terça-feira, 20 de junho de 2023

DICAS VALIOSAS - UMBERTO ECO

 GOSTA DE ESCREVER?...QUER ESCREVER?

Segue uma DICA de  UMBERTO ECO...

As LISTAS sempre nos ajudam  de maneira prática  com  seu poder de inventariar,  relacionar,  elencar, etc. Por vezes,  surgem como enumeração ou  repetição com objetivo específico de acentuar algo. Alguns autores não se isentam do uso. É o caso de Umberto Eco, que dedica considerável capítulo no livro “Confissões de um jovem romancista”,  definido por “ Minhas listas”.

O autor justifica-se:” eu tive formação católica, e assim me acostumei a recitar e ouvir ladainhas. Ladainhas são, por natureza, repetitivas (...)”. Destacando que não há apenas listas verbais, mas também visuais, musicais e gestuais, o autor cita inúmeros exemplos de uso e adequação das listas usadas por  autores. Detalhe curioso é a  carta do próprio autor UE dirigida  ao filho de um ano de idade. O tema? Uma LISTA de armas de brinquedo para que o menino se  tornasse um “pacifista” na idade adulta. Vejamos um trecho da enorme lista:  “ Então seus presentes serão armas. Espingarda de cano duplo. Armas de repetição.Submetralhadoras. Canhões. Bazucas. Sabres. Exército de soldados de chumbo em uniforme de combate(...) paióis de polvora, contratorpedeiros. Metralhadoras. Adagas. Revólveres. Colts e Winchesters (...) Bombas. Arcabuzes.Colubrinas. Estilingues. Arcos e flexas. Balas de chumbo. Catapultas. Tições. Granadas...”. Depois de uma longa lista enumerativa de armas, eis como finaliza a carta ao filho: “(...) Em outras palavras, armas. Muitas armas. Esses, meu garoto, serão os pontos altos das suas noites de Natal.”

 Em O nome da rosa, Eco esclarece: “ tomei por empréstimo nomes de vários tipos de vagabundos, ladrões e heréticos ambulantes para dar uma ideia da grande confusão social e religiosa do seculo XIV”. E cita:  falsos monges, charlatães, embrulhões, truões esfarrapados e maltrapilhos, leprosos e estropiados, ambulantes, vagabundos, cantadores, clérigos sem pátria, estudantes itinerantes, trapaceiros, malabaristas, mercenários inválidos...”

Em outra obra, Baudolino, ao encontrarem um rio sem água,  Eco informa: “imaginei um  rio feito de pedras de diferentes tamanhos (...) e encontrei uma maravilhosa lista de pedras e outros minerais na História Natural (Plínio). Aqui vão alguns espécimes do meu catálogo:    

“ (...) era um fluir majestoso de rochas e de terra, que corria inarrestável, e podíamos perceber naquela correnteza de grandes rochas informes, placas irregulares, cortantes como lâminas, amplas como pedras tumulares, e entre uma e outra, cascalho, fósseis, pontos, escolhos, espontões (...).

 Tecendo oportunas análises entre as listas denominadas caóticas ou coerentes, Eco destaca, como diz,  o inventário da mais deliberadamente caótica de todas as listas, inventada por Borges e mencionada por Foucaut no prefácio de “As palavras e as coisas”. Nessa enciclopédia, propunha-se que os animais fossem divididos em: “ a) os que pertencem ao imperador b) os que foram embalsamados c) os que foram domesticados d) leitões em amamentação e)  sereias f) criaturas mitológicas e fabulosas g) cães abandonados h) os que são incluídos nessa classificação i) os que tremem como se fossem loucos j) os que são incontáveis k) os desenhados com um finíssimo pincel de pelo de camelo l) et cetera m) os que acabam de quebrar o vaso de flores n) os que à distância parecem moscas.”...                Depois desse mergulho profundo em suas diversificadas “listas”,  Eco assim finaliza o capítulo: Listas:  um prazer de ler e escrever. Estas são as confissões de um jovem escritor”.

Em meu conto DUELO SOBRE A MESA fiz uma certa paráfrase ou um ligeiro intertexto  com base nesse “rio de pedras” de Eco   Eis o trecho final:  

Um dos peritos, impressionado pelo fulgor do embate, chegou a citar, textualmente,  “o caótico rio de pedras”,  narrado pelo escritor  Umberto Eco*. “ E não sem razão; há de se acreditar, insistia o perito,  que no auge desse enfrentamento imperioso, o interior de ambos seguia em contínua ebulição, revelando uma torrente furiosa, tal qual uma “correnteza de grandes rochas informes, placas irregulares e cortantes como lâminas, e amplas como pedras tumulares (...)”.  Fortalecendo a narrativa técnica, o perito retomaria o “caótico rio de pedras”, criando, aleatoriamente, um  apoteótico final:  “nenhuma voz humana podia se fazer ouvir naquele instante fatal sobre o duelo na mesa;  embora ambos, ali,  tivessem o desejo de falar, de se despedirem de toda a carga de emoção que arrastavam consigo, não conseguiriam. O ‘rio de pedras’ interior que os conduzia, enfurecia-se cada vez mais, levando tudo ao redor  para as invisíveis vísceras da terra, pulverizando cascalhos, blocos e rochas para exprimir, talvez,  a impotência maior  do Homem e da Mulher frente ao embate  do vírus vencedor.”

Noutro conto,  “ FAZ DE CONTA QUE A GENTE NÃO VIU NADA “,  utilizei uma lista de nomes indicativos  de xingamentos desbocados ou palavrões dirigidos a um dos personagens. Vejamos:  “ -  Ô doutor, sou burro?!... O abusado, doutor,  me levando no bico...Eu, doutor, desculpe o cidadão aí atrás, fosse eu um boca-suja disparava as balas: arrombado, cuzão, desgraçado, caga-grosso, piopio, rabugento, mesquinho, estúpido,  arregaçado, peida-vento, caga-tora,  vira-lata,  puto,   boqueteiro, bosta, merda,  chupa-rola, chera-rola, viciado, xarope, mula, doente, conchavado, estorvo, recalcado...Nada, doutor,  nada que derrubasse os dois, o BURQUE  e o BOVE em pé no ringue, e  que se um caía,  quando levantava era ainda mais homem do que antes,  e que  foi o maior toma-lá-dá-cá que já existiu nessa vida, doutor!.. (...)

Ainda em complemento ao assunto, a seu modo, o Padre Antônio Vieira, considerado o “gigante da oratória sacra” e um dos maiores autores da língua portuguesa, dotado de talento e erudição, em seus Sermões faz uso de enumeações e/ou aliterações provocando surpreendentes narrativas. Vejamos um trecho do “ Sermão do Bom Ladrão (ou da Audácia”, onde afirma que na Índia portuguesa se conjugava o verbo roubar por todos os modos: “ furtam de todos os modos da arte... tanto lá chegam começam a furtar pelo modo indicativo... furtam pelo modo imperativo.. furtam pelo modo mandativo... furtam pelo modo optativo... furtam pelo modo conjuntivo... furtam pelo modo potencial...  furtam pelo modo permissivo...  furtam pelo modo infinitivo,   porque não tem fim o furtar com o fim do governo (...)

No Sermão do Espírito Santo, destaca: “ Vêde o que faz em uma pedra, a arte. Depois que desbastou o mais grosso (...) ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos: aqui desprega, ali arruga, acolá recama, e fica um homem perfeito, talvez um Santo que se pode por no altar (...)