Prêmio Especial Octávio Pereira Leite60+
1º lugar - "Duelo sob o sol" - Celso Antonio Lopes da Silva - São Paulo - SP
2º lugar - "Um dia, num sábado" - Evaristo Souza Soares - Mucuri - BA
3º lugar - "Tal filha, tal mãe!" - Soeli Tiegs - Curitiba - PR
DUELO SOB
O SOL
O
grito pra gente acudir o Divino lá no terreiro da Casa Grande chegou ainda com
o solzinho da manhã. “Diacho de homenzarrão”, pois
não devia ele de estar lá no corte da
cana com os outros?...Que diabos o gigante fora fazer lá no terreirão da
fazenda? Pra todos ali no batente do corte, o Divino era tal qual um gigante, entretanto, naquele dia, eu com
os meus doze anos, fiz a comparação dele
com a Santa Joana D’Arc!... Era tamanha
a coragem do gigante que,
devagarinho, surgiu-me na memória
as palavras do Seo Marianinho, da
catequese: A Santa Joana D’Arc tinha
uma “Fé Inquebrantável!...”. Pra nós, do catecismo, essas palavras, quando
ditas, causaram um rebuliço na imaginação. “ Fé
Inquebrantável”...E Seo Marianinho usava essa força mágica pra nos orientar, dizendo sempre que a Santa Joana D’Arc era movida pela fé, e fora com fé que aquela menina-mulher, nascida em Domrémi,
na França, no ano de 1412, liderara o exército francês contra os ingleses. Do
Divino, que todos ali conheciam, diziam que lá pelos treze anos, cismara de ouvir uma
voz, tal qual a que a Santa ouvira. Voz de
quem Divino? De quem? Ao que ele se entretinha a dizer que estava ouvindo,
estava escutando, mas não sabia soletrar.
Não entendia aquela voz estranha. Quando
isso acontecia, assim ficava o Divino:
meio que jogado num canto até que o “surto” passasse. Digo “surto” porque o Divino era
medicado com o tal do Gardenal,
remédio indicado pra quem “sofria
dos nervos”- diziam. Por
isso, em se tratando do gigante, apenas dizíamos: “Ah! é o Divino, de novo!...Deixa
ele, logo passa!”. E o Divino era assim: o que tinha de estranho, e de
grandalhão, tinha de bom, a bondade em pessoa. Ajudava sempre a quem precisasse. Um dia veio
lá o Divino com aquele seu vozeirão de trovoada recitando um palavrório
desconexo. Da sua boca saia aquela sonoridade impulsiva e estranha: “as palavras são obras de Deus... mas são
também obras de um demo; não vê
lá quando eu digo “iscumungado”... E “iscumungado” não tem uma parte com o coisa-ruim? Ora, se tem!... E não é
“iscumungado” quem me aprepara a degola?!(*).
Instantes
depois, aquietava-se o Divino. Quietinho
como um cordeirinho de Deus a sentir na própria pele o deslize cometido.
E assim, em instantes, retornava com o
facão ágil e forte de volta à lida.
Naquele dia, sem que se soubesse
o porquê, Divino largara o corte ainda
bem cedinho e escapulira rumo à Casa
Grande. Alguns juravam que ouviram da
boca do Divino, “que hoje era um
dia de Libertação”. Mas, ninguém ali botava fé nesse atarantado. E nós, ainda crianças,
meninos, a gente trucidava: Nem te ligo, gigante! Nem te ligo!... No
entanto, fosse o dia da voz de Deus ou de um
grito rouco do Diabo, o certo é
que o Divino, como uma ovelha desgarrada à procura de outros campos
verdejantes, preparou-nos todas as
letras daquela manhã com as tintas
vermelhas de sangue. Ao aviso, corremos todos pro
terreirão!... Já era possível ver o
Divino lá no alto da Colheitadeira de grãos, aquele maquinário imenso e estranho que acabara de chegar na fazenda havia
três dias. Era um maquinário moderno e
novo por ali, e por isso ainda causava estranheza naqueles campos de cultivo... Lá em cima, sob o sol escaldante, víamos nas mãos do
Divino, alguma coisa que muito bem não
se via. Uma arma? Uma foice?
Um facão? O Divino parecia fazer
uns passos de ataque e
defesa, subindo, pulando, avançando
e recuando, e de tempo em tempo, insistindo nos gestos de bater forte sem dó nem piedade! ...E bater em quem? No
invisível?... Divino arriscava passadas longas e a gente enxergava o Divino cada vez
mais alto...Ele, o gigante, pé por pé,
apoiando-se no contorno das ferragens, procurando alcançar o topo como
quem subisse às nuvens para
alcançar o céu. Da sua boca ouvíamos aquela conhecida sonoridade grave, tonitruante: “- O que farão sem os montes de ferros?!...Terei fim, mas o espaço,
não!.. A luta, não! A sorte está jogada, mas jogada por mim!...” (*). Quem há de saber, se ouvíamos aquilo ou se
inventamos? Nenhum de nós confiava tanto no que se passava ali no terreirão. O
Divino, lá no alto, parecia ganhar uns
jeitos outros, assim espevitado, assim como um guerreiro sanguinário.... ou a gente via, via? Nas mãos
do Divino, o que antes era um facão, a
foice, agora mais parecia um aríete potente,
impiedoso, não fosse apenas
um cabo de enxada aparado. Forte. Feito
à mão, liso!... E Divino, o gigante,
um porta-estandarte rodopiando em pleno
ato, tendo nas mãos uma longa espada de prata a trespassar a carapaça dura
daquela sua montaria - a Colhedeira, a Colheitadeira. Ele, Divino, o enviado dos deuses, com a sua fé
inquebrantável, subira ao céus pra
combater o inferno na terra: a Colheitadeira, a Colhedeira de
grãos!... Em silêncio, entreolhávamo-nos, todos. Dona Felicidade, a
mais velha da turma, de terço na mão, ensaiava uma Salve-Rainha Mãe da Misericórdia... Divino, lá no alto, os braços abertos em cruz,
a nos indicar o alvo com a sonoridade
potente de um grito:
“ Se houvesse inferno, haveria
de ser para reis e poderosos que se sustentam do trabalho alheio” (*). O vozerio profético do Divino ecoava com
endereço certo, pois todos ali, os
boias-frias, temiam que o maquinário
lhes arrancasse o emprego e o pão nosso de cada dia. Então, como numa guerra, um duelo de vida e
morte, Divino arvorou-se contra o
demônio, contra o descomunal, contra o portentoso. Na sua
mão, o punhal, o cabo da enxada,
o aríete, o varapau, prontos a atingir e
a deitar por terra, quem por ventura
lhe roubasse o ganha-pão, o salário, o brio, o orgulho, a honra e o sustento da própria vida. Nossos olhares, como fossem um só,
rodearam imobilizados a
Colheitadeira. Lá em cima, banhado pela luz do sol, Divino expunha-nos as suas chagas vivas. O
maquinário gigante, o lobo
vencedor, bravamente, resistira aos ataques insanos de fúria. Divino, ao alto,
curvado sobre uma abóbada de ferros,
preso às pontas das ferragens, atingia uma angulação dolorida em
nossos olhos. Ali, a gente
toda sabia quem era o boia-fria Divino
em seus delírios. No entanto, lá em
cima, trespassado pelos ferros da
Colhedeira, de onde respingavam incessantes gotas de sangue, aprendíamos
a ver e a olhar o astuto lobo metálico, de onde os homens do canavial, a duras penas,
tentavam alcançar o Divino, para retirá-lo das farpas traiçoeiras e pontiagudas
que o perfuraram até a morte.
Referência incidental:
(*) A Canção da Nossa Gente – Eduardo
Galeano – Ed. Paz e Terra