quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

PALAVRAS CRUZADAS NÃO MENTEM


“PALAVRAS CRUZADAS NÃO MENTEM”







Foram encontrados assim:  sentados na sala,  cada qual em seu canto da mesa com a cabeça curvada sobre os braços;  o olhar de ambos, o olhar de cada  um deles parecia,  certeiramente,  dirigido ao outro. Lá estavam eles,  imóveis e inertes até o momento em foram descobertos. O filho, radicado em outro estado, o único do casal,  cansara de ligar para o telefone da mãe e do pai. A informação chegou ao zelador do prédio, que, pressentindo o silêncio e um  odor estranho no local, levou o caso  à  polícia.  Instantes depois,  chegava o aparato técnico para o arrombamento da porta e  posterior  autópsia dos corpos. Ali no antigo Edifício Maria Eliza, de 10 pavimentos, um  prédio característico dos anos 50, com andares individuais e restritas vagas de garagem, o casal, já idoso, e ambos aposentados,  era conhecido  como dona Branca, uma antiga professora de história,   e o professor Pio, biólogo e chefe de laboratório da faculdade, onde se conheceram ainda jovens. Ambos eram moradores  do quinto andar, no  apartamento  comprado há muitos anos naquele prédio antigo  do bairro Bela Vista, em São Paulo.    Quem os conheceu, ainda que de vista, no dia a dia  do edifício, ou nas imediações, por onde sempre andavam,  informava que havia dessas coisas entre eles. Saíam e chegavam juntos. Sempre juntos,  mas era visível um  embate desafiador que, não raro, seguia-se após um  silêncio profundo; esse momento carregado, tenso,  repentinamente,  fazia brotar ao exterior, à vista de todos,  o rancor íntimo de ambos, e então,  as palavras, como pedras talhadas áspera, nuas e  pontiagudas,  surgiam como dardos certeiros,  como punhais,  ora atingindo  um, ora outro, transformando ambos em  ávidos  combatentes  de um  uma guerra  eterna e  incessante.  
Sobre a mesa, a perícia técnica apresentou os devidos registros fotográficos, onde se via um considerável número de palavras cruzadas, abertas em páginas diversas,   um Volume sisudo de cor marrom,   sem indicação de capa, um livro de poesia,  além de dois dicionários, também abertos,   e com visível aparência  de que pertenciam, distintamente,  a cada um deles;  pelas digitais, o Caldas Aulete seria o  da Mulher, e o Aurélio, o do Homem.  Os corpos, nesse período de  “repouso”, segundo o laudo, datavam de pelos menos 24 horas antes,  o que indicaria o final de um eventual embate ocorrido, realmente, no dia anterior.  Para os peritos,  as sandálias da Mulher deixaram rastros indicativos de horário,  com abrangência para mais ou para menos, às 12 horas, meio dia,  um horário suposto como o da refeição de ambos.  Mapeado este ponto, observou-se que a Mulher teria se deslocado para  fora da mesa da copa,  e por fim,  alguns metros  dentro da residência,  até à cozinha, onde tomara café na Térmica,  depois seguira  com  pausa relativa ao banheiro, e também no quarto junto às  gavetas da cômoda,  onde foram percebidos   indícios de movimentação nas roupas que, após retiradas, foram dobradas, redobradas e guardadas novamente.   As pistas seguiam a  Mulher também para um outro ambiente.  Seus passos detiveram-se durante um bom tempo,  frente à estante da sala. Ali, como se pusesse olhos para escolher algum livro, retirara o Volume marrom,   cuja página interna destacava:  Instrumentos de Guerra da Antiguidade”.  Também foi registrado no laudo da Mulher, por um dos peritos:  “ é bem provável que  tivesse conhecimento deste livro desde os tempo das aulas do seu  curso de história”.  O volume permitiria demonstrar aos alunos  um verdadeiro campo de batalha, destacando  instrumentos e estratégias que    assustavam  e  arrasavam os antigos exércitos na idade antiga e média. Seu uso, pressupunha dizimar  Inimigos inteiros, com a força daquelas  potentes armas de Guerra.  A foto do perito,  de uma pagina aberta e específica do Volume,  indicava, por exemplo,  o “Apito da morte”. Descrito ali como “Um objeto sonoro criado pelos Astecas,  que soava de forma   aterrorizante, sendo  utilizado em batalhas para simular  estridentes gritos  de pessoas em sofrimento,  induzindo os adversários a um estado de transe desesperador, colocando-os à mercê do exercito dominante” 
Apanhado o livro,  a Mulher se dirigira  à mesa do embate. Então, ali, avaliaram os técnicos,  a partir dali,   o silêncio voltara a perdurar.   Assim, era quase possível “ver”, ou mesmo “sentir”  a caneta nas  mãos da Mulher,  dando mostras da   sua agilidade na escolha das palavras  endereçadas ao preenchimento das Cruzadas.  Seguindo a lógica desses passos, a  Mulher, concentrada  no desafio  vertical e horizontal, sem dar trégua ao adversário,  seguia firme e  impiedosa, comendo  pelas beiradas,  buscando armas  ferinas para fazer o uso preciso com os  seus  pensamentos;  o registro indicava que, num determinado instante, os olhos da Mulher foram  ao encontro dos olhos  do Homem,  que a fitava do outro canto da mesa.  O abalo causado por esse olhar fulminante, por certo, fragilizara o  oponente  durante um longo tempo – garantiram os Peritos.  Nesse ponto, um deles alertara que, seguindo as pistas sobre a mesa,  algo de pessoal sobrepunha-se naquele momento. “ percebi – destacou o Perito - que dois nomes levantaram  evidências, além de uma data.  O primeiro poderia ser, digamos, um buquê de flores... o segundo, esse em sintonia com o primeiro, o nome de uma mulher: “Rose”. Nessa direção, o perito assinalara que poderia ter havido ali, um estranho caso.  Talvez indícios de um  triângulo amoroso. Ou uma falta imperdoável, pois a  data assinalava o dia do aniversário de dona Branca. Neste ponto,  não aprofundaram tanto, frisaram que,  apenas indicavam  como  referências compiladas  para atendimento aos  serviços da  autópsia.
O Homem, ficara evidente pelos sinais indicativos da sua chegada ao prédio, havia saído por horas a fio. Fora visto no dia anterior passando pela portaria do prédio com embrulhos amarrados para facilitar o transporte.  O Zelador sabia de cor e salteado o produto daqueles embrulhos. Quanto interpelado, afirmara sem tropeço: “ São palavras cruzadas. O professor Pio, uma vez por semana vai nos sebos da Luz  e imediações, comprar essas revistas por preço inferior ao de capa. São baratinhas, ele garantia.  As difíceis ficam pra Dona Branca, as médias e  as fáceis eram dele.”
Os sinais de passos levavam o Homem, após sua chegada em casa, direto para a mesa do embate, à exceção de uma pequena parada que fizera na cozinha, onde tomara meio copo d’água, conforme detalhamento pericial.  Já na praça de Guerra,  o espalhamento das revistas indicava que a estratégia do Homem fora rápida. A ordem sequencial das suas revistas apresentava-se, como fosse  suas próprias armas de combate, prontas para o disparo.  Por certo, inferiram os peritos, o Professor Pio   sabia das suas limitações no palco de guerra de um  jogo histórico. Afinal, afirmaram,  dona Branca lecionara anos e anos sua matéria de História Antiga, dominando tópico por tópico – haja vista, sua biblioteca disponível na sala.  Ao Homem, sobrava-lhe alguns recursos, indicado por  publicações em seu nome, sobre filmes, teatro, música, além de alguns volumes referente à biologia e armas químicas. Tudo isso, em espaço identificado como dele, junto a um canto da estante.  Solicitado a falar sobre o contato de ambos, o filho destacara a prodigiosa memória da Mãe, e portanto, quase imbatível nas Cruzadas, além de, certa vez, num jantar de “Bodas”, ter reconhecido que ninguém sabia mais sobre filmes, teatro e armas químicas que o marido, completando que fora a única vez que vira a mãe dando  o braço a torcer: 
O silencioso embate seguia o seu curso.  As palavras, ali, dispostas, orientadamente, em cada página aberta das revistas,  não deixavam por menos.  Palavras Cruzadas não mentem – garantiam os Peritos -  já próximos a fechar o laudo.  Em rápida leitura, via-se que a Mulher não deixava nada  no vazio, com o seu  hábito das perguntas  retóricas naquele antro  das  palavras cruzadas.  Novamente, “pressentia-se” sobre a mesa,  a voz  interpretativa e explosiva sobre o território da disputa:  “ - Animal mitológico associado à virgindade, que possui a forma de um cavalo com um único chifre frontal?”.   
Bingo.  “Unicórnio”. Assim estava assinalado pela Mulher.  Por vezes, disseram,  simplesmente ela  perguntava por perguntar, pois, num átimo, já se debruçava sobre os quadradinhos do papel,  desenhando as letras indicadas nos espaços  solicitados.   Ao Homem,  disseram,  que por certo ouvia tudo, porém fingia não ouvir,  sobrava-lhe o  sofrimento e a dor  diante de   uma  pergunta quase sussurrada para si mesmo: “- O  nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo?”
Por isso, a voz do Homem saíra baixa.  Os sinais mostravam, vivamente, que ele  estancara-se com a caneta no ar, pois a pergunta dava a ela, à Mulher,   muitos e muitos pontos de vantagem.  A  história antiga não era mesmo o seu forte.  Talvez visse na Mulher, nas   entrelinhas sonoras daquele embate infernal que dominava a sala,  um sorrisinho maroto e confiante, apontando-lhe  uma das armas de Guerra. Aquelas tamanhas e poderosas.   E bem provável que  a Mulher  dissera a si mesma,  que usaria primeiro uma Catapulta, arma de ataque capaz de quebrar silêncios e barreiras dos homens, especialmente os encastelados  e protegidos em  cidades muradas.  Haveria de destruí-lo, caso ele persistisse naquela paralisia. Lançaria sobre seu adversário as mais potentes armas,  que haveriam de liquidá-lo com pedras e  pedregulhos lançados aos muros do seu palácio.  Recuasse, portanto,  ou então,  receberia o golpe  mortal:  haveria de lhe atirar a maldição das esposas incompreendidas!...
Segundo os peritos, era visível que o Homem se agitara,  sofrendo tamanhas pancadas e ataques.  Mas não fora difícil notar  através das Cruzadas espalhadas sobre a mesa, que a mente do Homem dirigira-o para uma  vida inteira à frente do  laboratório químico da escola, onde eles  se viram pela primeira vez, e para sempre. Havia indicativos de que a Mulher levara-o  para leituras adicionais,  o que dera a ele maior sustância no embate das Cruzadas horizontais e verticais, com temas   sobre   filmes, música, teatro, incluindo o Universo, as Galáxias,  armas químicas, além de, claro, a sua especialidade: a Biologia e suas relações e interações dos  seres vivos com seu ambiente. .
Pela disposição esparramada na mesa, garantem os peritos, que, por vezes, a Mulher, continuadamente,  seguia, sim, com  perguntas retóricas, pois, num átimo, as suas impressões digitais e papiloscópicas disponíveis, além de impressões palmares, plantares e poroscopia – todos a serviço da perícia para a autopsia– indicavam que ela  já se debruçava sobre os quadradinhos do papel , desenhando as letras corretas.   O Homem ouvia. Ele ouvia ou fingia ouvir a pergunta sussurrada por ela,   novamente:  - O nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo?”.  Era inevitável, garantiram os técnicos,  agora ele receberia o golpe  mortal que ela lhe preparara;  haveria de  atirar- lhe  a maldição das esposas quando abandonadas, tal qual, as pragas e animais putrefatos endereçados pelas armas  ao abrigo dos inimigos para   infestar-lhes, muitas doenças e epidemias....
O Homem, garantem,  sentiu o baque. Doeu-lhe, a força desse punho gigante.  Por isso, olhava, agora, de dentro do silêncio,  com temor, para dona Branca,  enquanto  lançava  mão do seu  Aurélio  para se livrar do peso,  pois  precisava ganhar tempo. E para isso, teria de  ser ágil nessa descoberta:   O nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo!.   Sofria com isso.  As tentativas pareceram infrutíferas.   Não localizava as referências como previra.  O silêncio seguia naquele território de batalhas,  quebrado, apenas,  pela  retórica ascendente  da Mulher.  

- o  Santo Graal também é chamado de.....?

Agora, informaram os Peritos, adicionando ao laudo:  ‘ ali na sala, avolumada de  silêncio, podia ser percebido, pois  a leitura é crível,  os contornos grandiosos dos olhos de ambos, do Homem e da Mulher,   como fossem eles, Dona Branca e o Professor Pio,  os guerreiros autênticos  das   antigas Cruzadas, onde estavam a postos como os  soldados de Cristo,  identificados com a cruz sagrada.  Então, enquanto a Mulher já se  debruçava nas Cruzadas horizontais, sem  sequer uma dúvida, mínima que fosse,   ganhando  tempo  nos desafios mais difíceis de uma  Coquetel Super,  um certo  vazio  se instalara  no ambiente como fosse  uma planta que encontrasse solo fértil e a umidade necessária  para o  surgimento  dos  brotos,  ávidos de frutificação. Agora,  agora   as horizontais do Homem pediam mesmo ajuda aos Deuses da sabedoria:   - Trepadeira comum em muros, com quatro letras?  - A flor da idade, no sentido figurado, com nove letras?...
Enquanto o Homem  entendia a  necessidade de  respostas,  ela, a Mulher, garantem os peritos,  ela, ali, criava, a seu jeito, um universo sob domínio. Lia as verticais,  mas, espertamente,  respondia até mesmo as horizontais. Com isso, ganhava a olhos vistos,  uma velocidade de maratonista na execução das tarefas. As palavras cruzadas exigem mais que  um passatempo, ironizava em seu silêncio, como se mostrasse a ele, ao Homem,  as   linhas formando os quadrados em branco na vertical e na horizontal; e insistia  sob o silêncio:  as  linhas  não vacilam,  as Cruzadas não mentem,   não dão golpe,  nem disfarçam.  Mostre-me ser capaz de preencher pela descoberta, pela sutileza dos nomes, pela grandeza da escolha...e mais:   a Mulher preparou-lhe  um  olhar fulminante  repetindo uma poesia latente que a sua  mente captara no livro aberto sobre a mesa:   “Lutar com palavras  é a luta mais vã.  Entanto,  lutamos  mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco.   Algumas, tão fortes como o javali..(...)”   A Mulher,  então,  hghquebrara o  silêncio e  embasbacava o Homem  pelo poder das palavras ditas: “ palavra, palavra – digo exasperada -   se me desafias,  aceito o combate”.  E assim seguiu ela,   nesse  diálogo imaginário  de palavras para todas as coisas,   assim como,  acusações, falta de conhecimento, agressões, ironias, desatenção, agressividade... E então, retomou os seus   conhecimentos de história, e sob suas mãos, as palavras passaram a ganhar formas definidas de ataque:  -   primeiro  as pontiagudas, como fossem  setas de um  lápis ... depois as  cortantes,  como facas e  tesouras,  e  depois  as explosivas, como  pólvora para canhões,  fuzis,  revólveres,    espingardas e  metralhadores.  E assim, disseram os técnicos,  lançara, inapelavelmente,  sobre Homem, sobre o adversário, de forma incisiva, os seus Escudos especiais -   “tal qual um canivete suíço em tamanho dimensionado”, afirmaram os Peritos.  Ao ataque,  ela dizia  a si mesma. E logo mostrava-lhe as garras impregnadas de lâminas e lanças serrilhadas,  o que a levaria à vitória em qualquer combate de contato físico.   Ao Homem,  lutando pela vida,  sobrava-lhe a atenção de se manter  a uma  distância adequada, para não ser ferido de morte.   
Por instantes, disseram, os grupos de letras impregnadas na Coquetel Super pareceram arrancar-lhe pedaços do próprio corpo. Mas eis que, para sua festa,  surgiram os filmes!...Filmes, teatro, música,  artistas  e afins.  Sorriu muito, sorriu largo, o Homem,  pois, estava, momentaneamente,  a salvo;  ganharia distância, agora, nas paginas das Cruzadas: E assim seguiu ele devorando com gulodice as anotações:  - Em que cidade nasceu Yusuf Islam (que era conhecido com o nome de Cat Stevans?    - Qual série de TV tinha como protagonista o Ator Peter Falk?  - Personagem da Commedia Dell’Arte, conhecido como uma das figuras mais tradicionais do Carnaval? ...
Como  previra, o Homem avançara  três  páginas no conjunto das oito revistas Cruzadas sobre a mesa.  Mas, ainda era pouco.  Entretanto, com o rabo de olhos, como indicavam as nuances de análises com fotocélulas dos Peritos,    percebera que a incomodara.  A Mulher, ali, embatucara-se ao definir os  símbolos químicos do Enxofre, Lítio, Bário, Cobalto, Cádmio, Carbono, Cobre, Niquel,   Potássio, Fluor,  Iodo....   Ele ouviu, sim,   a ênfase retórica,  insistente e  carregada  de  nervosismo:

- Enxofre...enxofre...enxofre?....  Lítio... Litio...Lítio?...

E então, assim à frente,  o Homem, buscou recursos de que dispunha na  sua área.  Mesmo afastado há muito das bancadas do laboratório químico, a mente não lhe faltaria nessa hora.  A  toxicidade de substâncias químicas dançavam à sua frente, tais  como, o  gás mostarda, o cloro,  o ácido cianídrico,  o gás sarin....  mas ele   definira-se, naquele instante, informaram os laudos,  pelo Napalm. Para os técnicos, “ o   conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada, utilizados como armamento militar.”.    O  gel pegajoso e incendiário  haveria de atacá-la  aos moldes idênticos do seu uso nas guerras do  Vietnã, Laos e Camboja... A Mulher tremeu, quase derrotada, ao se deparar com a força química e o poder eficiente dessa bomba incendiária que queima e queima e deixa marcas irreparáveis... Nesse ínterim, a caminho da vitória, garantem os técnicos,  com base em referências de busca no Aurélio, além do conhecimento disponível das  publicações,   o Homem lembrara-se do engenheiro Jeff O. Stanford  -  o Chefe do Laboratório Químico nos USA,  responsável pela preparação e envio do Napalm às frentes americanas no Vietnã, que experimentara  o grito antibélico do mundo na própria pele, na própria alma; e culpando a  si mesmo,  pela obediência cega  às  normas e às ordens da sua Corporação,  no cumprimento rigoroso  da  sua missão de apoio  às políticas  de  guerra,  admitindo  toda a sua  culpa naquele  genocídio,  suicidara-se.

Diante dessa quase desistência do Homem, dessa derrocada que sentira na pele,   novamente a Mulher ganharia a dianteira. Agora, ultrapassaria  páginas e páginas vencendo questões do mundo antigo:   - Península que abriga a Grécia e a Croácia?  - Nome de Deuses da Mitologia Grega?  - Tribunal em Jerusalém formado por sacerdotes, anciãos e escribas?...
E, então,  decidida  a trucidá-lo, sem perdão,  agiu de  forma implacável, lançando   mão  de  armas decisivas.  Com destreza e maestria dona Branca traria para a sua frente de trabalho, os Culverins, segundo os peritos,  “objetos originários dos primeiros canhões, armas de fogo medievais atirados  contra a  cavalaria inimiga, a ser dizimada, sem perdão”.   E mais,  com um simples gesto, a Mulher lembrara-se dos  Estrepes, segundo os técnicos,” as fotos revelavam um material retorcido de pregos e metais, como espinhos que se espalham ao longo dos campos de batalha”.. E então, podia se ver a Mulher, indicado pelas marcas das sandálias, espalhando e  jogando-os  sobre o chão da sala, pelos  corredores adjacentes ao banheiro, à cozinha e varanda,  fazendo uso da porção que lhe cabia desses estrepes,  usados  para retardar o Homem em sua  corrida nas Cruzadas.   Desviando desse campo minado que Mulher lhe preparara, o Homem seguia titubeando nas garras do abecedário, ainda que, levemente,  sob seu controle: -  Instrumento usado para aplicar a pena de morte durante a revolução francesa?... - Substância encontrada em vegetais, de grande importância  para o funcionamento do intestino?.   

No entanto, as páginas seguintes formariam a barreira implacável. A cada item, o Homem sentia-se sucumbir diante dela. Sofria a cada pergunta retórica que fingia não ouvir: 
 - O maior império do mundo (em duração)? - Rei pagão denominado pelos judeus como o Messias? -  Primeiro nome de um grande imperador grego, que venceu os Persas? -  Nome com o qual os reis do Egito são conhecidos? ...- Lugar famoso, cujo nome significa entre rios?

E então, suas muralhas e fortificações postas ao chão naquela Guerra,  levaram-no à rendição. O ar lhe faltava – disseram os exames disponíveis à Autopsia. Portanto, acomodara-se na mesa com a cabeça inclinada sobre o braço, e o olhar, certeiramente, nas pupilas da Mulher.  E então,  a Mulher, com sua respiração ofegante naquele campo de batalha sangrenta,  em que vencera  o homem encastelado,   em que colocara sob seus pés tudo o que pode  naquela luta, silenciosamente inumana, reconhecera,  ao manter os olhos fixos no seu antagonista, conforme dados da polícia técnica sobre  os registros oculares captados com novas  tecnologias de observação,  reconhecera, nele, um grande guerreiro, um desafiador consistente e  à altura. O que a  levara à rendição definitiva.  O ar lhe faltava – disseram os exames disponíveis. Portanto, também ela, também dona Branca,  acomodara-se na mesa com a cabeça inclinada sobre o braço, e o  olhar, certeiramente, dirigido às retinas do professor Pio.  

Dona Branca, ainda que inovasse nesse desafio,  ampliando as  suas técnicas no jogo das Cruzadas, e se aprimorasse, cada vez mais,  na forma rústica para decifrar códigos, chegando mesmo, durante sua fase mais produtiva,  a  ser considerada como autodidata no  “Cruciverbalismo”,   informariam os técnicos no laudo final,  que,    Tal qual os pioneiros das Cruzadas,  a Mulher  revelava um virtuosismo destacado, ao usar, por exemplo,  todas as letras e dígrafos do alfabeto, além de mensagens ocultas, em cada trabalho. E mais – podia-se ver, num deles, um  diagrama cruzadístico,  incluindo todos os  planetas do Sistema Solar, em uma disposição semelhante às órbitas dos mesmos em relação ao Sol.”.  Nesse sentido, as Cruzadas de Dona Branca, ainda que  poucas,  apresentavam um modelo digno de estudo.  E foi o que prometi aos Peritos,  quando fizeram  chegar  os seus  escritos à editoria da “Cruzadas em Revista”, onde, ainda hoje, atuo  em contínua busca de talentos  e preciosidades  nesse campo de entretenimento.



Nota: o parágrafo final mantém referências adaptadas, livremente, sobre “Euro Oscar”, reconhecido autor brasileiro de palavras cruzadas e charadas. Os “versos poéticos”, editados, são do  poema “O Lutador”, de Carlos Drummond de Andrade.


Texto:  Celso Lopes 



OBS:  Menção Honrosa no XII Concurso de Contos do Tijuco/2017 - 
 ALAMI/Fundação Cultural de Ituiutaba/MG. 



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