vez,  acionar  o celular do filho, a essa hora  sem qualquer resposta.   Benhur  seguiria atordoado, e  quase em transe,  direto às  salas  do  Comando, onde pode  confirmar o que  o general romano, Juce,  já havia lhe  soprado no telefonema:  “ - A base da Joana D’Arc foi atacada, Comandante .. e temos vítimas!.. Lamento, Major, lamento!...
As palavras do oficial de plantão soaram como um petardo arrasador,  por isso,   quem olhasse para o  Comandante  Benhur  de volta à  sala,  e o visse puxar a gaveta e desta retirar a arma e o silenciador,   conferindo  o seu carregamento, por certo não conseguiria descrever  aquela estranha fisionomia.  O que se via ali,  era  um rosto com  marcas que mais pareciam frinchas numa parede nua;  entretanto, eram visíveis no Major, os  traços fortes,  acentuando o que se pode chamar de raiva, ódio e um  clamor, impiedoso,  de vingança;   quem por ventura passasse ali bem próximo, ouviria um nome   reiterado de forma insistente  nos lábios do Major Benhur:  - Dona Laurinha!..   O carro do Major  Benhur fazia as manobras pelas ruas estreitas do bairro, onde observara  que,  praticamente, ainda  se mantinha a mesma geografia dos tempos idos. Benhur ladeava o veículo e, por vezes, parava-o para conferir o nome da rua,  ou ainda,  para ver de perto o pé-de-amora na casa de  dona Rosa,  fruta que fora objeto de desejo da sua infância... No entanto, hoje, ali,  Benhur direcionava o seu foco para a antiga casa azul de portão amarelo, quando se incomodara ao acionar a campainha, atendida, sem demora, e que colocaria  Dona Laura, Dona Laurinha,  já bem idosa   – a doce mãe do general romano  Júlio César  - o Juce -  bem  à sua frente,   a dois passos de distância, quando  muito, irradiando uma esfuziante recepção capaz de inundar a própria rua:     - Benhur...meu menino!... e Narinha, como vai? – Quanto tempo!... Que bom te ver ..Parabéns pra você e pro Juce!...
Por instantes, o Major sentiria  dentro de si,  a voz   melodiosa da mãe de Juce como uma punhalada que o perfurava até a  alma.   Entretanto, compenetrado e militarmente circunspecto,  diria para si mesmo, que  não haveria volta. Dona Laurinha que o perdoasse, mas não poderia transigir no seu intento.  Seu recuo  seria  tão improvável  quanto a ordem de  Juce  contra  a base móvel do seu filho  Marcelo. Enquanto a a imagem de Marcelo surgia  em sua mente pedindo-lhe   um  socorro intermitente até  se transformar  num sussurro que sumia dos próprios  lábios, a mão do Major Benhur seguia, deliberadamente  ao encontro da arma;  a sua  respiração crescia ofegante, mas não o impedia de assentir para si mesmo, que Dona Laurinha carregaria com ela, para sempre,  o vale-tudo entre os rivais,  o peso insuportável  da  retaliação  entre polícia e bandido;  entretanto, antes que o Major levantasse o revólver à altura exata para o disparo, ouviu-se um ruído no alpendre, marcadamente, a  voz enfática e reticente do general Juce:   “ Mãe!...Mãe... está por aí?”     Aquela presença inesperada, colocaria ali, mais uma vez,  frente a frente,  o general romano Julio César, o Juce, e  Benhur, o Major Benhur. Entre eles, agora,  Dona Laurinha.  A mãe de ambos, que, eufórica, quebraria o incômodo silêncio.  A visita  dos filhos queridos, no dia do aniversário,  empolgava-a como nunca;  entretanto, ali,  à curta distância,  os olhos do general Juce fulminavam como um punhal  o desafeto Benhur,   e por certo,  perfurando-o, impiedosamente, com aquelas palavras-lâminas:   Dona Laurinha, Benhur?... você  ia atirar em Dona Laurinha... a Mãe que sempre te acolheu?...   Os olhos do major Benhur, por sua vez, transformavam-se, ali,  em um potente explosivo, capaz de  esmigalhar quem se opusesse à sua frente:     - E Marcelo, Juce, e Marcelo? ...  você matou  o  meu único filho!....    Com os olhares cruzados, faiscantes e estratégicos, Benhur e Juce  definiam  a certeza do primeiro tiro, que, no entanto, fora   interrompido por Dona Laurinha: . - O que houve, brigaram?  - dissera ela, ainda  ligeiramente desorientada, porém,   capaz de perceber que nenhum dos filhos  arriscaria a romper  o insuportável silêncio... E então, ali, em fração de segundos, antes que as armas cumprissem o seu ritual... o  que se ouviu,   enquanto Benhur e Juce decifravam a estratégia  que os levaria a eliminação de um ou de outro... enquanto Benhur e Juce,  reféns da tragédia,  deixavam ver em suas faces os contornos  de um  final trágico e inadiável,...  enquanto  ambos interpretavam os códigos da vida como  ordens  de atenção, preparar, fogo! ....   nesse instante, nesse fatídico instante,   o que se ouviu foi o grito daquela Mãe.   Um grito de mulher que, instintivamente,  doava-se  de corpo e alma  às suas crias.   De braços abertos, como um  sinal da cruz a intimidar os  Fariseus  naquele templo, Dona Laurinha   fez valer a  experiência  de quem percebe como inevitáveis,   a intenção e o gesto.  Cristãos todos,  o general Juce e o Comandante Benhur recuaram  intimidados. Ambos com  o desconforto íntimo, abaixaram os olhos e as armas diante daquela Salve Rainha, Mãe da misericórdia.  Sem dizer qualquer palavra, mas  com a delicadeza de uma Santa, Dona Laurinha apontou-lhes o caminho seguro.  O Major Benhur com a respiração entrecortada e ofegante, deixava visível  a dor latente em sua alma carregada de ressentimentos: o pior deles, o pior de todos, ou seja, a decisão de  matar Dona Laurinha para se vingar do general Juce!... Cabisbaixo, e em silêncio sofrido, o Major Benhur afastou-se lentamente buscando a saída como uma fuga desesperada. O general Juce reteve o seu  ímpeto sob o comando de  dona Laura.   E então, ali, rapidamente, Benhur e Juce acenaram entre si,  como um pacto, uma trégua, um sinal de  reverência   diante daquela  redentora,  daquela  Nossa Senhora da Salvação.
As luzes do estacionamento do IML, onde reconheceria o corpo do filho, já  deixavam  marcas sobre a  noite, quando o Major Benhur - com gestos demorados, carregados de tensão daquele dia  onze de agosto,  e minado em suas últimas resistências, retirou  a  arma e o silenciador  do porta-luvas.  Instantes depois,  quem  olhasse para o  veículo de luzes apagadas -  sob um som abafado, quase em surdina - notaria o clarão, como o napalm incendiário, um risco de luz, aquele  brilho ágil e metálico de um tiro  ricocheteando no  interior do carro, tal qual fizera o Engenheiro Jeff O. Stanford no cumprimento do seu dever.



Texto:  Celso Lopes