“SABE
QUEM É JACQUES BREL?”
(Texto integrante da coletânea do livro PORÕES)
“...é nóis que tá certo ou são eles?”
(frase atribuída ao detento “Comecru” – registro incerto)
Comecru carregava em sua ficha criminal um dos mais ousados planos de fuga do presídio.
Uma ação frustrada, no entanto, pois centenas
de detentos foram soterrados pela queda nas paredes de um túnel estratégico para a execução do plano. Somado
a isso, Comecru liderou um
enfrentamento gigante no pavilhão 3, o forno,
diante da truculência do Comandante Benhur – ali chamado de Dá-Sem-Dó - ação que totalizou, mais de 80 corpos inertes pelos corredores do pavilhão. Entretanto,
ainda que tenha tido um saldo negativo, Comecru continuava ganhando respeito
no comando do tráfico – afinal, conseguiria (não fosse o desabamento), colocar
fora dos muros do presídio mais de 200
ponta-firmes para uma nova célula local e regional no estado. É sabido que, ainda criança, Comecru
já se destacava pela ousadia nas
brincadeiras de Salva-cadeia, enganando a todos com sua perspicácia e
impondo sua fúria sonora contra aquela infame prisão do imaginário
infantil: “- Liberdade para todos! ” gritava eufórico, surgindo como um raio e dando o salvo-conduto para toda a meninada da
rua. Tempos depois, o sistema prisional
– afeito a possibilidades diversas, entre elas, a compra da própria liberdade - facilitaria
a saída de Comecru, que logo ganhou a rua e escafedeu-se pelas periferias
da cidade. Entretanto, jamais voltaria
para a cadeia – foi o que disseram!... E durante todo o tempo em que ficamos à sua mercê, ele, Comecru, ele mesmo, ele próprio encarregou-se de tramar os rumos do nosso destino, sinalizando
com riscos de vida ou morte!...
Quando pus os
pés na travessa Jacques Brel, ali mesmo, já percebi que os olhos do Comecru, através dos seus comandados, nos seguiam desde o primeiro instante. “Olhos de águia” - ele disse.
Ele, o Zóinho, o Segundo entre
os comandados, o braço direito do Chefe, conforme nos
esclareceu depois, prontamente. – Devagar!...”
- eu dizia para o Escritor, que insistia em pesquisar aqui e ali entre os moradores, com sua pergunta clássica e
insistente: “- Sabe quem é Jacques Brel?”. Concentrado e alheio ao seu
redor, o Escritor não percebia o clima
tenso na pequena travessa, a travessa Jacques Brel no bairro Cereja. “- Devagar!..”
– disse, novamente, com a minha voz precavida, acentuando: “- eles
estão nos cercando; as motos circulam
espertas e os motoqueiros rodopiam as cabeças nos capacetes, com os olhos focados em nós, os invasores...”. Ignorando o meu receio, ou excesso de
precaução, o Escritor seguia interrogando, ora o dono do boteco, ora o
vendedor de bilhetes, ora a dona do café com bolo: - Sabe
quem é Jacques Brel?...Diante das negativas, ele, o Escritor apresentava o cantor e toda a sua história de vida, arrastando o tempo e a
nossa presença inoportuna na travessa
Jacques Brel. Ao final da rua, onde o
esgoto se transformava num pântano lamacento
que invadia os quintais, no exato
momento em que já íamos entrar no táxi que
contratamos para ida e volta, eles chegaram. À nossa volta, algumas motos e
seis ou sete dos comandados, abrindo espaço para a s coordenadas de “boas-vindas”:
“ - Comecru,
disse o Zóinho, o Segundo, o braço direito do Chefe, Comecru
carrega
pra onde vai, um binóculo Nikon
Cross Country, telescópico – na
certa, agora, faz sua mira sobre todos
nós aqui. E ele está lá, o Senhor vê naquela
laje, conte uma, conte duas, é naquela outra do lado esquerdo...”. Zóinho, o Segundo, indicava, apontava e garantia: “ Comecru
mantém os olhos diretos sobre nós aqui embaixo”
Essa informação sobre Comecru já nos fora adiantada pelo taxista Walter, quando nos
conduzia ao território sob a lei do chefão local – A travessa Jacques Brel,
no bairro Jardim Cereja!... Comecru sempre teve pressa, disse o Zóinho,
o Segundo – e completou - mas, nunca,
nunca comia cru, nunca comeu cru na mão de bandido nem de polícia, nem de ninguém, vivia sempre pronto e na frente dos
outros, daí o apelido. O Assistente, o
Segundo, o braço direito, apontou para o
alto, no canto, à esquerda: “ – Ali está o quartel general do Chefe” disse Zóinho, o Segundo
na hierarquia do comando local. “ E
quem é ele?...Se o Senhor me pergunta, eu mesmo respondo: - Comecru
tem pra mais de um metro e oitenta, bem troncudo, cara enfezada, lutou boxe muito tempo e não deu sossego, nocauteou e colocou muito valentão pra beijar a lona, o
Comecru; Esclareceu mais: - esperto
desde menino – a mãe, ainda vive aqui na
Comunidade e confirma tudo. O nome dele
é Juce, quer dizer, o apelido; o nome de
batismo é Júlio César – homenagem a um general romano, ela disse e garante. Ela
mesma disse que buscou um nome importante para o filho, daí que juntou o JU de
Júlio, com o CE de César – virou JUCE, o apelido!... E muito tempo
depois, na prisão, virou o Comecru
pra sempre!... Hoje, aqui, ele que manda e desmanda, e faz as perguntas... Ele quer que o senhor tenha as
respostas, certo? Então, tá pela ordem? ... Quem são? Gente da polícia? Caguetas?
Informantes? Fiscal do governo? ... Vão chegando, assim, e já vão entrando, a bem dizer, invadindo a casa da
gente, tirando fotos, falando com quem tá quieto... E o táxi branco, só ali seguindo,
e de butuca...e aí um diz que é Escritor
e o outro, acompanhante? E escreve o quê, mermão? Tem um livro aí pra gente ver?... O Escritor nessa hora
saltou à frente, mostrou um livro
de sua autoria. Zóinho, o Segundo, folheou rápido e inocente, e
leu o nome com ligeira dificuldade: “- Glória partida no meio?...” O
Escritor corrigiu rápido: “– ao meio”. “ - E
o tal de Jaque, da rua, da travessa, onde entra nessa história, mermão? ... Tá confuso, cumpadre!... Então vem de lá
dois de fora, faz fotos, faz perguntas... a troco de quê?... de nada?!...
Tá pela ordem, isso?! ... Antes de
chegarmos à travessa, nosso taxista, o
Walter, seguia por
um caminho de difícil acesso, e
sempre pontuando as perguntas que o
incomodavam: – Vocês dois, um Escritor, o
outro amigo, vão fazer o quê na travessa Jacques Brel?. O Escritor,
pela segunda vez, fez referência ao primeiro livro sobre Brel, já
esgotado; esclarecendo que agora faria
o segundo sobre o
cantor, por isso, queria fotos daquela rua, da travessa que lhe faz
homenagem, pra levar, pessoalmente, em
visita, à Fundação Jacques Brel
na capital francesa.
“
- Estamos quase chegando, chefia!...”.
Cortou depressa o taxista Walter tentando
nos confortar, mas logo nos alertava para o beco-sem-saída à nossa frente: a travessa Jacques Brel; Walter conhecia o
local, mas evitava se arriscar – Afinal,
confessou-nos - foi policial civil há
muito tempo – deixara a farda e ganhava a vida no táxi. Por isso, melhor falar com o filho, que também é taxista. E logo colocou o celular no viva-voz: “- Oi,
Filho... tô indo no Cereja, levo um Escritor
e um amigo dele... barra pesada, lá, foi
o que eu disse, não é?!... “- Tá doido, meu Pai... deixa os caras na rua de cima e pronto!!!...” - Não
disse? ... o menino conhece bem os mocós... Ali, meu chapa, o mais bonzinho estapeia
a Mãe no tanque, podes crer!...E ali tem
dono – o Comecru – o Cereja tá na paz...
eu acho que tá, mas tá nas mãos dele!... Zóinho,
o Segundo, digitava o celular com a competência de um braço
direito. Os outros, um mais próximo, outro
ali, outros nas motos, outro mais
adiante – e variando as idades, lá
estavam, também, dois senhores. Um deles
fez a pergunta que, aparentemente, todos
queriam fazer: - O Jaque... da rua, o da travessa,
quem é ele?!... O escritor tomou fôlego e respirou fundo - era a sua praia. Esclareceu contente: Jacques
Brel... Jacques Brel... o maior nome da canção francesa - pouco conhecido no Brasil – mas se puxar pela
memória vai se lembrar de Ne
Me Quitte Pas, e ensaiou o canto,
seu velho conhecido de cor e salteado, e
afinadíssimo, num francês sem culpa,
acentuou os primeiros versos:
“- Ne me quite
pas…Il faut oublier …Tout peut
s'oublier...Qui s'enfuit déjà Oublier le temps...Des malentendus…Et le temps
perdu …À savoir comment…Oublier ces heures…”
Essa música – prosseguiu o Escritor - fala da paixão, do amor, do sofrimento, da
vida – e continuou: “- ninguém cantou essa música como Jacques Brel – Mal comparando, como o Roberto Carlos no Brasil, Jacques Brel foi o rei da canção popular francesa!... “-
Danou-se!”
– disse Zóinho de volta à roda. O Chefe quer um aqui e o outro fora - prosseguiu.
“- As fotos valem dinheiro” - ele disse. Se
vão levar pra outro país... tem lá um
interessado. Na certa, vai vender. E, claro... vão pagar em dólar ou euro... Nesse
instante, o motorista Walter ameaçara sair do táxi. Havia ali um imbróglio – um ex-policial civil, com
certeza, teria uma arma camuflada no carro. Melhor que não desse bandeira, o Walter.
Acenei que esperasse lá dentro. Agora, ali, na travessa Jacques Brel, a mais-valia
falava alto, pois transformava nossa visita
importuna em possibilidades de dinheiro-vivo.
Um hábil sequestro se desenhava lentamente à nossa volta. “- O escritor vem com a gente pra conhecer a vida da Comunidade!... –
sentenciou Zóinho, o Segundo, o braço direito do Chefe. E intimou:
“ - o Senhor pensa aí numa ajudazinha. Uma
quantia, um tanto pra atender as necessidades do Cereja... O Senhor vai, o escritor fica! - Disse o Chefe. Em instantes, Walter agilizava o nosso percurso no táxi até um Caixa-eletrônico, sugerindo, confiante: - Leva mil!... Tem mil?... Leva mil!... Ou então, o jeito é avisar a polícia!... Diz pra eles que escritor vive do que vende,
às vezes nem vende, vende pouco...quem é
que compra livro hoje em dia?!...
Enquanto o táxi
ladeava a travessa, na minha mente surgia o Escritor de olhos vendados...E
mais: algo me dizia que ele iria
experimentar do próprio veneno; ele que sempre combatera a truculência do
regime nos anos de chumbo, agora, ele próprio ali estava: sentado, de punhos amarrados para traz, isolado
numa pequena sala mal iluminada; Eu já pressentia a mão pesada do seu algoz das faces; os sinais da tortura aumentavam
cada vez mais, sob a voz tonitruante e incisiva do Comecru, tentando arrancar-lhe a confissão nos moldes de um
pau-de-arara: “ - Diz aí meu chapa, pra
quem trabalha? O que vieram fazer aqui?
Onde vão com essas fotos?... Quanto valem!?... Eu continuava a
sentir os tapas fortes e os golpes do boxeador Comecru ecoando na sala de tortura. Os lábios do escritor, nesse momento, já
deixavam ver os sinais do sangue respingando e tingindo as suas barbas brancas... Nesse instante, a voz do
taxista arrancou-me do pesadelo: “ - Olha lá, olha lá... são eles, o grupo
todo, ali no final da rua!...” . Seguimos ao encontro do grupo. Os olhos dos moradores e comandados pareciam nos dizer que eram sabedores de tudo
aquilo. Uma curva, mais uma, chegamos à travessa; e
eis que o Escritor surge calmo à frente do grupo – Sorria tímido, mas sorria. Suas mãos detalhavam algo no ar. Pareciam contar alguma história, que ele, com
certeza, dominava de cor e salteado. Por
certo, suas mãos desenhavam com os pincéis mágicos do seu imaginário, o rosto e
as nuances especiais da figura emblemática do multiartista Jacques Brel; Brel diante de um microfone, interpretando La valse a mille temps... Os olhos do
Escritor não negavam, e o sorriso confirmava: ali estava ele, emocionado, afinadíssimo,
colocando em cena a primorosa canção de Brel: “
“-Au premier temps de
la valse / Toute seule tu souris déjà /Au premier temps de la valse / Je suis
seul mais je t'aperçois / Et Paris qui bat la mesure / Paris qui mesure notre émoi
/ Et Paris qui bat la mesure / Me murmure, murmure tout bas/ Une valse à trois
temps...”
Instantes
depois, o Escritor deixava ver uma
lágrima emotiva, que parecia confirmar e testemunhar a sua presença no território do patrono-mor daquela pequena ruazinha chamada travessa
Jacques Brel, no bairro Jardim Cereja!...
Assim que nos viu, o Escritor acenou que o táxi encostasse; os outros, sob ordens de Zóinho, o Segundo, olhavam silenciosos, porém, carregados de uma
estranha e singela simpatia. O Escritor acenou-lhes
em sinal de despedida. Zóinho, o Segundo, e os
demais, corresponderam ao gesto do
Escritor. Entramos no táxi e seguimos
silenciosos até o fim da rua, onde se
alcança, rapidamente, a grande avenida.
“- Conta, conta tudo!...” – eu disse,
mantendo os olhos pregados no Escritor. Sorridente, ele se pôs estático, contemplando a paisagem
que o taxista Walter fazia acelerar diante das nossas retinas e, ato contínuo, confortavelmente, recitava de cor e salteado, um
trecho da orelha do livro “Glória partida ao meio”, que, circunstancialmente, carregara com ele, e que havia presenteado Comecru, com uma dedicatória. “ -
Dedicatória? - Como assim? ”–
Perguntei-lhe, espantado. E o escritor
prosseguiu, relembrando o trecho do texto:
“ (...) em meio à tensão da clandestinidade,
nasce uma história de amor; uma paixão ameaçada pelas torturas e perseguições
do tempo da ditadura...”. O assunto, dissera Zóinho, o Segundo, o assunto encantara, por demais, o chefe Comecru, que prometera ler até o final. E o marcador de livro, na página 246, garantiu
Zóinho, o Segundo, destacava o parágrafo que levara
o Chefe a tomar aquela
decisão. O escritor, orgulhoso e
emocionado, resgatou a leitura,
enfatizando o trecho destacado: “ (...)
Glória presenciou os dois companheiros tombarem (...) Quando um dos homens lhe deu as costas (...) ela mirou rapidamente o revólver e apertou o
gatilho. O tiro saiu incrivelmente certeiro e atingiu o crânio do policial, que
tombou para a frente, morto. A resposta veio numa rapidez que não deu nem para
sentir: o comparsa mais próximo disparou sua metralhadora como se cumprisse a
missão de arrombar uma caixa-forte; só parou com sua fúria quando o pente se
esgotou; e aí, há muito tempo Glória já havia sucumbido, partida ao meio.”
Comecru, por certo, também
lera na segunda capa, a referência à “Jacques Brel”, disse o Escritor. Por isso, Zóinho, o
Segundo, trouxera o recado amistoso:
“- esquecessem o dinheiro. Comecru ficaria com o livro e os dois poderiam seguir em paz!”. Dediquei-lhe, “uma boa leitura” e assinei -
finalizou o Escritor com uma sinceridade
irônica. Zóinho, o Segundo, e os outros,
cada qual à sua maneira, registraram na memória, o nome e o sobrenome de quem trafegou pela poesia, teatro, cinema, vagueou pelo ar e navegou pelo
mares e
se lançou ao cancioneiro popular francês,
de
forma viva e brilhante. A “travessa Jacques Brel”, no Jardim Cereja, carregaria, para sempre, algumas linhas
vivas dessa emblemática história.
Texto: Celso Lopes
Notas incidentais:
Glória partida ao meio – Paulo Martins - Editora 7 Letras – RJ/2009
Jacques Brel – A magia da canção popular – Paulo Martins Editora
7 Letras.