“PALAVRAS CRUZADAS NÃO MENTEM”
Foram encontrados assim: sentados na sala, cada qual em seu canto da mesa com a cabeça
curvada sobre os braços; o olhar de
ambos, o olhar de cada um deles parecia,
certeiramente, dirigido ao outro. Lá estavam eles, imóveis e inertes até o momento em foram
descobertos. O filho, radicado em outro estado, o único do casal, cansara de ligar para o telefone da mãe e do
pai. A informação chegou ao zelador do prédio, que, pressentindo o silêncio e
um odor estranho no local, levou o
caso à polícia.
Instantes depois, chegava o aparato
técnico para o arrombamento da porta e posterior autópsia dos corpos. Ali no antigo Edifício
Maria Eliza, de 10 pavimentos, um prédio
característico dos anos 50, com andares individuais e restritas vagas de
garagem, o casal, já idoso, e ambos aposentados, era conhecido
como dona Branca, uma antiga professora de história, e o professor Pio, biólogo e chefe de
laboratório da faculdade, onde se conheceram ainda jovens. Ambos eram moradores do quinto andar, no apartamento
comprado há muitos anos naquele prédio antigo do bairro Bela Vista, em São Paulo. Quem
os conheceu, ainda que de vista, no dia a dia
do edifício, ou nas imediações, por onde sempre andavam, informava que havia dessas coisas entre eles. Saíam
e chegavam juntos. Sempre juntos, mas
era visível um embate desafiador que,
não raro, seguia-se após um silêncio
profundo; esse momento carregado, tenso, repentinamente, fazia brotar ao exterior, à vista de todos, o rancor íntimo de ambos, e então, as palavras, como pedras talhadas áspera, nuas
e pontiagudas, surgiam como dardos certeiros, como punhais,
ora atingindo um, ora outro,
transformando ambos em ávidos combatentes de um
uma guerra eterna e incessante.
Sobre a mesa, a perícia técnica
apresentou os devidos registros fotográficos, onde se via um considerável
número de palavras cruzadas, abertas em páginas diversas, um Volume sisudo de cor marrom, sem indicação de capa, um livro de poesia, além de dois dicionários, também abertos, e com visível aparência de que pertenciam, distintamente, a cada um deles; pelas digitais, o Caldas Aulete seria o da Mulher, e o Aurélio, o do Homem. Os corpos, nesse período de “repouso”, segundo o laudo, datavam de pelos
menos 24 horas antes, o que indicaria o
final de um eventual embate ocorrido, realmente, no dia anterior. Para os peritos, as sandálias da Mulher deixaram rastros
indicativos de horário, com abrangência
para mais ou para menos, às 12 horas, meio dia, um horário suposto como o da refeição de
ambos. Mapeado este ponto, observou-se
que a Mulher teria se deslocado para fora
da mesa da copa, e por fim, alguns metros dentro da residência, até à cozinha, onde tomara café na
Térmica, depois seguira com pausa
relativa ao banheiro, e também no quarto junto às gavetas da cômoda, onde foram percebidos indícios de movimentação nas roupas que, após
retiradas, foram dobradas, redobradas e guardadas novamente. As pistas seguiam a Mulher também para um outro ambiente. Seus passos detiveram-se durante um bom
tempo, frente à estante da sala. Ali,
como se pusesse olhos para escolher algum livro, retirara o Volume marrom, cuja
página interna destacava: “Instrumentos de Guerra da Antiguidade”. Também foi registrado no laudo da Mulher, por
um dos peritos: “ é bem provável que tivesse conhecimento deste livro desde os
tempo das aulas do seu curso de história”. O volume permitiria demonstrar aos alunos um verdadeiro campo de batalha, destacando instrumentos e estratégias que assustavam
e arrasavam os antigos exércitos
na idade antiga e média. Seu uso, pressupunha dizimar Inimigos inteiros, com a força daquelas potentes armas de Guerra. A foto do perito, de uma pagina aberta e específica do
Volume, indicava, por exemplo, o “Apito
da morte”. Descrito ali como “Um objeto sonoro criado pelos Astecas, que soava de forma aterrorizante, sendo utilizado em batalhas para simular estridentes gritos de pessoas em sofrimento, induzindo os adversários a um estado de
transe desesperador, colocando-os à mercê do exercito dominante”
Apanhado o livro, a Mulher se dirigira à mesa do embate. Então, ali, avaliaram os
técnicos, a partir dali, o silêncio voltara a perdurar. Assim,
era quase possível “ver”, ou mesmo “sentir”
a caneta nas mãos da Mulher, dando mostras da sua agilidade na escolha das palavras endereçadas ao preenchimento das Cruzadas. Seguindo a lógica desses passos, a Mulher, concentrada no desafio
vertical e horizontal, sem dar trégua ao adversário, seguia firme e impiedosa, comendo pelas beiradas, buscando armas ferinas para fazer o uso preciso com os seus
pensamentos; o registro indicava
que, num determinado instante, os olhos da Mulher foram ao encontro dos olhos do Homem,
que a fitava do outro canto da mesa. O abalo causado por esse olhar fulminante, por
certo, fragilizara o oponente durante um longo tempo – garantiram os Peritos. Nesse ponto, um deles alertara que, seguindo
as pistas sobre a mesa, algo de pessoal
sobrepunha-se naquele momento. “ percebi – destacou o Perito - que dois nomes
levantaram evidências, além de uma
data. O primeiro poderia ser, digamos,
um buquê de flores... o segundo, esse em sintonia com o primeiro, o nome de uma
mulher: “Rose”. Nessa direção, o perito assinalara que poderia ter havido ali,
um estranho caso. Talvez indícios de um triângulo amoroso. Ou uma falta imperdoável,
pois a data assinalava o dia do
aniversário de dona Branca. Neste ponto, não aprofundaram tanto, frisaram que, apenas indicavam como
referências compiladas para
atendimento aos serviços da autópsia.
O Homem, ficara evidente pelos sinais
indicativos da sua chegada ao prédio, havia saído por horas a fio. Fora visto
no dia anterior passando pela portaria do prédio com embrulhos amarrados para
facilitar o transporte. O Zelador sabia
de cor e salteado o produto daqueles embrulhos. Quanto interpelado, afirmara
sem tropeço: “ São palavras cruzadas. O professor Pio, uma vez por semana vai
nos sebos da Luz e imediações, comprar
essas revistas por preço inferior ao de capa. São baratinhas, ele
garantia. As difíceis ficam pra Dona
Branca, as médias e as fáceis eram
dele.”
Os sinais de passos levavam o Homem,
após sua chegada em casa, direto para a mesa do embate, à exceção de uma
pequena parada que fizera na cozinha, onde tomara meio copo d’água, conforme
detalhamento pericial. Já na praça de
Guerra, o espalhamento das revistas
indicava que a estratégia do Homem fora rápida. A ordem sequencial das suas
revistas apresentava-se, como fosse suas
próprias armas de combate, prontas para o disparo. Por certo, inferiram os peritos, o Professor
Pio sabia das suas limitações no palco
de guerra de um jogo histórico. Afinal,
afirmaram, dona Branca lecionara anos e
anos sua matéria de História Antiga, dominando tópico por tópico – haja vista,
sua biblioteca disponível na sala. Ao
Homem, sobrava-lhe alguns recursos, indicado por publicações em seu nome, sobre filmes, teatro,
música, além de alguns volumes referente à biologia e armas químicas. Tudo
isso, em espaço identificado como dele, junto a um canto da estante. Solicitado a falar sobre o contato de ambos,
o filho destacara a prodigiosa memória da Mãe, e portanto, quase imbatível nas
Cruzadas, além de, certa vez, num jantar de “Bodas”, ter reconhecido que
ninguém sabia mais sobre filmes, teatro e armas químicas que o marido,
completando que fora a única vez que vira a mãe dando o braço a torcer:
O silencioso embate seguia o seu
curso. As palavras, ali, dispostas,
orientadamente, em cada página aberta das revistas, não deixavam por menos. Palavras Cruzadas não mentem – garantiam os Peritos
- já próximos a fechar o laudo. Em rápida leitura, via-se que a Mulher não
deixava nada no vazio, com o seu hábito das perguntas retóricas naquele antro das
palavras cruzadas. Novamente,
“pressentia-se” sobre a mesa, a voz interpretativa e explosiva sobre o território
da disputa: “ - Animal mitológico associado à virgindade, que possui a forma de um cavalo
com um único chifre frontal?”.
Bingo.
“Unicórnio”. Assim estava assinalado pela Mulher. Por vezes, disseram, simplesmente ela perguntava por perguntar, pois, num átimo, já
se debruçava sobre os quadradinhos do papel, desenhando as letras indicadas nos
espaços solicitados. Ao Homem,
disseram, que por certo ouvia
tudo, porém fingia não ouvir,
sobrava-lhe o sofrimento e a dor diante de uma
pergunta quase sussurrada para si mesmo: “- O nome de uma das sete
maravilhas do mundo antigo?”
Por isso, a voz do Homem saíra
baixa. Os sinais mostravam, vivamente,
que ele estancara-se com a caneta no ar,
pois a pergunta dava a ela, à Mulher,
muitos e muitos pontos de vantagem.
A história antiga não era mesmo o
seu forte. Talvez visse na Mulher,
nas entrelinhas sonoras daquele embate infernal
que dominava a sala, um sorrisinho maroto
e confiante, apontando-lhe uma das armas
de Guerra. Aquelas tamanhas e poderosas. E bem
provável que a Mulher dissera a si mesma, que usaria primeiro uma Catapulta, arma de
ataque capaz de quebrar silêncios e barreiras dos homens, especialmente os
encastelados e protegidos em cidades muradas. Haveria de destruí-lo, caso ele persistisse
naquela paralisia. Lançaria sobre seu adversário as mais potentes armas, que haveriam de liquidá-lo com pedras e pedregulhos lançados aos muros do seu palácio. Recuasse, portanto, ou então, receberia o golpe mortal:
haveria de lhe atirar a maldição das esposas incompreendidas!...
Segundo os peritos, era visível que o Homem
se agitara, sofrendo tamanhas pancadas e
ataques. Mas não fora difícil notar através das Cruzadas espalhadas sobre a mesa,
que a mente do Homem dirigira-o para uma
vida inteira à frente do laboratório químico da escola, onde eles se viram pela primeira vez, e para sempre.
Havia indicativos de que a Mulher levara-o para leituras adicionais, o que dera a ele maior sustância no embate das
Cruzadas horizontais e verticais, com temas
sobre filmes, música, teatro,
incluindo o Universo, as Galáxias, armas
químicas, além de, claro, a sua especialidade: a Biologia e suas relações e
interações dos seres vivos com seu
ambiente. .
Pela disposição esparramada na mesa,
garantem os peritos, que, por vezes, a Mulher, continuadamente, seguia, sim, com perguntas retóricas, pois, num átimo, as suas impressões
digitais e papiloscópicas disponíveis, além de impressões palmares, plantares e
poroscopia – todos a serviço da perícia para a autopsia– indicavam que ela já se debruçava sobre os quadradinhos do papel
, desenhando as letras corretas. O
Homem ouvia. Ele ouvia ou fingia ouvir a pergunta sussurrada por ela, novamente: “- O nome
de uma das sete maravilhas do mundo antigo?”. Era inevitável, garantiram os técnicos, agora ele receberia o golpe mortal que ela lhe preparara; haveria de
atirar- lhe a maldição das
esposas quando abandonadas, tal qual, as pragas e animais putrefatos
endereçados pelas armas ao abrigo dos inimigos
para infestar-lhes, muitas doenças e
epidemias....
O Homem, garantem, sentiu o baque. Doeu-lhe, a força desse punho
gigante. Por isso, olhava, agora, de
dentro do silêncio, com temor, para dona
Branca, enquanto lançava
mão do seu Aurélio para se livrar do peso, pois precisava
ganhar tempo. E para isso, teria de ser
ágil nessa descoberta: O nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo!.
Sofria com isso. As tentativas pareceram infrutíferas. Não localizava as referências como
previra. O silêncio seguia naquele
território de batalhas, quebrado, apenas, pela
retórica ascendente da
Mulher.
-
o Santo Graal também é chamado de.....?
Agora, informaram os Peritos,
adicionando ao laudo: ‘ ali na sala,
avolumada de silêncio, podia ser
percebido, pois a leitura é crível, os contornos grandiosos dos olhos de ambos,
do Homem e da Mulher, como fossem eles,
Dona Branca e o Professor Pio, os guerreiros
autênticos das antigas Cruzadas, onde estavam a postos como
os soldados de Cristo, identificados com a cruz sagrada. Então, enquanto a Mulher já se debruçava nas Cruzadas horizontais, sem sequer uma dúvida, mínima que fosse, ganhando
tempo nos desafios mais difíceis
de uma Coquetel Super, um certo
vazio se instalara no ambiente como fosse uma planta que encontrasse solo fértil e a
umidade necessária para o surgimento
dos brotos, ávidos de frutificação. Agora, agora
as horizontais do Homem pediam mesmo ajuda aos Deuses da sabedoria: - Trepadeira
comum em muros, com quatro letras? -
A flor da idade, no sentido figurado, com
nove letras?...
Enquanto o Homem entendia a necessidade de respostas, ela, a Mulher, garantem os peritos, ela, ali, criava, a seu jeito, um universo
sob domínio. Lia as verticais, mas,
espertamente, respondia até mesmo as
horizontais. Com isso, ganhava a olhos vistos, uma velocidade de maratonista na execução das
tarefas. As palavras
cruzadas exigem mais que um
passatempo, ironizava em seu silêncio, como se mostrasse a ele, ao Homem, as
linhas formando os quadrados em branco na vertical e na horizontal; e
insistia sob o silêncio: as linhas não vacilam, as Cruzadas não mentem, não
dão golpe, nem disfarçam. Mostre-me ser capaz de preencher pela
descoberta, pela sutileza dos nomes, pela grandeza da escolha...e mais: a Mulher preparou-lhe um
olhar fulminante repetindo uma
poesia latente que a sua mente captara no
livro aberto sobre a mesa: “Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto,
lutamos
mal rompe a manhã. São
muitas, eu pouco. Algumas,
tão fortes como o javali..(...)” A
Mulher, então, quebrara
o silêncio e embasbacava o Homem pelo poder das palavras ditas: “ palavra, palavra – digo exasperada - se me desafias, aceito o combate”. E assim seguiu ela, nesse diálogo imaginário de palavras para todas as coisas, assim como, acusações, falta de conhecimento, agressões,
ironias, desatenção, agressividade... E então, retomou os seus conhecimentos de história, e sob suas
mãos, as palavras passaram a ganhar formas definidas de ataque: -
primeiro as pontiagudas, como
fossem setas de um lápis ... depois as cortantes, como facas e tesouras, e
depois as explosivas, como pólvora para canhões, fuzis, revólveres,
espingardas e metralhadores. E
assim, disseram os técnicos, lançara,
inapelavelmente, sobre Homem, sobre o
adversário, de forma incisiva, os seus Escudos
especiais - “tal qual um canivete
suíço em tamanho dimensionado”, afirmaram os Peritos. Ao ataque, ela dizia a si mesma. E logo mostrava-lhe as garras
impregnadas de lâminas e lanças serrilhadas, o que a levaria à vitória em qualquer combate
de contato físico. Ao Homem, lutando pela vida, sobrava-lhe a atenção de se manter a uma distância
adequada, para não ser ferido de morte.
Por instantes, disseram, os grupos de letras
impregnadas na Coquetel Super pareceram arrancar-lhe pedaços do próprio corpo. Mas
eis que, para sua festa, surgiram os filmes!...Filmes,
teatro, música, artistas e afins.
Sorriu muito, sorriu largo, o Homem, pois, estava, momentaneamente, a salvo;
ganharia distância, agora, nas paginas das Cruzadas: E assim seguiu ele
devorando com gulodice as anotações: - Em que cidade nasceu Yusuf Islam (que era
conhecido com o nome de Cat Stevans? - Qual série de TV tinha como protagonista o
Ator Peter Falk? - Personagem da
Commedia Dell’Arte, conhecido como uma das figuras mais tradicionais do
Carnaval? ...
Como
previra, o Homem avançara três páginas no conjunto das oito revistas Cruzadas
sobre a mesa. Mas, ainda era pouco. Entretanto, com o rabo de olhos, como
indicavam as nuances de análises com fotocélulas dos Peritos, percebera que a incomodara. A Mulher, ali, embatucara-se ao definir os símbolos químicos do Enxofre, Lítio, Bário,
Cobalto, Cádmio, Carbono, Cobre, Niquel,
Potássio, Fluor, Iodo.... Ele ouviu, sim, a
ênfase retórica, insistente e carregada
de nervosismo:
- Enxofre...enxofre...enxofre?.... Lítio... Litio...Lítio?...
E então, assim à frente, o Homem, buscou recursos de que dispunha na sua área. Mesmo afastado há muito das bancadas do
laboratório químico, a mente não lhe faltaria nessa hora. A toxicidade de substâncias químicas dançavam à sua frente, tais como, o
gás mostarda, o cloro, o ácido
cianídrico, o gás sarin.... mas ele
definira-se, naquele instante, informaram os laudos, pelo Napalm.
Para os técnicos, “ o conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina
gelificada, utilizados como armamento militar.”. O gel pegajoso e incendiário haveria de atacá-la aos moldes idênticos do seu uso nas guerras do Vietnã, Laos e Camboja... A Mulher tremeu,
quase derrotada, ao se deparar com a força química e o poder eficiente dessa
bomba incendiária que queima e queima e deixa marcas irreparáveis... Nesse
ínterim, a caminho da vitória, garantem os técnicos, com base em referências de busca no Aurélio,
além do conhecimento disponível das publicações,
o Homem lembrara-se do engenheiro
Jeff O. Stanford - o Chefe do Laboratório Químico nos USA, responsável pela preparação e envio do Napalm às frentes americanas no Vietnã,
que experimentara o grito antibélico do
mundo na própria pele, na própria alma; e culpando
a si mesmo, pela obediência cega às
normas e às ordens da sua Corporação,
no cumprimento rigoroso da sua missão de apoio às políticas
de guerra, admitindo toda a sua culpa naquele genocídio, suicidara-se.
Diante dessa quase desistência do
Homem, dessa derrocada que sentira na pele, novamente a
Mulher ganharia a dianteira. Agora, ultrapassaria páginas e páginas vencendo questões do mundo
antigo: - Península
que abriga a Grécia e a Croácia? - Nome
de Deuses da Mitologia Grega? - Tribunal
em Jerusalém formado por sacerdotes, anciãos e escribas?...
E, então, decidida
a trucidá-lo, sem perdão, agiu de
forma implacável, lançando mão de armas decisivas. Com destreza e maestria dona Branca traria para
a sua frente de trabalho, os Culverins, segundo os peritos, “objetos originários dos primeiros canhões,
armas de fogo medievais atirados contra a
cavalaria inimiga, a ser dizimada, sem
perdão”. E mais,
com um simples gesto, a Mulher lembrara-se dos Estrepes, segundo os técnicos,” as fotos
revelavam um material retorcido de pregos e metais, como espinhos que se espalham
ao longo dos campos de batalha”.. E então, podia se ver a Mulher, indicado
pelas marcas das sandálias, espalhando e jogando-os sobre o chão da sala, pelos corredores adjacentes ao banheiro, à cozinha e
varanda, fazendo uso da porção que lhe cabia
desses estrepes, usados para retardar o Homem em sua corrida nas Cruzadas. Desviando desse campo minado que Mulher lhe
preparara, o Homem seguia titubeando nas garras do abecedário, ainda que,
levemente, sob seu controle: - Instrumento usado para aplicar a pena
de morte durante a revolução francesa?... - Substância
encontrada em vegetais, de grande importância para o funcionamento do intestino?.
No entanto, as páginas seguintes
formariam a barreira implacável. A cada item, o Homem sentia-se sucumbir diante
dela. Sofria a cada pergunta retórica que fingia não ouvir:
- O maior império do mundo (em duração)? - Rei
pagão denominado pelos judeus como o Messias? - Primeiro nome de um grande imperador grego,
que venceu os Persas? - Nome com o qual os
reis do Egito são conhecidos? ...- Lugar famoso, cujo nome significa entre rios?
E então, suas muralhas e fortificações
postas ao chão naquela Guerra, levaram-no à rendição. O ar lhe faltava –
disseram os exames disponíveis à Autopsia. Portanto, acomodara-se na mesa com a
cabeça inclinada sobre o braço, e o olhar, certeiramente, nas pupilas da
Mulher. E então, a Mulher, com sua respiração ofegante naquele
campo de batalha sangrenta, em que vencera o homem encastelado, em que colocara sob seus pés tudo o que
pode naquela luta, silenciosamente
inumana, reconhecera, ao manter os olhos
fixos no seu antagonista, conforme dados da polícia técnica sobre os registros oculares captados com novas tecnologias de observação, reconhecera, nele, um grande guerreiro, um
desafiador consistente e à altura. O que
a levara à rendição definitiva. O ar lhe faltava – disseram os exames
disponíveis. Portanto, também ela, também dona Branca, acomodara-se na mesa com a cabeça inclinada
sobre o braço, e o olhar, certeiramente,
dirigido às retinas do professor Pio.
Dona Branca, ainda que inovasse nesse
desafio, ampliando as suas técnicas no jogo das Cruzadas, e se
aprimorasse, cada vez mais, na forma rústica
para decifrar códigos, chegando mesmo, durante sua fase mais produtiva, a ser
considerada como autodidata no “Cruciverbalismo”, informariam os técnicos no laudo final, que, “ Tal qual os pioneiros das Cruzadas, a Mulher
revelava um virtuosismo destacado, ao usar, por exemplo, todas as letras e dígrafos do alfabeto, além
de mensagens ocultas, em cada trabalho. E mais – podia-se ver, num deles,
um diagrama cruzadístico, incluindo todos os planetas do Sistema Solar, em uma disposição
semelhante às órbitas dos mesmos em relação ao Sol.”. Nesse sentido, as Cruzadas de Dona Branca,
ainda que poucas, apresentavam um modelo digno de estudo. E foi o que prometi aos Peritos, quando fizeram chegar
os seus escritos à editoria da “Cruzadas em Revista”, onde, ainda hoje,
atuo em contínua busca de talentos e preciosidades nesse campo de entretenimento.
Nota: o parágrafo final mantém referências adaptadas, livremente,
sobre “Euro Oscar”, reconhecido autor brasileiro de palavras cruzadas e
charadas. Os “versos poéticos”, editados, são do poema “O Lutador”, de Carlos Drummond de
Andrade.
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