terça-feira, 6 de julho de 2021

DUELO SOB O SOL Conto de Celso Lopes


A Academia de Letras de São João da Boa Vista divulga o resultado de seu XXIX Concurso Literário de Poesia e Prosa, parabenizando aos vencedores e a todos os participantes, pelo alto nível dos trabalhos. A premiação terá lugar em cerimônia virtual a realizar-se no dia 14 de agosto de 2021, às 17h, no canal da instituição no YouTube, quando será lançada a respectiva Antologia.

Prêmio Especial Octávio Pereira Leite

60+
1º lugar - "Duelo sob o sol" - Celso Antonio Lopes da Silva - São Paulo - SP
2º lugar - "Um dia, num sábado" - Evaristo Souza Soares - Mucuri - BA
3º lugar - "Tal filha, tal mãe!" - Soeli Tiegs - Curitiba - PR


                                                    DUELO SOB O SOL

O grito pra gente acudir o Divino lá no terreiro da Casa Grande chegou ainda com o solzinho da manhã.  “Diacho de homenzarrão”,  pois não devia ele de estar lá  no corte da cana com os outros?...Que diabos o gigante fora fazer lá no terreirão da fazenda?   Pra todos ali no batente do  corte, o Divino era tal qual um gigante, entretanto, naquele dia, eu com os  meus doze anos, fiz a comparação dele com a Santa Joana D’Arc!... Era tamanha  a coragem do gigante que, devagarinho, surgiu-me  na memória as  palavras do Seo Marianinho, da catequese: A Santa Joana D’Arc tinha uma “Fé  Inquebrantável!...”.  Pra nós, do catecismo, essas palavras, quando ditas,   causaram um  rebuliço na imaginação. “ Fé Inquebrantável”...E Seo Marianinho usava essa força mágica  pra nos orientar,  dizendo sempre que  a Santa Joana D’Arc era  movida pela fé, e fora com fé  que aquela menina-mulher, nascida em Domrémi, na França, no ano de 1412, liderara o exército francês contra os ingleses. Do Divino, que todos ali conheciam,  diziam  que lá pelos treze anos, cismara de ouvir uma voz, tal qual a que  a Santa ouvira.  Voz de quem Divino? De quem?   Ao que ele  se entretinha a dizer que estava ouvindo, estava escutando,  mas não sabia soletrar. Não entendia aquela voz estranha.  Quando isso acontecia,  assim ficava o Divino: meio que jogado num canto até que o “surto” passasse.  Digo “surto” porque o Divino era medicado com o tal do Gardenal,  remédio indicado pra  quem “sofria dos nervos”- diziam.  Por isso, em se tratando do gigante, apenas dizíamos:  “Ah! é o Divino, de novo!...Deixa ele, logo passa!”. E o Divino era assim: o que tinha de estranho, e de grandalhão, tinha de bom, a bondade em pessoa.  Ajudava sempre a quem precisasse. Um dia veio lá o Divino com aquele seu vozeirão de trovoada recitando um  palavrório  desconexo. Da sua boca saia aquela sonoridade impulsiva e estranha:  “as palavras são obras de Deus... mas são também obras  de um demo;  não vê  lá quando eu digo “iscumungado”... E “iscumungado” não tem uma parte  com o coisa-ruim? Ora, se tem!... E não é “iscumungado” quem me aprepara a degola?!(*).  

Instantes depois,  aquietava-se o Divino. Quietinho como um cordeirinho de Deus a sentir na própria pele o deslize cometido. E assim, em instantes,  retornava com o facão ágil e forte de volta à lida.    Naquele  dia, sem que se soubesse o porquê,  Divino largara o corte ainda bem cedinho e escapulira  rumo à Casa Grande.  Alguns juravam que ouviram da boca do Divino, “que hoje  era um  dia de Libertação”.  Mas, ninguém ali  botava fé nesse atarantado. E nós, ainda crianças, meninos,  a gente trucidava:  Nem te ligo, gigante! Nem te ligo!... No entanto, fosse o dia da voz de Deus ou de um  grito rouco do Diabo,  o certo é que o Divino, como uma ovelha desgarrada à procura de outros campos verdejantes,  preparou-nos todas as letras daquela manhã  com as tintas vermelhas de sangue.    Ao aviso, corremos todos pro terreirão!... Já  era possível ver o Divino lá no alto da Colheitadeira de grãos, aquele  maquinário imenso e estranho  que acabara de chegar na fazenda havia três  dias. Era um maquinário moderno e novo por ali, e por isso ainda causava estranheza naqueles  campos de cultivo...  Lá em cima,  sob o sol escaldante, víamos nas mãos do Divino,  alguma coisa que muito bem não se via.  Uma arma?  Uma foice?  Um facão?   O Divino  parecia fazer  uns  passos de ataque e defesa,  subindo, pulando,  avançando  e recuando, e de tempo em tempo, insistindo nos gestos de bater forte  sem dó nem piedade! ...E bater em quem? No invisível?... Divino arriscava passadas longas  e a gente enxergava o Divino cada vez mais  alto...Ele, o gigante,  pé por pé,  apoiando-se no contorno das ferragens, procurando alcançar o topo como quem subisse às nuvens  para alcançar  o céu. Da sua boca  ouvíamos aquela conhecida  sonoridade grave, tonitruante:  “- O que farão sem os  montes de ferros?!...Terei fim, mas o espaço, não!.. A luta, não! A sorte está jogada, mas jogada por mim!...” (*).  Quem há de saber, se ouvíamos aquilo ou se inventamos? Nenhum de nós confiava tanto no que se passava ali no terreirão. O Divino, lá no alto, parecia  ganhar uns jeitos outros, assim espevitado, assim como um guerreiro  sanguinário.... ou a gente via, via? Nas mãos do  Divino, o que antes era um facão, a foice, agora mais parecia um aríete potente,  impiedoso,  não fosse apenas um  cabo de enxada aparado. Forte. Feito à mão, liso!... E Divino, o gigante, um porta-estandarte rodopiando  em pleno ato, tendo nas mãos uma longa espada de prata a trespassar a carapaça dura daquela  sua montaria -  a Colhedeira, a Colheitadeira.  Ele, Divino, o enviado dos deuses,  com a sua fé inquebrantável, subira ao céus  pra combater  o inferno na terra:  a Colheitadeira, a Colhedeira de grãos!...  Em silêncio,  entreolhávamo-nos, todos. Dona Felicidade, a mais velha da turma, de terço na mão,  ensaiava  uma Salve-Rainha Mãe da Misericórdia...  Divino, lá no alto, os braços abertos em cruz, a nos indicar  o alvo com a sonoridade potente  de um  grito:  “ Se houvesse inferno,  haveria de ser para reis e poderosos que se sustentam do trabalho alheio” (*).  O vozerio profético do Divino ecoava com endereço certo, pois todos ali,  os boias-frias,  temiam que o maquinário lhes arrancasse o emprego e o pão nosso de cada dia.  Então, como numa guerra, um duelo de vida e morte,  Divino arvorou-se contra o demônio, contra o descomunal, contra o portentoso.  Na sua  mão, o punhal, o cabo da  enxada, o aríete, o varapau, prontos a atingir e  a deitar por terra, quem por ventura  lhe roubasse  o ganha-pão,  o salário, o brio, o orgulho, a honra e  o sustento da própria vida.  Nossos olhares, como fossem  um só,   rodearam imobilizados a Colheitadeira. Lá em cima, banhado pela luz do sol,  Divino expunha-nos as suas chagas vivas. O maquinário gigante,  o lobo vencedor,  bravamente,  resistira  aos ataques insanos de fúria. Divino, ao alto, curvado sobre  uma abóbada de ferros, preso às pontas das ferragens, atingia uma angulação dolorida  em  nossos olhos.  Ali, a gente toda sabia quem  era o boia-fria Divino em seus delírios. No entanto,  lá em cima, trespassado pelos ferros da  Colhedeira, de onde respingavam incessantes gotas de sangue, aprendíamos a ver e a olhar  o astuto lobo metálico,  de onde os homens do canavial, a duras penas, tentavam alcançar o Divino, para retirá-lo das farpas traiçoeiras e pontiagudas que o perfuraram  até a morte.

                          

 

Referência incidental:

(*) A Canção da Nossa Gente – Eduardo Galeano – Ed. Paz e Terra