quarta-feira, 31 de maio de 2023

SABE QUEM É JACQUES BREL?

 


“SABE QUEM É JACQUES BREL?”

(Texto integrante da coletânea do livro PORÕES)

 

 

“...é nóis que tá certo ou são eles?”

(frase atribuída ao detento “Comecru” – registro incerto)

 

 

Comecru carregava em sua ficha criminal  um dos mais ousados planos de fuga do presídio. Uma ação frustrada, no entanto, pois centenas de detentos foram soterrados pela queda nas paredes de um  túnel estratégico para a execução do plano. Somado a isso, Comecru liderou um enfrentamento gigante  no pavilhão 3, o forno,  diante da truculência do Comandante Benhur – ali chamado de Dá-Sem-Dó -   ação que totalizou,  mais de 80 corpos  inertes  pelos corredores do pavilhão.  Entretanto,  ainda que tenha tido um saldo negativo, Comecru continuava ganhando  respeito no comando do tráfico  – afinal,  conseguiria (não fosse o desabamento), colocar fora dos muros do presídio mais de  200 ponta-firmes para uma nova célula local e regional no estado.  É sabido que, ainda criança,  Comecru já se destacava pela  ousadia nas brincadeiras de  Salva-cadeia,  enganando a todos com sua perspicácia e impondo sua fúria  sonora  contra aquela infame prisão do imaginário infantil:  “- Liberdade para todos! ”  gritava eufórico, surgindo como um raio e   dando o salvo-conduto para toda a meninada da rua.  Tempos depois, o sistema prisional – afeito a possibilidades diversas, entre elas, a compra da própria  liberdade -  facilitaria  a saída de Comecru,  que logo  ganhou a rua e escafedeu-se pelas periferias da cidade.  Entretanto, jamais voltaria para a cadeia – foi o que disseram!... E durante todo  o tempo em que ficamos à sua mercê, ele, Comecru,  ele mesmo,  ele próprio encarregou-se de  tramar os rumos do nosso destino, sinalizando com  riscos de  vida ou morte!...

Quando pus os pés na travessa Jacques Brel, ali mesmo, já percebi  que os olhos do Comecru, através dos seus comandados,  nos seguiam desde o primeiro instante.  “Olhos de águia” -  ele disse.  Ele, o  Zóinho, o Segundo entre os comandados,  o braço direito do Chefe, conforme nos esclareceu depois, prontamente.   – Devagar!...” - eu dizia para o Escritor, que insistia em pesquisar aqui e ali entre os  moradores, com sua pergunta clássica e insistente: “- Sabe quem é Jacques Brel?”. Concentrado e alheio ao seu redor,  o Escritor não percebia o clima tenso na pequena travessa, a travessa Jacques Brel no bairro Cereja.     “- Devagar!..” – disse, novamente,  com a minha  voz precavida, acentuando:  “-  eles estão nos  cercando; as motos circulam espertas e os  motoqueiros  rodopiam as cabeças nos capacetes, com  os olhos focados em nós, os invasores...”.  Ignorando o meu receio, ou excesso de precaução,  o Escritor seguia  interrogando, ora o dono do boteco, ora o vendedor de bilhetes, ora a dona do café com bolo:  - Sabe quem é Jacques Brel?...Diante das negativas, ele, o Escritor  apresentava o cantor e toda a  sua história de vida, arrastando o tempo e a nossa  presença inoportuna na travessa Jacques Brel.  Ao final da rua, onde o esgoto se transformava num  pântano lamacento que invadia os quintais,  no exato momento em  que já íamos entrar no táxi que contratamos para ida e volta, eles chegaram. À nossa volta, algumas motos e seis ou sete dos comandados, abrindo espaço para a s coordenadas de “boas-vindas”:   - Comecru,  disse o Zóinho, o Segundo, o braço direito do Chefe,  Comecru  carrega pra onde vai,  um   binóculo Nikon Cross Country, telescópico  – na certa, agora, faz sua mira  sobre todos nós aqui.  E ele está lá, o Senhor vê naquela laje, conte uma, conte duas, é naquela outra do lado esquerdo...”.  Zóinho, o Segundo,  indicava, apontava e garantia:  Comecru mantém os olhos diretos sobre nós aqui embaixo”  Essa informação sobre Comecru  já nos fora adiantada pelo  taxista Walter,  quando nos  conduzia  ao  território sob a  lei do chefão local – A travessa Jacques Brel, no bairro Jardim Cereja!... Comecru sempre teve pressa, disse o Zóinho, o Segundo – e completou - mas, nunca, nunca comia cru, nunca comeu cru na mão de bandido nem de polícia, nem de  ninguém, vivia sempre pronto e na frente dos outros, daí o apelido. O  Assistente, o Segundo,  o braço direito, apontou para o alto, no canto, à esquerda:  “ – Ali está  o quartel general do Chefe”  disse Zóinho,  o Segundo na hierarquia do comando local. “ E quem é ele?...Se o Senhor me pergunta, eu mesmo respondo:  - Comecru tem pra mais de um metro e oitenta,  bem  troncudo,  cara enfezada, lutou boxe muito tempo  e não deu sossego,  nocauteou e colocou muito valentão  pra beijar a  lona,   o Comecru;  Esclareceu mais:  - esperto  desde menino – a mãe, ainda vive aqui na Comunidade e  confirma tudo. O nome dele é Juce,  quer dizer, o apelido; o nome de batismo é Júlio César –  homenagem  a um general romano, ela disse e garante. Ela mesma disse que buscou um nome importante para o filho, daí que juntou o JU de Júlio, com o  CE  de César – virou JUCE, o apelido!... E  muito tempo  depois, na prisão, virou  o Comecru pra sempre!... Hoje, aqui,  ele que manda  e desmanda,  e faz  as perguntas... Ele quer que o senhor tenha as respostas, certo? Então, tá pela ordem? ... Quem são? Gente da polícia?  Caguetas?   Informantes?  Fiscal do governo? ...  Vão chegando, assim,  e já vão  entrando, a bem dizer, invadindo a casa da gente,  tirando fotos, falando com  quem tá quieto... E o táxi branco, só ali seguindo,  e de butuca...e aí um diz que é Escritor e o outro, acompanhante? E escreve o quê, mermão?  Tem um  livro aí pra gente ver?... O Escritor nessa  hora  saltou à frente, mostrou  um livro de sua autoria.    Zóinho, o Segundo, folheou rápido e inocente, e leu o nome com ligeira dificuldade: “- Glória partida no meio?...” O Escritor corrigiu rápido: “– ao meio”. “ - E o tal de Jaque, da rua, da travessa,  onde entra nessa história, mermão? ... Tá confuso, cumpadre!... Então vem de lá dois de fora,  faz fotos,  faz perguntas... a troco de quê?... de nada?!... Tá pela ordem, isso?! ...  Antes de chegarmos à travessa,  nosso taxista, o Walter,   seguia por  um caminho de difícil acesso,  e sempre pontuando as  perguntas que o incomodavam: – Vocês dois, um Escritor, o outro amigo,   vão fazer o quê na travessa Jacques Brel?.   O Escritor, pela segunda vez, fez   referência ao primeiro livro sobre Brel, já esgotado; esclarecendo que  agora faria o  segundo   sobre o cantor,  por isso,  queria  fotos daquela rua, da travessa que lhe faz homenagem,  pra levar, pessoalmente,  em  visita, à Fundação Jacques Brel na capital francesa. “ - Estamos quase chegando, chefia!...”. Cortou depressa o   taxista Walter tentando nos confortar, mas logo nos alertava para o beco-sem-saída à nossa frente: a travessa Jacques Brel;  Walter conhecia o local,  mas evitava se arriscar – Afinal, confessou-nos  - foi policial civil há muito tempo – deixara a farda e ganhava  a vida no táxi. Por isso,  melhor falar com o filho,  que também é taxista. E logo  colocou o celular no viva-voz:  “- Oi, Filho... tô indo  no Cereja, levo um Escritor e um amigo dele... barra pesada, lá,  foi o que eu disse, não é?!...  - Tá doido, meu Pai... deixa os  caras na rua de cima e pronto!!!...” - Não disse? ... o menino conhece bem os mocós... Ali, meu chapa, o mais bonzinho estapeia a  Mãe no tanque, podes crer!...E ali tem dono – o Comecru – o  Cereja tá na paz... eu acho que tá,  mas tá nas mãos  dele!...  Zóinho, o Segundo,  digitava o celular com a competência de um braço direito.  Os outros, um mais próximo, outro ali, outros nas motos,  outro mais adiante – e variando as idades,  lá estavam, também,  dois senhores. Um deles fez  a pergunta que, aparentemente, todos queriam fazer:  - O Jaque... da rua,  o da travessa, quem é ele?!...    O escritor  tomou fôlego e respirou fundo -  era a sua praia. Esclareceu contente: Jacques Brel... Jacques Brel... o maior nome da canção francesa -  pouco conhecido no Brasil – mas se puxar pela memória  vai se lembrar de Ne Me Quitte Pas,  e ensaiou o canto, seu velho conhecido de cor e salteado,  e afinadíssimo, num francês sem culpa,  acentuou os primeiros versos:    

“- Ne me quite pasIl faut oublier Tout peut s'oublier...Qui s'enfuit déjà Oublier le temps...Des malentendus…Et le temps perdu …À savoir comment…Oublier ces heures…”

 

Essa  música – prosseguiu o Escritor -  fala da paixão, do amor, do sofrimento, da vida   e continuou: “-  ninguém  cantou essa música como Jacques Brel –  Mal comparando, como o  Roberto Carlos no Brasil,  Jacques Brel foi o rei da canção popular francesa!...   “- Danou-se!” – disse Zóinho de volta à roda.   O Chefe  quer  um aqui e o outro fora -  prosseguiu.  “- As fotos valem dinheiro” -  ele disse. Se vão levar pra outro país... tem lá um  interessado. Na certa, vai vender.  E, claro...  vão pagar em dólar ou euro... Nesse instante, o motorista Walter ameaçara sair do táxi.  Havia  ali um imbróglio – um ex-policial civil, com certeza, teria uma arma camuflada no carro.  Melhor que não desse bandeira, o Walter. Acenei que esperasse lá dentro. Agora, ali, na travessa Jacques Brel, a mais-valia falava alto,  pois transformava nossa visita importuna  em possibilidades de dinheiro-vivo. Um hábil sequestro se desenhava lentamente  à nossa volta. “- O escritor vem com a gente pra conhecer a vida da Comunidade!... – sentenciou Zóinho, o Segundo, o  braço direito do Chefe.  E intimou:  -  o Senhor pensa aí numa ajudazinha. Uma quantia, um tanto pra atender as necessidades  do Cereja... O Senhor vai,   o escritor  fica! - Disse o Chefe.  Em instantes,  Walter agilizava o nosso  percurso no táxi  até um Caixa-eletrônico, sugerindo,  confiante:    - Leva mil!... Tem mil?...   Leva mil!...  Ou então, o jeito é avisar a polícia!... Diz pra eles que escritor vive do que vende, às vezes nem vende,  vende pouco...quem é que compra livro hoje em dia?!...

Enquanto o táxi ladeava a travessa, na minha mente surgia o Escritor de olhos vendados...E mais:  algo me dizia que ele iria experimentar do próprio veneno; ele que sempre combatera a truculência do regime nos anos de chumbo, agora, ele próprio ali estava:  sentado, de punhos amarrados para traz, isolado numa  pequena sala mal iluminada; Eu    pressentia a mão pesada do seu algoz  das faces; os sinais da tortura aumentavam cada vez mais,  sob a voz tonitruante  e incisiva do Comecru, tentando arrancar-lhe a confissão nos moldes de um pau-de-arara: “ - Diz aí meu chapa,   pra quem trabalha? O que vieram fazer aqui?  Onde vão com essas fotos?... Quanto valem!?... Eu continuava a sentir os tapas fortes e os golpes do boxeador Comecru ecoando na sala de tortura.  Os lábios do escritor, nesse momento, já deixavam ver os sinais do sangue respingando e tingindo as suas  barbas brancas... Nesse instante, a voz do taxista  arrancou-me do pesadelo: “ - Olha lá, olha lá... são eles, o grupo todo, ali no final da rua!...” . Seguimos ao encontro do grupo.   Os olhos  dos moradores e comandados  pareciam nos dizer que eram sabedores de tudo aquilo.   Uma curva, mais uma, chegamos à travessa; e eis que o Escritor  surge calmo  à frente do grupo –  Sorria tímido, mas sorria. Suas mãos  detalhavam algo no ar.  Pareciam contar alguma história, que ele, com certeza, dominava  de cor e salteado. Por certo, suas mãos  desenhavam com os  pincéis mágicos do seu imaginário, o rosto e as nuances especiais da figura emblemática do multiartista  Jacques Brel; Brel  diante de um microfone, interpretando La valse a mille temps... Os olhos do Escritor não negavam, e o sorriso confirmava: ali estava ele, emocionado, afinadíssimo, colocando em cena a primorosa canção de Brel: “

“-Au premier temps de la valse / Toute seule tu souris déjà /Au premier temps de la valse / Je suis seul mais je t'aperçois / Et Paris qui bat la mesure / Paris qui mesure notre émoi / Et Paris qui bat la mesure / Me murmure, murmure tout bas/ Une valse à trois temps...”

Instantes depois, o Escritor deixava ver uma  lágrima emotiva,  que parecia  confirmar e testemunhar a  sua presença no território do patrono-mor  daquela pequena ruazinha chamada travessa Jacques Brel, no bairro Jardim Cereja!...  Assim que nos viu, o Escritor acenou que o táxi encostasse; os outros,  sob ordens de Zóinho,  o Segundo,   olhavam silenciosos, porém, carregados de uma estranha  e singela simpatia. O Escritor acenou-lhes em sinal de  despedida. Zóinho, o Segundo,  e  os  demais,  corresponderam ao gesto do Escritor.  Entramos no táxi e seguimos silenciosos até o fim da  rua, onde se alcança, rapidamente,  a grande avenida.

“- Conta, conta tudo!...” – eu disse, mantendo os olhos pregados no Escritor. Sorridente,  ele se pôs estático, contemplando a paisagem que o taxista Walter fazia acelerar diante das  nossas retinas  e, ato contínuo,  confortavelmente, recitava de cor e salteado, um trecho da  orelha do livro “Glória partida ao meio”, que,  circunstancialmente,  carregara com ele,  e que havia presenteado Comecru, com uma dedicatória. “  - Dedicatória?  - Como assim? ”– Perguntei-lhe, espantado.   E o escritor prosseguiu,  relembrando o trecho do texto:    “ (...) em meio à tensão da clandestinidade, nasce uma história de amor; uma paixão ameaçada pelas torturas e perseguições do tempo da ditadura...”.  O assunto, dissera Zóinho, o Segundo, o assunto  encantara, por demais, o chefe Comecru, que prometera ler até o final.  E o marcador de livro, na página 246, garantiu Zóinho, o Segundo,  destacava o parágrafo que   levara  o Chefe a   tomar aquela decisão.  O escritor, orgulhoso e emocionado,  resgatou a leitura, enfatizando o  trecho destacado:   “ (...) Glória presenciou os dois companheiros tombarem (...)  Quando um dos homens lhe deu as costas (...)  ela mirou rapidamente o revólver e apertou o gatilho. O tiro saiu incrivelmente certeiro e atingiu o crânio do policial, que tombou para a frente, morto. A resposta veio numa rapidez que não deu nem para sentir: o comparsa mais próximo disparou sua metralhadora como se cumprisse a missão de arrombar uma caixa-forte; só parou com sua fúria quando o pente se esgotou; e aí, há muito tempo Glória já havia sucumbido, partida ao meio.”   

Comecru, por certo, também lera na segunda capa,  a referência à “Jacques Brel”,  disse o Escritor. Por isso,  Zóinho, o Segundo,  trouxera o recado amistoso: “- esquecessem o   dinheiro. Comecru  ficaria com o livro e os dois poderiam seguir  em paz!”.  Dediquei-lhe, “uma boa leitura  e assinei -  finalizou o Escritor com uma sinceridade irônica.  Zóinho, o Segundo,  e os outros, cada qual à sua maneira, registraram na memória,  o nome e o sobrenome de  quem  trafegou pela poesia,  teatro, cinema, vagueou pelo ar e navegou pelo mares  e  se lançou  ao cancioneiro popular francês,   de forma viva e brilhante. A “travessa Jacques Brel”,  no Jardim Cereja,   carregaria, para sempre, algumas linhas vivas  dessa emblemática  história.  

 

Texto:  Celso Lopes

Notas incidentais:

Glória partida ao meio   Paulo Martins -  Editora 7 Letras – RJ/2009

Jacques Brel – A magia da canção popular – Paulo Martins  Editora 7 Letras.