segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

OPERAÇÃO DOM QUIXOTE - Conto de CELSO LOPES

 


 OPERAÇÃO D. QUIXOTE   -  Conto de Celso Lopes

 

“Há o amor, é claro. Mas há a vida, sua inimiga.”

                                                                   Jean Anovith  (dramaturgo e cineasta francês

 

 A armadilha do Miranda já estava preparada. Fora somente o tempo de rodopiar a chave no cadeado da porta de enrolar que, com a devida precaução não deveria ser tão pesada para se levantar quanto se mostrava, embora tal sintoma justificasse a qualidade do material, o que evitava perfurações ou eventuais arrombamentos. Pois pareceu tudo com essa exatidão, quando os policiais à paisana surgiram fechando o cerco. Enquanto os agentes o algemavam em alvoroço festivo de comemoração, Miranda, num silêncio constrangedor, mantinha-se acocorado no estreito cômodo, com um olhar cabisbaixo e desolado diante daquela vasculhação,  acompanhando os chutes fortes e certeiros  que derrubavam seus cavaletes, latas de tintas, pincéis,  tecidos, a mesinha, uma  banqueta e diversos outros apetrechos, além de notas e papeis do seu local de trabalho.  Aos gritos e pontapés,  os agentes intimavam o pintor de faixas:

- Vamos, seu merda,  me dá um nome!...Vamos, me dá um nome!...

Lá fora, quase uma dezena de carros policiais, que mais pareciam infernizar o trânsito àquela hora da manhã,  com suas sirenes ligadas, aguardavam a saída do pintor,  ainda bem assustado e  bem  temeroso dos novos e futuros acontecimentos.  Era visível que se fosse um Dom Quixote nessa hora, Miranda, o ex-tipógrafo da Gráfica Moderna,  transformaria seus pincéis em lanças pontiagudas e espadas implacáveis;  dos seus lápis inocentes, que antes  se acomodavam no porta-trecos sobre a mesinha, Miranda  faria  as zarabatanas com setas envenenadas pelo curare, ou transformava-as em atiradeiras de miras precisas... Quem sabe ainda, dali, do seu ‘ateliê de pintura’,  um cubículo com paredes descascadas, e com a estreiteza de dois metros  por quatro e pouco, onde  mal  cabiam as suas  faixas estendidas, quem sabe dali,  do seu minúsculo cômodo sublocado nas imediações do centro da cidade, Miranda,  com seus pincéis ágeis, criaria  os vestígios de um campo de relvas, feito uma clareira aberta em meio à floresta, para que pudesse,  como o Cavaleiro Andante, combater o  bom combate e  escorraçar de vez e para sempre os  seus carrancudos  opressores; então,   enfrentaria  os agentes, seus algozes, em campo aberto,  mas  antes, claro,  anunciaria  a façanha  ao som de trombetas e clarins, como uma aventura necessária à sua  vida tão carente de novas dimensões até aquele maldito dia...   Miranda, por certo, usaria  para si,  da mesma descrição  que o “Manco de Lepanto” dirigira a si mesmo:  “este que aqui vês, de rosto pontiagudo, de cabelo castanho, testa lisa e desembaraçada, de olhos alegres e nariz curvo (...)  os bigodes grandes, a boca pequena, os dentes nem miúdos nem grandes, porque não tem senão seis, e estes mal acondicionados e pior postos, porque não têm correspondência uns com os outros...

 Aprisionado entre as paredes daquele estreito corredor, em meio a seus objetos  de trabalho, a essa hora, jogados e  espalhados pelo chão, Miranda, depois de atirado ao solo várias vezes pelos  Agentes, e  já cansado da pancadaria vinda das mãos fortes daquele grupo de afronta, agora,  prestava-se a ouvir os apelos insistentes para que ele, Miranda, abrisse o bico, para que ele, Miranda, desovasse tudo; Os Agentes insistiam para que ele, Miranda, desse com a língua nos dentes; para que ele, Miranda,  entregasse a eles,  os Agentes, alguém de cima: o seu Chefe, o seu Líder, o Mandante, o Mandão, o Déspota!...  Os Agentes pressionavam para que ele, Miranda,  caguetasse um nome;   se preciso, agisse sem pena, sem piedade e sem dó nenhum... Ali, como um bicho enjaulado, Miranda, quase em transe, quase em comoção,  completaria para si mesmo de uma maneira ‘nada exemplar’:  Este que aqui está,  digo, este que aqui vês, trôpego, arruinado,  exposto hoje ao vexame público, desenganado, um miserável  traste em mãos alheias,  um cachorro morto que continua a ser chutado, sem que qualquer culpa tenha nesta vida... este,  este sou eu,  Miranda Martins, cujo primeiro emprego foi o de ‘Estafeta’ na Gráfica Moderna de São Paulo. E depois quase uma vida como  impressor gráfico, como tipógrafo.  Eu, o Miranda, a quem sempre, todos diziam:  Anda, Miranda, anda!...” 

 Miranda lembrou-se, ainda,  que ao compor os seus  textos na bancada da Gráfica Moderna, na maioria das vezes sozinho,  sentia  um medo danado da morte, pois temia que um dia morresse ali,  solitário e esquecido,  sob o som alto e continuado, no ato contínua de uma   impressora tipográfica Minerva trabalhando a todo vapor.    Entretanto, nada disso acontecera, mas o receio da morte rondava-o novamente, agora,  diante daqueles carrascos à sua frente.  Então, como quem quisesse ganhar tempo, sabedor que “o sapo não pula por boniteza, mas por precisão”,  Miranda, sabe-se lá como,  esclarecia aos Agentes que na Moderna aprendera,  por exemplo,  que Ottmar Mergenthaler, o Otto, dizia o Miranda, fora  o inventor da ‘Linotipo’, nome aportuguesado de uma máquina de composição, que fundia em chumbo, linhas inteiras de ‘tipos’ em um único bloco. Na verdade, sabe-se lá como,  Miranda avisava que  havia quem  a chamasse de “A oitava maravilha do mundo!”... Diante da insistência de um Agente mais brando, Miranda explicou-lhe  que ‘tipo’  se referia às letras do alfabeto, aos sinais gráficos  e a todos os outros caracteres usados  para criar e formar as palavras, sentenças, blocos de texto, etcetera e tal.   Afirmou também para os Agentes,  que a sua função, antes da Linotipo,  era organizar  as letras para o bloco de impressão nas maquinas tipográficas, por isso, fora antes, um tipógrafo.  E assim que as antigas impressoras perderam lugar para as modernas offsets, ele, Miranda,  perdera também, o  emprego na Gráfica Moderna de São Paulo... Miranda reiterava para os  homens da lei,  que hoje era apenas um  pintor de faixas, quer dizer, fazia também  alguns banners,  algumas placas, além de cartazes e painéis...  E, ali,  na frente de todos eles, sabe-se lá como,   ainda jurava  por Deus nosso Senhor e  pela Santíssima Nossa Senhora Aparecida  que no dia de ontem fizera, sim, fizera aquela faixa inocente a que eles se referiam.   Uma faixa com uma  mensagem de amor.  Miranda esclareceu que fez  o serviço a pedido de um Motoqueiro,  que nem mesmo o capacete havia tirado da cabeça, por isso, ele, Miranda, não vira sequer o rosto do homem, que nem era  muito baixo nem era muito alto.  A moto, aquela sim, ficara ali parada, ali onde agora estão as viaturas; uma moto verde oliva, ali mesmo  junto ao meio-fio da rua.   Mas os Agentes, de imediato,  retrucaram que tudo bem, Seo Miranda, entretanto, a mensagem, saiba o senhor,  era um  SALVE GERAL” para uma contra-ofensiva comandada pelos presos diante da proibição de visitas íntimas no presídio. Havia quem dissesse também, Seo Miranda,   que era uma represália à linha dura do governo e do Comando da Segurança, que impediram a  saída  livre do Dia das Mães para os  detentos do semiaberto.  Portanto, afirmaram os Agentes, que ele, Miranda Martins, a pessoa jurídica, fora entregue aos policiais como o local onde se produziu  o “SALVE”, quer dizer,  a faixa solicitada pelo homem da  moto.  Agora, ele, “Miranda Martins, a pessoa física, dava pinta de não querer facilitar as coisas. Na verdade, enrolava e dificultava, até.  Custasse o que custasse, mas tinha de ter um nome.   Assim, disseram os Agentes,  tudo ficaria  muito mais  simples, não é mesmo, Seo Miranda?...  Afinal,  algo não estava se encaixando bem, disseram os Agentes.  Faltavam peças neste quebra-cabeças. Faltavam letras  nesse texto. A frase completa não fazia sentido, diziam. Estava sem coerência. Toda oração merecia  sujeito e predicado,  Seo Miranda de merda!... Algo está em falta nesse seu discurso,  seja uma crase, um  acento grave,  ou  uma  linha a mais que realce os contornos dessa historiazinha mal contada, Seo Miranda imprestável!... Por isso, Mano, abre o bico!... Caguete, alguém, vamos!... Vomite uma oração com início, meio e fim,  seu bosta!...   Aponte  o caminho útil  dessa narrativa;  Diz aí, Seo Miranda, quem é o protagonista, o herói, o mocinho?... o Cjefe do crime;  onde anda o sujeito, Seo Miranda?...   Não faça nós, os Agentes, perdermos a nossa compostura e leveza.  Vamos, seu merda, sopre  um nome,  me dá um nome, um nome!...Anda, Seo Miranda, anda!... O verso livre, Seo Miranda, incisivo, direto... A nota de rodapé que tudo esclarece; o parágrafo inteiro, completo, vamos, Seo Miranda, não temos aqui uma  vida inteira ao seu dispor!... E outra coisa, Seo Miranda – prosseguiram os Agentes -  Sabemos que  o senhor começou a trabalhar como Estafeta,  uma espécie de office-boy, já que Estafeta era o nome que se dava pros meninos lá  em Portugal, para aqueles  que trabalhavam em escritórios ou empresas fazendo serviços, assim, digamos,  sem muito valor, de pouca importância e complexidade... serviços  sem prestígio, coisa assim como ir a agência bancária fazer um pagamento de contas,  ou quem sabe,  andar para fazer  entrega de documentos, essas coisas, essas coisas burocráticas.  Era uma tarefa  de jovens que ainda não tinham lá seus estudos completados e precisavam de uns trocados, dinheiro, dinheiro,  para ele mesmo ou pra ajudar a família;  havia quem passasse uma vida inteira nesses empregos... Os  office-boys, que hoje os tempos se encarregaram de modificar, são os atuais Motoqueiros e Motoboys,  que agora já não são mais garotos, mas ao contrário,  são quase homens formados ou jovens com idade mais avançada, acima dos dezoito, e às vezes ultrapassando os vinte e tantos; nas grandes cidades, eles formam, hoje, um exército motorizado a ziguezaguear pelas ruas ...

Enquanto ouvia, Miranda era empurrado para dentro do camburão,  sentindo-se reduzido  a um homenzinho  infeliz e desastrado.  Miranda contemplava pela porta semiaberta,  os sinais da destruição no seu  estreito corredor de  dois por quase cinco; sentia-se triste, vendo espalhados pelo chão, atirados a esmo pelos estabanados Agentes, o seu armário, a sua mesinha, os cavaletes, os pincéis, os lápis,  as latas de tinta e de querosene, os tecidos, a sua banquetinha quadrada, com as laterais mais altas pra  facilitar-lhe  o apoio dos apetrechos... Miranda lembrou-se de que  ficara lá, também, em algum canto do chão, o  peso de papel, um pedaço de madeira com uma chapa de  metal fixada, em que se  via o desenho invertido de uma Águia... Um ‘clichê’ que Miranda guardara desde os tempos  da Moderna. Bastava que algum cliente apenas olhasse pro objeto, e ele,  Miranda, discorria contente,  sem titubear  Ah. isso é um clichê. Uma chapa  para impressão em relevo, usada nas antigas tipografias. Olha só, aqui a tinta não entra. Aqui entra. Quando a chapa pressiona o papel, pronto, a Águia surge soberana, resplandecente no claro-escuro, a cortar os céus!...

 As veraneios  dos agentes, agora, já davam sinais de manobra, e Miranda revia o filme daquela manhã  terrível de setembro, quando chegara ao terminal de ônibus e ali, como todos,  dera-se  conta do tamanho do estrago. A cidade ficara, inteira, de joelhos diante do  crime organizado.  Ainda nem raiara o dia e o saldo já estava contabilizado: incêndios em garagens públicas,  carros metralhados,  coqueteis molotov  explodindo em delegacias,  bombas caseiras estourando vidros, ataques relâmpagos nas bases móveis da polícia,   carros em chamas jogados contra agências bancárias,  caixas eletrônicos carbonizados,   ônibus incendiados nos terminais; e mais:  gritos, correrias, tiros e bombas na madrugada inteira... Sob um som cortante de sirenes, indo e vindo, ambulâncias e carros policiais cruzavam  as longas avenidas ou até mesmo subindo em canteiros e calçadas dos pedestres; ninguém poderia deixar de ver os estragos consideráveis que exalavam da temperatura quente daquela madrugada. Diante da paralisação geral do transporte público na região, todos seguiam andando avenida acima em direção ao centro da cidade.  Vez ou outra, nos bares e botecos, já se ouvia os plantões de TV e rádios com os  primeiros informes e comentários:  agentes policiais mortos, ônibus queimados, gente ferida e em estado grave, prédios públicos metralhados, vidros estilhaçados pelo chão...A ação comandada pelos internos aprisionados, fora mesmo  uma represália contra o sistema carcerário, garantiam!  As escutas  telefônicas, grampeadas pela polícia, apontavam para um  SALVE GERAL”. A referência, comentada pela jornalista da tevê, fez com que Miranda desviasse os olhos para o bar. 

 - Uma frase de amor!... – insistia a  repórter.

 Miranda, de forma automática,  repetiu o texto completo  para si mesmo. E eufórico com a notícia, se pudesse olhar com mais atenção, teria percebido que a frase que espocara  na TV,   acentuava-lhe  uma fortíssima  sonoridade carregada de culpa. Pelo menos era assim que seus batimentos cardíacos se manifestaram. Os sinais de impaciência tornavam-se, agora,  bem mais visíveis. Sem conseguir explicar para si mesmo, o como e o porquê, Miranda sentia-se cúmplice absoluto  do que enxergava e ouvia. O seu olhar, ao longo do caminho, parecia  denunciá-lo às centenas de trabalhadores que ali caminhavam juntos.  Talvez por essa razão, seus  passos ganharam outro ritmo, moto-contínuo, acelerados, uma corrida contra o tempo;  e o que  lhe vinha à cabeça naquele momento, era somente o  texto escrito no papel-rascunho que havia  deixado sobre a sua bancada, protegido pelo peso do clichê tipográfico... Entretanto, sem que soubesse como, os Agentes anteciparam à sua chegada e lhe prepararam o flagrante. Fora apenas o tempo de rodopiar a chave na porta de enrolar,  e lá estavam eles;  surgiram sabe-se lá de onde!...  Agora, no Camburão, moído, quebrado e alquebrado, com hematomas visíveis pelo corpo, surrado e torturado física e psicologicamente,  Miranda, longe de saber para onde o levariam naquele passeio sem fim,  viu surgir-lhe na mente as  páginas de uma  antiga brochura que  imprimira na gráfica Moderna: Dom Quixote!  Lembrou-se melhor: Dom Quixote de La Mancha, o romance famoso  de Miguel de Cervantes!... Miranda recordou-se de uma prova de página que lera para revisão. Lembrava-se ainda da fonte utilizada: maiúsculas e minúsculas em garamond, corpo 12,  romano.  E   sem que se desse conta saiu-lhe da boca um sussurro alto em brados:   Dom Quixote!... Voltou a repetir forte: -  Dom Quixote de La Mancha!...

 Enquanto Miranda regurgitava o nome do imortal cavaleiro  da triste figura,  acompanhado do seu fiel escudeiro Sancho Pança, avançando por  montes e vales, e lutando contra moinhos de vento e cavaleiros imaginários em nome da justiça,  os Agentes policiais,  atônitos e boquiabertos, em uníssono, cumpriram ordens de se reunirem  em confraria, numa espécie de AAU, quer seja, uma Assembleia de Avaliação Urgente;  algo como uma banca examinadora que fixasse pontuação ao texto diante  da adequação ao tema, coerência, coesão, encadeamento das ideias,  ortografia e dificuldades gramaticais... E assim, os Agentes chegaram imediatamente  a um veredicto: foram unânimes em afirmar que  avançaram.  E como avançaram.  Sim, sabiam que o caminho era esse.  Miranda não era mesmo um reles  pintorzinho de faixas como antes alguns previram;  nem sequer  um inocentezinho pra inglês ver... Não!... Hoje, Miranda estava ali entregando o ouro sobre a  mais recente e  perigosa facção criminosa  surgida no interior do sistema prisional:  Dom Quixote!  Sim, diziam os Agentes,  agora estavam prontos  para uma nova investida.  Agora, agora tinham um nome. Agora, agora era escancarar as portas para a imprensa.  Afinal, não basta só botar o ovo. É preciso cacarejar: Dom Quixote! ...Operação Dom Quixote!!! diziam sorridentes e aos brados, sob o som das sirenes e buzinas, comemorando a descoberta da  facção que, ou já existia ou estava sendo plantada nos corredores do sistema prisional. Sim, estava claro, o ataque fora encomendado por uma nova e recente força:  Dom Quixote!... Operação D. Quixote.  Algo como uma luta dos amotinados contra os gigantes controladores do cárcere;  Algo como  uma proposta de implosão do sistema de Segurança Pública; ou ainda, quem sabe,  um combate sem tréguas para ridicularizar os promotores e os agentes da lei. E tudo isso,  regado a muita ironia e blasfêmia. Sim, concluíram os Agentes: naquele 12 de setembro havia surgido  um novo modelo de célula,  inclusive com uso de amigos, parentes,  pilotos e celulares... Operação Dom Quixote!... Operação Dom Quixote!... 

 Tivesse olhos pra todas as coisas, Miranda veria que  os Agentes, naquele momento,   sequer  lhe davam atenção, quando, insistentemente,  repetia as palavras que ouvira do Motoqueiro:  “ quero as  letras bem grandes, Seo Pintor...Assinar não é preciso, não! O Anjo me conhece, Seo Pintor.  Deixo o pagamento adiantado e  retiro à tardinha... E motoboy tem folga, Seo Pintor? Folga nenhuma. O dia inteiro no vai e vem dessa cidade. Entrega e busca. Leva e traz!...”

Desse  mais atenção ao entusiasmo que causara aos  Agentes,  que riam e riam em sinal do V de  vitória. sob os sons desconcertantes das sirenes,  Miranda perceberia  que a conversa que ouvira do falso motoboy pouco lhes interessava naquele momento, entretanto, Miranda continuava acentuando o que o “ avião” lhe dissera: “Porcelana fina, Seo pintor!... Uma Diana, essa mulher!...  Deusa Grega, essa Vênus platinada... Pois quero fazer-lhe uma surpresa, Seo Pintor. Quero ver a faixa  estendida bem lá  na  esquina,  bem ali no cruzamento da avenida por  onde ela passa todo dia”.   Miranda registrara as lembranças com nitidez e precisão. E por essa razão empolgava-se com sua memória. A ele, Miranda, parecia-lhe que cada palavra, cada frase que dizia, transformava-se em testemunha ocular para a  sua própria liberdade. Sua memória, portanto, poderia  servir-lhe de álibi infalível pra escapar dessa bruta  enrascada em que se metera naquele dia. Grosso modo, era como se ele, Miranda, tivesse se transformado no próprio Motoqueiro em pessoa, tal a empolgação dirigida aos Agentes: “ Essa mulher é como uma princesa, Seo Pintor.  Preciosa como um objeto raro que se guarda na Cristaleira. Fosse de vidro, Seo Pintor, seria  um ‘Murano’, translúcido e colorido,  com traços feito à mão, coisa de artesão  que se consagra soprando belezas raras com a cana de vidreiro.  Fosse uma paisagem,  Seo Pintor, habitaria os campos resplandecentes de um amanhecer esplendoroso...  Cuido que nunca se  quebre esse vaso Chinês, Seo Pintor. Nunca!.. Essa mulher,  eu carrego aqui  no meu  coração...Pois escreve  aí, Seo Pintor, escreve aí   nessa faixa com as letras  grandes, Seo Pintor, bem grandes,   assim ó:  BIBELÔ, EU TE AMO!”.

Ainda que os Agentes não lhe  dessem a mínima,  Miranda esclarecia a eles que até rira de si mesmo diante do trabalho que fizera, e confessou a si mesmo que,  para um tipógrafo-minervista até que se saíra muito bem como um pintor de faixas!”.  Miranda explicou ainda, que desenhara  as letras sobre o tecido branco. A mensagem, esta destacara em vermelho-vivo,  cor quente, a cor da do amor e da paixão. As letras ganharam assim um jeitão bold, pesadas,  com um ligeiro filete em preto, que era  pra saltar aos olhos da musa do Motoqueiro.  Pois não fora assim, o pedido?...  Então, o Motoqueiro não lhe implorara o máximo empenho pra lhe atender a um desejo do coração?

 Alheios e indiferentes, os Agentes todos, como articulassem um pacto, um sinal de aviso,  uma combinação prévia,  uma estratégia armada para dar inicio à “Operação Dom Quixote”, cruzavam com seus veículos em marcha moderada, depois de muitas  idas e vindas rodando com as possantes viaturas.  Agora, agora chegavam a um destino em silêncio gradual e profundo.  Uma a uma, simultaneamente, as portas escancaram-se para a saída dos Agentes que, calados todos, diante daquele cenário de relvas, num campo aberto tal qual uma clareira à espera de  acontecimentos,  a um só tempo, e juntos,  pareciam remoer aquela maldita frase reiterativa: Dom Quixote!...Operação Dom Quixote!... Todos, ali, pareciam sentir na própria carne, aquele  golpe fulminante que sofreram diante da frase estampada numa faixa de rua: BIBELÔ, EU TE AMO!... Por isso, o revide. Por isso, a vingança.  Por isso, o troco cruel  a quem ameaçara colocar  a cidade em pé-de-guerra naquela  fatídica manhã de 12 de setembro; dali pra frente, era, pois, o inevitável. O fato  exigia dos Agentes  um olhar para o  avesso do avesso do avesso.  Por isso,  de olhos vendados pelos seus algozes, e desatento às urdiduras todas do demorado passeio daquela manhã,  Miranda descera do Camburão amaldiçoando o seu dia,   sentindo um  suor frio  percorrer-lhe algumas vértebras da  espinha,  ao compreender  que ali,  bem próximo dele, pelo som que se impunha,  os grupos  se dividiram:  de um lado,  alguns  Agentes marcando um ritmo cadenciado na palma das mãos, chamando-o  aos gritos, de  forma alternada e incessante: anda, Miranda, anda!... anda, Miranda, anda!...e de outro... todo os demais ensaiavam uma sequência ruidosa  de sons metálicos, tal qual gatilhos em preparativos, que pipocariam sobre seu corpo, martelando os seus ouvidos e ferindo seus tímpanos continuadamente...

 

 

 

 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

ANTOLOGIA POLICIAL WEBTV CRENÇAS DE AGOSTO Conto de Celso Lopes

 


CRENÇAS DE AGOSTO (O Império sob sombras)  -  Celso Lopes 

https://www.redewtv.com/2020/12/antologia-contos-contemporaneos-2x06.html


Gêmeos, os irmãos CAU e JUCE  nasceriam num  fatídico mês  de agosto. Mês em que as lendas e superstições tratam logo  de dizer:  Agosto, mês do desgosto!... No entanto, a data destacava-se como histórica para os pais, em especial, para dona Nara, a mãe, pois buscara  origem dos nomes  no Império Romano; e para a alegria dos familiares e parentes, as crianças,  durante algum  tempo comemoraram juntas os festejos de  aniversário.  Vale dizer que ambos - Cau  e Juce -   tiveram  suas histórias de vida regidas por uma epopeia familiar. Dona  Nara, quando grávida,  debruçara-se sobre os principais  relatos  de  heróis medievais,  à cata de nomes que mais se fizessem apropriados ao primeiro filho, no caso, aos dois pimpolhos.   Isso, tão logo o ultrassom acabara de confirmar o sexo das crianças!...  Dali à escolha dos nomes, o tempo  fora correndo com curiosidades e empolgação . Mas sem dúvida, o mês de mau agouro, o mês de cachorro louco, sempre surgia nas evidências das pesquisas feitas  por dona Nara, até que... .  Empolgada com a vida de um rico mercador romano, escravizado pelo antigo amigo, mas que se esforçara pela conquista da  liberdade,  dona Nara  não vacilou:   - César Augusto.  –  e dizia a quem estivesse por perto,   contornando a barriga, delicadamente, com as mãos,  e reiterando, inúmeras vezes, com um largo  sorriso nos lábios, o nome épico do seu mercador Romano, distinto e especial; e dizia em alto e  bom som   para que o seu  próprio bebê  pudesse ouvi-la:  - CÉSAR AUGUSTO!...  

E então, sem meias palavras, assim de supetão,  espocou-lhe à mente, o esperado nome para o outro filho: -  JULIO CÉSAR!... disse dona Nara com ar comemorativo, o  que colocava  um ponto final à sua procura.  Júlio César!... Júlio César!... emendou confiante e alegre, e dissera de forma empolgadíssima, especialmente, porque o  achado era excelente:  um  general importante do Império Romano, um homem audacioso... Enfim,  um homem aguerrido!... E a descoberta dos nomes surgiu  acompanhada de ajustes,  com a precisão de um bisturi:  “- E que melhor coisa o “CAU”  iria querer, hein?  -  acentuava, alegremente,  dona Nara, com a certeza de que o  apelido criado pela junção das primeiras letras de César Augusto,  emprestava  prestígio e simpatia ao seu  grande mercador romano:  C-AU!... -  e completava:- CAU  é tão bonito, você não acha,  Benhur?...  Nessa hora, levava a definição ao marido, complementando em delírio o nome do segundo filho:  JU-CE!...JU-CE!... Escolhido da mesma forma, com a junção das primeiras sílabas do seu Imperador Romano JÚLIO CÉSAR!...E foi assim que pouco a pouco,  dona Nara, apresentava-se com  uma habilidade acentuada para “Mãe”.  Parecia ter sido feita sob medida para a maternidade dos gêmeos.  E por isso, pode-se dizer que adotara em seu lar, o desafio de uma  forte  criação com paixão e amor,  reiterando, orgulhosamente,  para todos:  amava o CAU, pois  gostava do jeitinho compenetrado daquele  menino e, vaticinando à solta,  via para ele – mais que no irmãozinho JUCE  –  um brilhante futuro!... 

E daí pra frente o mundo dera voltas e mais voltas.  E do desgaste na  relação entre as duas crianças,  surgiram as brigas e desavenças entre os  dois gêmeos. Dona Nara presenciava o rancor e o ódio latentes entre ambos, num  desentendimento crescente, aliado aos  conflitos intermináveis e  sempre à tona. Uma profecia do destino, quem sabe.  Fosse ela,  buscar explicações,  diria que se comportavam como Caim e Abel, destinados,  pela pura inveja, ao primeiro homicídio.-  “E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou” (Gn 4:8).

 

No entanto, fosse ela, dar ouvidos ao sonho que a perseguia desde há muito,  carregado de   superstições  e fatos sobrenaturais, impregnados, todos,  ao mês de agosto, dona Nara  receberia a visita de lobisomens,  bruxas maldosas e do diabo enganador de arcanjos, prontinho, prontinho   para levar consigo as almas puras e ingênuas. E assim sucedia:  o diabo travestido de cor negra das trevas,  surgia-lhe,  ora em forma de bichos como uma pantera,  ora em forma de um gato preto  de garras afiadas e  longas,  e reluzente como a lua cheia,  intimidando-a como um espírito do mal e da discórdia; e sem lhe dar chance,  pressionava-a para que  fizesse  a livre escolha de um dos gêmeos, ou CAU ou JUCE.  Sua recusa decretaria a morte de ambos. Ao Diabo caberia, então,  uma das almas para habitar o reino das trevas e do inferno. Titubeante e indecisa, dona Nara via-se diante de um caminho tomado  por horrendas feiticeiras, anjos rebeldes  e vultos tortos e ofegantes, os próprios  Cramunhões,  monstros com rabo, orelhas grandes e afuniladas, patas de unhas espessas, chifres de bode e asas rústicas de morcego, todos eles discordantes do  reino da paz e da ordem; todos eles  defensores do Diabo negociador. Ali, então,  os aflitos do apocalipse  aguardavam a sua decisão. Ou CAU ou JUCE.  Dona Nara,  sob emoção e lágrimas, sem saída, empunharia ao Diabo um dos gêmeos, não sem antes ajoelhar-se compenetrada e comovida em seu desespero de Mãe. Depois disso, o choro copioso dos gêmeos expulsava aquele  pesadelo sufocante,  trazendo-a de volta ao mundo real.

 

 O major CAU, hoje,  estava no   Comando Geral da Segurança; e  Júlio César, o JUCE,  o general Juce, o irmão gêmeo da infância, agora,  longe um do outro,   era o  homem forte do tráfico, o  chefe da maior organização criminosa implantada no interior dos presídios.

 

E tiveram por onde serem rivais  – ponderava  dona Nara -  culpando-se, a todo o tempo, por trazê-los à luz, juntos,  naquele mês de mau agouro, naquele mês movido por forças demoníacas.  Diante disso, desse calafrio de medo que lhe invadia o corpo,  dona Nara chamava por  constantes confissões, e benzia-se, profundamente,  clamando por  salvação junto ao Senhor, rogando ao Misericordioso, todas  as  suas preces: “ -  São Bento na água benta, Jesus Cristo no seu altar, afastai todos os males peçonhentos e dai-nos a  proteção para a vida (...)”.  Dona Nara sempre camuflara esse temor do sonho tenebroso, que a arrastava sempre para o oitavo mês do ano, evitando, assim,  dizer qualquer coisa  ao marido Benhur,  que sempre se mostrava  avesso  e descrente de  quaisquer referências às lendas e superstições. “- invencionices de quem não tem o que fazer!”– dizia ironizando dona Nara.

 

Ainda ensaiando os  primeiros passos no Presídio Disciplinar – a menina dos olhos da Segurança Pública -  Cesar Augusto, o CAU,  o major CAU, de gestos fortes e irascível em decisões,  logo ganharia, internamente, o apelido que lhe faria jus por muito tempo:  – Dá-Sem-Dó!...  Por sua vez, ainda desconhecido no mundo do crime,  Júlio César, o JUCE, detido por tráfico,  apresentara-se à frente dos detentos com uma postura de  liderança ímpar  e criativa, capaz de articular  uma fuga memorável; ainda que  tivesse acabado  de forma  trágica, o  episódio somou pontos no mundo das facções,  marcando para sempre a origem do destemido JUCE, o general JUCE, como o apelidaram, pois com a inteligência e a audácia dos aguerridos, teria  dado   liberdade a mais de uma centena de internos, não fora  o desabamento  imponderável do túnel, que soterrara  a maior parte dos fugitivos.  Juce escapara do  incidente, no entanto, líder nato,  e temendo uma longa  prisão, enfrentaria  pela primeira vez, o antigo amigo de infância, o irmão gêmeo, o major CAU,  por força de uma  ação de sequestro que liderara  no interior do presídio.

 Antes que se pudesse contar até três na velocidade do som,  o Major César Augusto, o major CAU e sua tropa, fizeram tombar a porta da sala onde Juce mantinha a refém,   entretanto,  recuaram temerosos diante do que viram. O general JUCE desenhara um cenário  que exigia atenção e cuidados;  mantinha a Assistente Social junto  à mesa, deixando visível uma  faca ao  alcance da mão.   O Major CAU pode ler nos olhos do irmão rival,  general Juce,  as  artimanhas de um golpe anunciado, por isso, manteve-se em silêncio, sinalizando  à  tropa,  o posicionamento em círculo. Estava claro que o general Juce   levaria  essa   infâmia ao fim do mundo, pois mantinha  a refém, a uma distância precisa, inibindo qualquer iniciativa precipitada.  Enquanto o   silêncio se prolongava,  o major César Augusto, o major CAU,  tentava decifrar aquele cenário estratégico:  o episódio levado  às últimas consequências seria capaz de transformar o general Juce,  de  bandido a herói, pois  os tiros sobrariam em maior  parte para a própria  Assistente Social.  Sobre a mesa,  a faca  reluzia diante  de todos,  parecendo dizer que estava à espera, que aguardava  ordens  para cumprir o seu destino de mau agouro,  ou seja, furar bem fundo a  jugular da  Assistente. Refém do silêncio, aos poucos,  o Major CAU  deixaria   ver em sua face os contornos de um sorriso enigmático, transformando-se, paulatinamente, no antigo e  irascível  Dá-Sem-Dó.  Era evidente que precisava agir, tal qual aprendera no comando da Polícia.  A tropa, sintonizada,   interpretava aquele  código  em ordens  de Atenção, Preparar, Fogo!....

 Nesse instante, porém,   o que se ouviu a partir dali,  foi um  grito maior e urgente. Um grito sobre-humano de uma mulher que, instintivamente,  decifrava os enigmas e doava-se de corpo e alma aos seus rebentos.  De braços abertos, como um sinal da cruz a intimidar os fariseus, a  Assistente  disse por palavras proféticas:   Os mestres da lei e os fariseus se assentam na cadeira de Moisés.  Obedeçam-lhes e façam tudo o que eles lhes dizem. Mas não façam o que eles fazem, pois não praticam o que pregam.  Eles atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos não estão dispostos a levantar um só dedo para movê-los (...).  

Com essa parábola,  a  Assistente  compreendeu que nenhum dos dois  cederia à intenção e ao gesto.  Cristãos todos,  o general Juce e  Dá-Sem-Dó, o major CAU,  recuaram, ambos,  intimidados. A  tropa baixou as armas. Juce afastou-se da faca.  E com a delicadeza de uma Mãe, coube à  refém indicar um caminho  seguro para todos.  O major CAU   e o general JUCE  acenaram – antagônicos, porém, consanguíneos e desafetos -  com uma certa reverência fraterna  diante daquela Nossa Senhora da Salvação.

Tempos depois, ambos, JUCE e CAU perderiam o pai para um doença incurável. Depois disso, a fuga do general Juce não demoraria muito.  E tão logo se pôs fora do presídio,   um  telefonema  matinal  não desmentia que o seu  rancor e o ódio latentes, saltavam-lhe  aos olhos. O recado chegaria ao major CAU:  “- ...Você me conhece, CAU,   ou facilita a saída dos presos  no  Dia das Mães, ou atrapalho e arrebento com sua carreira, sua e a do seu moleque na base móvel Joana D’Arc!.. o que acha? ... O número do seu telefone?... tenho lá minhas artimanhas, não é mesmo!...  E  antes, até, que o major CAU fizesse as manobras no portão de acesso para o estacionamento,  o general Juce, sem  lhe dar tréguas para qualquer réplica, acentuaria o tom de ironia:    - Ah! CAU... Dona Nara mandou lembranças,  nunca esquece do nosso aniversário, você sabe! ...e  de mais a mais,  você sempre foi o xodó da Velha, não é!?...   

 O major CAU,  por mais que rejeitasse o  irmão,  não poderia deixar de  enxergá-lo   nas cores puras da   infância:  lá, bem  longe do tempo, o  corajoso Juce,  de semblante  inteligente, ágil e esperto... o estrategista Juce enganando  a todos nas brincadeiras de “Salva-Cadeia”...Já não havia mais a quem pegar, todos os meninos estavam presos na corrente indiana,  faltando apenas o general romano Júlio César... e nada do Juce aparecer pra libertar os amigos. Houve até quem o chamasse de general traidor!... Ali  na rua, junto à praça,  apenas alguns boias-frias solitários chegando do trabalho,  com seus apetrechos e enxadas às costas... Pois, exatamente quando passavam pela “cadeia” surgiria o aguerrido Juce, o general Juce,  disfarçado num desses trabalhadores e, tranquilamente, daria o salvo-conduto a todos os meninos  daquela prisão inventada pelo imaginário infantil!...  O major CAU sempre sorria  muito dessa cena desenhada em sua  memória... Doutra feita, sabe-se lá como, o mesmo  Juce  alçara o alto  vitral da Igreja, já iluminado,  e, ali, diante dos olhos desatentos de todos,  postara-se como a imagem de um São Sebastião – como se ele, também   flechado, de cabeça inclinada, fosse, àquela altura,  um desenho impregnado às nuances multicores do próprio vitral.  Em instantes,  Juce desceria do alto do batente e, novamente, com seu gesto de deboche e um sorriso escrachado, “salvaria” os amigos daquela  infame prisão infantil; - liberdade para todos!... – dizia, provocando,  reiteradamente,  o irmão.

Ainda pela manhã, na reunião de cúpula, o Major CAU  tentara esfriar os ânimos dos seus pares de linha mais dura,  sobre a sua  proposta de liberação  de presos no Dia das Mães; e também a extinção da base móvel Joana d’Arc, na sua opinião, um alvo a céu acerto para as facções do crime.  Era evidente que, mesmo  amaldiçoando Juce,  o Major tentasse ganhar tempo para elaborar algumas estratégias diante das ameaças que sofria do irmão. Uma frase dita por Juce, ao final do bate-boca entre eles,  ainda  martelava em  sua cabeça

 “ - Bandido e Polícia também tem Mãe, não é Major?!”.

 Os gráficos apontavam para um número excessivo de presidiários  com acesso ao benefício do Dia das Mães; o que traria pânico e insegurança  à população, além de um descrédito à própria esfera da Polícia. Depois de entreveros, o Comando decidiu por nenhuma liberação.  Voto vencido,  o  Major CAU  deglutia o resultado; o seu desconforto saltava aos olhos mais atentos de alguns membros da Corporação, como o capitão Jardim, que lhe indagara: “ - Está tudo bem, Major?!...”  

 Ao deixar a sala, o major CAU entendera que lhe   restava, agora,  somente correr contra o tempo para  proteger o  filho Marcelo na base-móvel Joana D’arc,  com  a  autoridade de Comandante e de Pai.  Por essa razão dirigiu, pessoalmente, ao  Controle Geral,  solicitando apoio e reforço para a base e, ato contínuo, assinara autorização para o seu desativamento. Arriscava-se,  é verdade. Corria riscos de o interpelarem,  porém,   era visível que  temia  a ameaça  do general Juce, com o seu recado de papo-reto. Mais claro, impossível. Mas, o tempo fora curto. Curtíssimo até.   Antes mesmo que o major CAU dissesse “Espera, meu irmão, espera, Juce”,  na velocidade digital  do celular,   a voz do  aguerrido general romano crescia poderosa, atingindo contornos que desfaziam qualquer acordo,  deixando, inclusive, suspeitas sobre eventual   vazamento da  Operação Dia das Mães.   A voz  seca do general  Juce soara como   um   rojão, sinalizando   um único caminho de entendimento. Emudecido,  o major CAU sentia  no próprio corpo,  a pressão de um  incômodo  e dolorido soco  que o levava a  nocaute, estatelado  no chão de um ringue: 

 “  - Não brinco, CAU!... Não brinco!.”.- finalizou Juce de forma enfática.

 “-Juce, espera!”... A voz do major CAU ganhou  relevo, mas, provavelmente, não foi 

ouvida. Atropelando  os seus próprios movimentos, o majo  avançaria  corredor adentro  no suntuoso prédio da Secretaria, enquanto  tentava, já, pela quinta vez,  acionar  o celular do filho, a essa hora,  sem qualquer resposta.   O major CAU,  atordoado, e  quase em transe, seguiria, então,  direto para a   sala  do  Comando, onde pode  confirmar, o que  o general romano Juce,  já havia lhe  soprado no telefonema: 

  - A Base Joana D’Arc foi atacada, Major CAU .. e há vítimas!..- disse o oficial.

 Quem olhasse para o major CAU de volta à  sala,  e o visse  abrir  a gaveta e desta retirar a sua arma e o silenciador,   conferindo  o  carregamento, por certo não conseguiria descrever a  sua  fisionomia. O que se via ali,  era  o rosto de um homem velho, abatido,  com  marcas que mais pareciam frinchas numa parede nua;  entretanto, eram visíveis no Major, os  traços fortes,  acentuando o que se pode chamar de raiva, ódio e um  clamor, impiedoso,  de vingança; e ainda que atordoado com a referência,  quem por ventura passasse ali bem próximo, ouviria um   nome   reiterado de forma insistente  pelo  o Major CAU:  - dona Nara!... dona Nara!...

O carro do major  já fazia as manobras pelas ruas estreitas do bairro, onde observara  que,  praticamente, o local ainda  se mantinha com a mesma geografia dos tempos idos. O major CAU   ladeava o veículo e, por vezes, parava-o para conferir  o nome de uma  rua,  ou ainda,  para ver de perto o pé-de-amora na casa de  dona Rosa,  fruta que fora objeto de desejo da sua infância... Noutra ocasião teria aspirado melhor aquele cheiro agradável, aquele aroma puro que o tempo apagara. No entanto, hoje, ali,  o major CAU direcionava o seu foco para a antiga casa azul de portão amarelo, quando, ao acionar a campainha, fora atendido, calmamente,  por Dona Nara,  agora, já bem  idosa:   – A doce mãe do general romano  Júlio César  - o JUCE!... -  a inconfundível  mãe de César Augusto, o CAU, o major CAU.  A sua frente, a  dois passos de distância, quando  muito, irradiando uma esfuziante recepção,  capaz de inundar a própria rua, dona Nara derramava-se de alegria e  emoção: - CAU, meu filho... mas quem diria... o meu menino!...– Quanto tempo!... Que bom te ver  por aqui!...Parabéns pra você e pro JUCE!... onde anda aquele diabo de menino?!......

Por instantes, o major CAU,  sentiria  dentro de si,  a voz   melodiosa da Mãe  como uma punhalada  que o perfurava até a  alma.   Entretanto, compenetrado, como sempre fora,  militarmente circunspecto,  diria para si mesmo, que  não haveria volta. Dona Nara que o perdoasse, mas não poderia transigir no seu intento frente ao irmão.   Esperaria Juce, o tempo que fosse. Seu recuo, agora,  seria  tão improvável  quanto a ordem   de  Juce contra  a base móvel do seu filho  Marcelo.  Enquanto a mão do Major CAU tocava, sutilmente,  o cabo da arma, a sua  respiração crescia ofegante, mas não o impedia de assentir para si mesmo, o que sua Mãe  carregaria com ela, para sempre: O vale-tudo entre os irmãos  rivais e  o peso insuportável de uma vida carregada de rancor e ódio entre o  policial e o bandido;  entretanto, antes que o major CAU seguisse o seu raciocínio, ouviu-se, no alpendre, os ruídos de passos e a   voz enfática do general Juce:   “ Mãe!...Mãe... está por aí?” .

 Aquela presença, colocaria ali, mais uma vez,  frente a frente,  o general romano Júlio César, o Juce, e  o irmão consanguíneo, CAU, o major CAU.  E  entre eles, agora,  dona Nara, a genitora,   a mãe de ambos que, eufórica como nunca,  quebraria o incômodo silêncio.  A visita  dos filhos queridos, depois de tanto tempo,  no exato  dia do aniversário de ambos  empolgava-a ao extremo;  entretanto, ali,  à curta distância,  os olhos do general Juce fulminavam  o desafeto CAU, o major CAU, seu irmão:   

 - Por que o Marcelo, Juce? ... Você tirou a vida do  meu único filho!?.... 

 Com os olhares cruzados, faiscantes e estratégicos, CAU e JUCE definiam  a certeza de um gesto final que, no entanto, fora   interrompido pela mãe,  dona Nara: - O que houve, vocês brigaram?  - dissera ela, um tanto desorientada, porém  capaz de perceber que nenhum dos filhos  arriscaria a romper aquele  insuportável silêncio... E então, ali, em fração de segundos, antes que as armas cumprissem o seu ritual, o  que se ouviu,   enquanto CAU e JUCE  decifravam estratégias que levaria à eliminação de um ou de outro... enquanto JUCE e CAU,  reféns da tragédia anunciada,   deixavam ver em suas faces os contornos  de um  final  inadiável,...  enquanto  ambos interpretavam os códigos da vida como  ordens  de atenção, preparar, avançar ....   nesse instante, nesse fatídico instante,   o que se ouviu foi um   grito desesperado de uma  Mãe.   Um grito de mulher que, instintivamente,  doava-se  de corpo e alma  às suas crias,  a despeito do sonho e das profecias de mau agouro.  De braços abertos, como um  sinal da cruz a intimidar os  fariseus  naquele templo, naquela  sala , dona Nara   fez valer a  experiência  de quem percebe como inevitáveis,   a intenção e o gesto.  Cristãos todos,  o general Juce e o major CAU recuaram  intimidados. Ambos com  o desconforto intimo, abaixaram os olhos e as armas diante daquela Salve Rainha, Mãe da misericórdia.  Sem dizer qualquer palavra, mas, delicada como uma Santa, dona Nara apontou-lhes um caminho seguro. 

 O major CAU com a respiração entrecortada e ofegante, deixava visível  a dor latente em sua alma carregada de ressentimentos: o pior deles, o pior de todos, ou seja, a decisão de  matar o irmão, o general JUCE,   para  vingar o filho Marcelo!... Cabisbaixo, O general Juce reteve o seu  ímpeto,  permanecendo ao lado de dona Nara.  Então,  em silêncio sofrido, o general  CAU beijou a mãe,  e afastou-se lentamente, buscando a saída como uma fuga em desespero. E  ali, rapidamente, CAU e JUCE trocaram olhares com um aceno entre ambos, como um pacto possível,  uma trégua, um sinal de  reverência   diante da  redentora, daquela Mãe, daquela Nossa Senhora da Salvação, ali,  desabada em lágrimas à frente de ambos.  Em seu percurso de volta, o major CAU  conferia pelo noticiário as  ações do crime organizado  naquele fatídico dia de agosto.  Entre os alvos da facção sob o comando do general Juce, o repórter acentuara  “ a morte do policial Marcelo, filho do major CAU,  na  base móvel  Joana D’Arc!”...   Antes que chegasse ao Instituto Médico Legal – o IML,  onde faria o reconhecimento do corpo, o botão do rádio  sentiu a pressão dos dedos do Major,  pois, ali, agora, ele necessitava  do silêncio como se fosse o próprio  ar que respirava.  E sob aquele vazio volumoso, ainda que  extremamente incômodo, o major CAU  culpando a  si mesmo pela obediência cega  às  normas e às ordens da sua corporação,  lembrara-se de  Jeff – o Chefe do Laboratório Químico nos USA,  responsável pela preparação e envio do Napalm  e do Agente Laranja às frentes americanas no Vietnã. Também ele – recordava o major– também ele, Jeff, cumprira com rigor a  sua missão de apoio incondicional  às políticas  de  guerra, entretanto, vivenciara o grito antibélico na própria pele, na própria alma, diante das  enfermidades, mortes e do terror causados por sua presteza e competência!...  As luzes do estacionamento  já  deixavam  marcas sobre a  noite, quando o major CAU -  tal qual fizera o Engenheiro Químico Jeff O. Stanford - com gestos calmos e demorados,  que em nada lembrariam a tensão daquele dia  de agosto,  retirou, novamente,  a  sua arma e o silenciador   do porta-luvas.  Instantes depois,  quem  olhasse para o  veículo de luzes apagadas -   sob um som abafado, quase em surdina - notaria o clarão, o risco de luz, aquele  brilho ágil e metálico de um tiro ricocheteando no  interior do carro, e que por certo, atingiria, ainda nesta mesma noite,  na dimensão de um sonho de horror,  o âmago e alma de dona Nara,  empunhando César Augusto, o CAU, o major CAU, como um anjo ingênuo,  para as mãos tenebrosas do Diabo negociador, que, cumprindo a profecia do apocalipse,  carregaria sua alma  para habitar o reino das trevas e do inferno. Nessa mesma  noite, Dona Nara, sob forte emoção e lágrimas nos olhos,  ajoelhou-se sofredora e  compenetrada em seu desespero particular de Mãe, entretanto, o choro dos gêmeos não mais expulsaria  aquele  seu  pesadelo sufocante sobre o mau agouro impregnado ao oitavo mês do ano.