domingo, 4 de dezembro de 2022

SONHO DE UMA TARDE DE VERÃO (Conto de Celso Lopes)

 

Prezado Celso, bom dia.  Entramos em contato para informar que o seu trabalho intitulado "Sonho de uma tarde de verão" foi premiado em 1º lugar no 9º Concurso Literário Vinícius de Moraes, que aconteceu durante a XXVII Semana de Tecnologia e XXIII Encontro Escola-Comunidade, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro - campus Nilópolis.


“SONHO DE UMA TARDE DE VERÃO”

Naquele dia, como fosse eu,  o personagem bíblico Pedro, ela me negou três vezes;  a primeira vez que  me negou, estávamos ainda  na concentração da Banda de Ipanema, no Rio de Janeiro “cidade maravilhosa,  cheia de encantos mil /  cidade maravilhosa, coração do meu Brasil...”. Ela dançava em rodopios à frente do seu companheiro. Porém, seus olhos, velozes como um carrossel,  dançavam saltitantes na minha direção. Eu, da minha parte, rodopiava com a   Márcia à minha frente. Embora aquela “princesa” me comesse com os olhos, e se fizesse em sorrisos, evitando se denunciar ao namorado,  fiz, da minha parte, a necessária  conferência:  ele, o acompanhante,  cabelos lisos,  pele queimada,  fazia um  tipo atlético, de bermudas brancas e uma camisa listrada, lembrando os velhos marinheiros. Atribuíssem-lhe uma música, por certo, seria esse, o refrão “ Deus, eu pensei que fosse Deus/ E que os mares fossem meus/como pensam os ingleses/ Mel, eu pensei que fosse mel/ E bebi da vida como bebe/ Um marinheiro de partida...”    Eu,  no entanto,  sempre fui um tipo franzino, de estatura média,  rosto meio rude, mais para o agressivo do que para o expansivo. Musicalizassem o meu perfil paulistano, os versos soariam traiçoeiros: “Meu, eu julguei que fosse meu/ O calor do corpo teu/ Que incendeia meu corpo há meses/ Ar, como eu precisava amar/ E antes mesmo do galo cantar/ eu te neguei três vezes...” .  Quem reparasse com mais  tempo, veria que ele era um tipo puro sorriso, um carioca da gema, ali diante de um paulista deslumbrado no  bloco de  Ipanema. A banda havia dado a largada:    “ Tanto riso, ó,  tanta alegria, mais de mil palhaços no salão,  Arlequim está chorando pelo amor da Colombina  no meio da multidão”...

Eu não me livrava dos olhos que me comiam, os dela. Embora, estivéssemos em sinal de empate: ela com o seu  homem do mar. Eu com a garota da praia, Márcia, mas  antes que da minha parte surgisse qualquer iniciativa, graças à minha surdez precoce aprimorei habilidades de  leitura labial,  assim, pude ler nos lábios de  uma das amigas dela, chamando-a para entrar na  roda: “ Betinha, vem! ... Vem, Betinha!...”  Mas ainda há algo que preciso revelar:  fui radioamador, oportunidade que aprendi  fonética internacional. Portanto, como num piscar de olhos, interpretei e gravei: Bravo Eko  Tango India  November Rôutel Alfa...ou seja, Betinha!  Acompanhando esse  raciocínio, o leitor verá que esse era mesmo  o nome da minha “Rainha do Rio”. E note-se que em  ‘BETINHA’,  a consoante “Bê”, segunda letra do nosso alfabeto, é oclusiva  sonora,  cujo som é pronunciado de forma bilabial, com o uso dos lábios inferior e superior... Assim,  o som me dava razão, o nome era esse:   - BÉ-TI-NHA!...  Soletrei-o com todo interesse. Ela, Betinha, sorriu confirmando o que eu disse. Mas negou-se,   veementemente,  a emitir qualquer  resposta ao meu sinal, meticulosamente elaborado com a ponta do indicador  rodopiando,  a indicar-lhe um encontro para depois.   Naquele momento, a banda explodia em  tons  fortes e ritmados:  “ Mamãe eu quero, mamá.... Mamãe eu quero, mamá!...”  Quando Betinha negou-me pela segunda vez, eu já estava sem companhia alguma. Um paulistano solitário  em meio a mais de dez mil pessoas, dançando pelas ruas do Rio.  Márcia livrara-se dos meus braços e abraços e seguira cortando a multidão...  Betinha , no entanto, eu a mantinha sob meus olhos e acenos.  Seu nome espocou-me, novamente, boca afora na minha linguagem particular:-  BRAVO-EKO-TANGO-INDIA- NOVEMBER- HÔTEL -ALFA...  

Ela, parecendo me entender, continuava enebriada e triunfal, envolvida que estava nos braços do seu marinheiro particular, sonhando, talvez,  com um mar calmo e esplendoroso. Instantes depois, um “grito” de silêncio!... Silêncio?... Algo  acontecera. Afinal, qual a  razão de  cessar o som, para logo a seguir emendar aquela triste melodia? “- Meu coração/ não sei por quê,  bate feliz,  quando te vê...” 

Logo depois  todos soubemos do ocorrido: o compositor Pixinguinha havia morrido naquele instante. A assim, a Banda tratou de mudar o ritmo carnavalesco para uma homenagem delicadíssima  ao talentoso músico e compositor brasileiro.  E sob os acordes grandiloquentes de  “Carinhoso”,   eu me vi  transformado num Mestre-Sala, tendo ao meu lado,  Betinha  como Porta-bandeira!... Rod0opiávamos em festa no leito asfáltico até alcançarmos  o bar  Veloso, na Montenegro,  em Ipanema.  Nossos olhos, impactados, pareciam nos perguntar como na bíblia, quem cometeria o maior pecado: se  Pedro ao negar Jesus por três vezes,   ou   Judas ao traí-lo com o beijo na face?...  Betinha ria,  ria muito,  ria solta nos braços do seu homem.  Parecia, ali,  ter também o  dom de ler os meus lábios que não silenciavam nunca,  porque queriam lhe dizer, assim  à queima roupa,  que tomasse uma  decisão, qualquer que fosse...   Era como se eu lhe dissesse: “Vai, Betinha  cometa seu pecado... Prometo - dizia-lhe eu-  prometo  não defini-la como uma mulher qualquer, pois como Jesus-  insisti – como Jesus, abstenho-me da classificação de pecados...”.   Naquela imaginação tardia,  Betinha e eu desfilávamos à frente da Verde-e-Rosa num sambódromo imaginário. Ali, éramos os  protetores e guardiões da escola, conduzindo o povo com leveza e  graça... Voltei-me para Betinha  em meio às amigas e ao amante carioca,  e perguntei-me, como se o fizesse a ela: quando negamos a Jesus? ...  Tendo o silêncio como resposta, entendi que ela me negara novamente. E ao negar-me pela terceira vez, não se dera conta do desastre. Eu, como Pedro em sua trajetória, não me igualaria a Judas, pois tinha um coração tratável. Assim, arrastei-me ao gesto final e arrebatador .  Não demorou para que em meu rosto,  eu sentisse as batidas que, cumprindo o ritual bíblico de oferecer a outra face, a parte  atingida cedia lugar ainda sem a dor. E como num sonho de uma tarde, em que se desperta  sem saber da cruel realidade, despertei-me, ali, jogado ao meio-fio, abatido como uma caça ordinária e desprezível. Márcia tentava pela enésima vez,  como me dissera,  colocar-me de pé, apoiar-me junto à porta do  bar Veloso.  E, pacientemente,   com ar desconfiado, relatou-me que  tive um castigo merecido, depois que  dirigi alguns “ataques e gracinhas, numa linguagem estranha e confusa para a namorada de um marinheiro”.  Meus olhos, ainda  paralisados,  atribuíram à Márcia,  as notas finais daquela composição  que me surgira, ali,  em plena tarde nas ruas de Ipanema: “ Cais, ficou tão pequeno o cais/ Te perdi  de vista para nunca mais/ Mais, mais que a vida em minha mão/ Mais que a jura de um cristão/ Mais que a pedra desse cais/ Eu te dei certeza/ Da certeza do meu coração/ Mas a natureza vira mesa da razão!”

 

Nota: texto inspirado, livremente, com referências na letra musical “ Embarcação” (Tom Jobim/Chico Buarque).