Prezado Celso, bom dia. Entramos em contato para informar que o seu trabalho intitulado "Sonho de uma tarde de verão" foi premiado em 1º lugar no 9º Concurso Literário Vinícius de Moraes, que aconteceu durante a XXVII Semana de Tecnologia e XXIII Encontro Escola-Comunidade, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro - campus Nilópolis.
“SONHO DE UMA TARDE DE VERÃO”
Naquele dia,
como fosse eu, o personagem bíblico
Pedro, ela me negou três vezes; a
primeira vez que me negou, estávamos ainda na concentração da Banda de Ipanema, no Rio
de Janeiro “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil / cidade
maravilhosa, coração do meu Brasil...”. Ela dançava em rodopios à frente do
seu companheiro. Porém, seus olhos, velozes como um carrossel, dançavam saltitantes na minha direção. Eu, da
minha parte, rodopiava com a Márcia à minha frente. Embora aquela
“princesa” me comesse com os olhos, e se fizesse em sorrisos, evitando se
denunciar ao namorado, fiz, da minha
parte, a necessária conferência: ele, o acompanhante, cabelos lisos, pele queimada, fazia um
tipo atlético, de bermudas brancas e uma camisa listrada, lembrando os
velhos marinheiros. Atribuíssem-lhe uma música, por certo, seria esse, o refrão
“ Deus, eu pensei que fosse Deus/ E que
os mares fossem meus/como pensam os ingleses/ Mel, eu pensei que fosse mel/ E
bebi da vida como bebe/ Um marinheiro de partida...” Eu,
no entanto, sempre fui um tipo
franzino, de estatura média, rosto meio
rude, mais para o agressivo do que para o expansivo. Musicalizassem o meu
perfil paulistano, os versos soariam traiçoeiros: “Meu, eu julguei que fosse meu/ O calor do corpo teu/ Que incendeia meu
corpo há meses/ Ar, como eu precisava amar/ E antes mesmo do galo cantar/ eu te
neguei três vezes...” . Quem
reparasse com mais tempo, veria que ele
era um tipo puro sorriso, um carioca da gema, ali diante de um paulista
deslumbrado no bloco de Ipanema. A banda havia dado a largada: “
Tanto riso, ó, tanta alegria, mais de
mil palhaços no salão, Arlequim está chorando pelo amor da
Colombina no meio da multidão”...
Eu não me
livrava dos olhos que me comiam, os dela. Embora, estivéssemos em sinal de
empate: ela com o seu homem do mar. Eu
com a garota da praia, Márcia, mas antes
que da minha parte surgisse qualquer iniciativa, graças à minha surdez precoce
aprimorei habilidades de leitura labial, assim, pude ler nos lábios de uma das amigas dela, chamando-a para entrar na
roda: “ Betinha, vem! ... Vem, Betinha!...” Mas ainda há algo que preciso revelar: fui radioamador, oportunidade que aprendi fonética internacional. Portanto, como num
piscar de olhos, interpretei e gravei: Bravo Eko Tango India November Rôutel Alfa...ou
seja, Betinha! Acompanhando esse raciocínio, o leitor verá que esse era mesmo o nome da minha “Rainha do Rio”. E note-se que
em ‘BETINHA’, a consoante “Bê”, segunda letra do nosso
alfabeto, é oclusiva sonora, cujo som é pronunciado de forma bilabial, com
o uso dos lábios inferior e superior... Assim,
o som me dava razão, o nome era esse: - BÉ-TI-NHA!... Soletrei-o com todo interesse. Ela,
Betinha, sorriu confirmando o que eu disse. Mas negou-se, veementemente, a emitir qualquer resposta ao meu sinal, meticulosamente
elaborado com a ponta do indicador
rodopiando, a indicar-lhe um
encontro para depois. Naquele momento,
a banda explodia em tons fortes e ritmados: “ Mamãe
eu quero, mamá.... Mamãe eu quero, mamá!...” Quando Betinha negou-me
pela segunda vez, eu já estava sem companhia alguma. Um paulistano
solitário em meio a mais de dez mil
pessoas, dançando pelas ruas do Rio.
Márcia livrara-se dos meus braços e abraços e seguira cortando a multidão... Betinha , no entanto, eu a mantinha sob meus
olhos e acenos. Seu nome espocou-me,
novamente, boca afora na minha linguagem particular:- BRAVO-EKO-TANGO-INDIA- NOVEMBER- HÔTEL -ALFA...
Ela, parecendo
me entender, continuava enebriada e triunfal, envolvida que estava nos braços
do seu marinheiro particular, sonhando, talvez, com um mar calmo e esplendoroso. Instantes
depois, um “grito” de silêncio!... Silêncio?... Algo acontecera. Afinal, qual a razão de
cessar o som, para logo a seguir emendar aquela triste melodia? “- Meu coração/ não sei por quê, bate feliz,
quando te vê...”
Logo depois todos soubemos do ocorrido: o compositor
Pixinguinha havia morrido naquele instante. A assim, a Banda tratou de mudar o
ritmo carnavalesco para uma homenagem delicadíssima
ao talentoso músico e compositor
brasileiro. E sob os acordes grandiloquentes
de “Carinhoso”, eu me vi
transformado num Mestre-Sala, tendo ao meu lado, Betinha
como Porta-bandeira!... Rod0opiávamos em festa no leito asfáltico até
alcançarmos o bar Veloso, na Montenegro, em Ipanema.
Nossos olhos, impactados, pareciam nos perguntar como na bíblia, quem
cometeria o maior pecado: se Pedro ao
negar Jesus por três vezes, ou Judas ao traí-lo com o beijo na face?... Betinha ria,
ria muito, ria solta nos braços
do seu homem. Parecia, ali, ter também o
dom de ler os meus lábios que não silenciavam nunca, porque queriam lhe dizer, assim à queima roupa, que tomasse uma decisão, qualquer que fosse... Era como se eu lhe dissesse: “Vai, Betinha
cometa seu pecado... Prometo - dizia-lhe eu- prometo não defini-la como uma mulher qualquer, pois
como Jesus- insisti – como Jesus, abstenho-me da classificação de
pecados...”. Naquela imaginação
tardia, Betinha e eu desfilávamos à
frente da Verde-e-Rosa num sambódromo imaginário. Ali, éramos os protetores e guardiões da escola, conduzindo
o povo com leveza e graça... Voltei-me
para Betinha em meio às amigas e ao
amante carioca, e perguntei-me, como se
o fizesse a ela: quando negamos a Jesus?
... Tendo
o silêncio como resposta, entendi que ela me negara novamente. E ao negar-me
pela terceira vez, não se dera conta do desastre. Eu, como Pedro em sua
trajetória, não me igualaria a Judas, pois tinha um coração tratável. Assim,
arrastei-me ao gesto final e arrebatador .
Não demorou para que em meu rosto,
eu sentisse as batidas que, cumprindo o ritual bíblico de oferecer a
outra face, a parte atingida cedia lugar
ainda sem a dor. E como num sonho de uma tarde, em que se desperta sem saber da cruel realidade, despertei-me,
ali, jogado ao meio-fio, abatido como uma caça ordinária e desprezível. Márcia
tentava pela enésima vez, como me dissera, colocar-me de pé, apoiar-me junto à porta
do bar Veloso. E, pacientemente, com ar desconfiado, relatou-me que tive um castigo merecido, depois que dirigi alguns “ataques e gracinhas, numa linguagem estranha e confusa para a namorada de um marinheiro”. Meus olhos, ainda paralisados, atribuíram à Márcia, as notas finais daquela composição que me surgira, ali, em plena tarde nas ruas de Ipanema: “ Cais, ficou tão pequeno o cais/ Te
perdi de vista para nunca mais/ Mais,
mais que a vida em minha mão/ Mais que a jura de um cristão/ Mais que a pedra
desse cais/ Eu te dei certeza/ Da certeza do meu coração/ Mas a natureza vira
mesa da razão!”
Nota: texto inspirado, livremente, com referências na letra musical “ Embarcação” (Tom Jobim/Chico Buarque).