sexta-feira, 29 de outubro de 2021

A TRAVESSIA (Conto BEATINIK) Persona Editora CELSO LOPES

 


Beatnik - Inconformação com a moral, religião e política ocidental, apreciação pelo outsider, marginalidade, antimilitarismo, ou seja, desapreço por tudo que nos oprime e controla. Esta era a bandeira dos autores da geração beatnik.

   

“A TRAVESSIA ”

 

“ O próprio desejo é viagem, expatriação, saída do meu lugar.”

                                                  Francis Affergarn - Exotisme et altérité -  Paris/PUF/1987

 

Aquela madrugada fluía solta e movimentada no vilarejo.  Logo, o clarão anunciaria  mais uma daquelas  manhãs quentes de verão e o final de mais uma  noite agitada.  Entretanto  para Nirollez, o músico, o significado da palavra ‘fim’ era um reencontro;  uma forma de se penitenciar;  ‘fim’ era o seu próprio desafio para se livrar de um sentimento de culpa que carregara durante toda a sua existência, ao se apegar, desmedidamente, no bem que mais apreciava na vida:  a  música... a música clássica!... Por isso,  àquela hora,  assim como quem nos oferecesse um concerto ainda  sob a luz do  luar, Nirollez surgira com  o  som poderoso  do seu recente instrumento, o Sax MC VI, a jóia rara dos aficcionados,  e passara  a comandar  uma sinfonia sonora naquela pequena rua do arraial de pescadores. E o  que víamos e ouvíamos era algo inusitado e envolvente: pouco a pouco, conforme avançava, com passos lentos e firmes, Nirollez, o músico, conseguira a proeza de instalar o silêncio onde jamais imaginávamos, pois, ali,   diante de todos nós,  fizera  emergir e  reverberar uma sonoridade  tonitruante,  estupenda,  arrancada do seu mágico Saxofone.  E lá  estava Nirollez. A cada passo, em sua execução, nada  parecia cercear as intenções do  intérprete em seu contínuo movimento de seguir em frente. Nada, ali, a impedi-lo  no  provocante  uso que fazia  daquela brilhante  improvisação ao fazer a travessia daquela rua com seu poderoso Sax.  Nirollez, o músico,  entregava-nos tudo isso de mão beijada,  num contínuo processo de criação  e recriação.  Os acordes instigantes, catárticos, mais pareciam gritar para que ouvíssemos a sua  história. Era isso que Nirollez parecia nos dizer,  ali, desfilando à nossa frente.   E se o espírito do jazz está em pensá-lo  como uma linguagem, como  algo que nos lava a alma, e  nos leva à alma a sua origem, o que se ouvia no improviso do jazzista era a sua maneira de nos  conduzir,  de se expiar em culpas à frente daquele público... Era visto que tudo ali era urgente  Por isso, inevitável como a noite que surgia atropelando, Nirollez  seguia impregnando-nos  o seu ímpeto diante do belo e do prazer,  de  um jeito  único, como se ouvíssemos ali,  a voz  dissonante  de “Lester Young”, a nos dizer e a nos intimar:  Escutem, eis aqui a  minha história!... Ouçam!..Ouçam, todos!...”.  O sax  de  Nirolllez   ‘cantava’ com as  raízes do  próprio jazz,   com suas origens e influências, como se ali fosse ele, Nirollez, o talentoso e criativo “Charles Parker” arrastando-nos  de uma  forma inovadora, o que  tornava tudo aquilo para nós,  uma espécie de  Nirollez/Parker’, dois  ícones da  beat generation!...Nem mesmo um olhar mais atento poderia indicar que  à nossa frente estava o maestro Nirollez, um homem acostumado ao reconhecimento do público em seu país, e não somente nos teatros locais como também nas principais casas da Europa; Algumas  evidências de seu desconforto com a música clássica surgiram em sua última récita, quando mal acabara de se curvar, agradecendo aos aplausos pela regência da sua ópera, “1984”, baseada no texto do escritor George Orwell,  e já deixava, apressadamente, sem dizer mais nada,  o pomposo teatro municipal portenho. Impossível não imaginar a situação que criara  ao seu empresário, à esposa, aos dois filhos, aos amigos, e principalmente,  ao seu  público seleto e fiel  que, inevitavelmente, sentiria, para sempre,  a sua ausência. Instantes  depois  dessa ‘performance’ colossal na capital Argentina,   Nirollez  já ocupava um lugar  à bordo de um ônibus da Pluma, em direção à cidade do  Rio de Janeiro, onde, ao chegar,  seguiria  de táxi até o aeroporto Santos Dumont,  para embarcar num voo que  o levaria até  Ilhéus, na Bahia.  Da terra do escritor Jorge Amado, seguiria   para o vilarejo que lhe reservava o sol do  pleno verão à beira-mar.      Por certo,  no voo passara em retrospectiva a sua vida  e a sua história  de um dos  mais prestigiados maestros de todos os tempos. É certo que se mantivera avesso aos grandes festivais como Woodstock, Altamont, Monterey e outros,  em que  surgiram novos expoentes da musica mundial, como  Jimi Hendrix  e  Janis Joplin;  confessava-nos, naquela travessia,  que  ouvira, sim,  o refrão que todos sabiam existir em   Lucy in the sky with diamonds... e, claro, acompanhara  todas as intenções de alegoria ao LSD. E então, perguntaria  a si mesmo: por que acreditar nessa história jovem, nesse poder jovem?...    Mas fora diante dos movimentos políticos dos anos 60, em especial,  o “maio de 68” francês, que Nirollez balançara. Sim, entendia os protestos estudantis como reivindicações por um ensino melhor, entretanto,  vira o desencadear de uma greve geral  de dez milhões de pessoas...  Não, não era apenas o ‘é proibido proibir’, ou as palavras de ordens ‘queremos o impossível’...  Não, 68 apresentara-se como uma brecha na história, e fora capaz de  colocar em xeque a  sociedade que se pensara até então...  Nirollez entendera, sim, que o mundo reagira com uma grande recusa, em  que ‘os de cima não conseguiam mais  mandar, e os que estavam embaixo não queriam de forma alguma  obedecer’.. Sim, era o  ano de se  recusar a tudo.Um grito lancinante ecoava no  planeta.  Mas Nirollez também  vira  chegar o  The dream is over”, o sonho daqueles jovens  chegara ao fim, carregando as utopias todas e  os  seus comandantes...  Vivenciando essa travessia,   Nirollez   reiterava para si, o desafio de  romper de vez com tudo o que aprendera e ganhara como intérprete da música clássica mundial;  a ordem agora era livrar-se dos limites,  das notas,  dos horários e  das agendas...  Nirollez  elegera, portanto,  o jazz,  para lhe carregar a vida;  descobrira  que o sax impunha-se à  improvisação necessária, porém nunca estivera presente em sua formação sisuda e acadêmica.  Nirolezz,  naquela madrugada,  rasgava todas as suas partituras e harmonias... Agora, ali, no pequeno  vilarejo, dedicava a si  mesmo,   um  excesso de cuidados para não revelar  referências ao seu  passado.   Por vezes,  à beira-mar, no sol escaldante,  via-se  com a areia nas mãos, escorrendo como uma  interminável  ampulheta  que lhe mostrava o tempo e  a sua fluidez.  Foram dias ali,  até o momento em  que uma coragem  maior lhe sobrepôs de uma forma  jamais vista ou sentida... Como algo inevitável, a música pulsou-lhe novamente  nas veias, saltou-lhe aos poros e explodiu em sua mente.  Agora, ali, pela primeira vez,  olhara sem culpa o seu sax MC VI, que jamais tocara,   e encarou-o  com algo necessário à  sua própria razão de viver; assim,  o passo seguinte fora decisivo:  com as  mãos protegendo a chama  da brisa marinha,  Nirollez  faria  surgir as  labaredas que  pouco a pouco  engoliriam  todos  os  registros e  documentos do grande músico que fora. À beira da praia  faria morrer,  burocraticamente,   o maestro  Nirollez,  e emergir o seu novo ser, o jazzista,  um novo habitante daquela terra  encantada.  Por iss, hoje, naquela travessia,  Nirollez colocava em prática a sua transgressão tardia, entretanto, sincera. Purificava-se da sua culpa, buscava, ali,  uma reparação existencial,   pois mantivera-se à margem, fora impassível, fugira à luta quando escolhera todas as benesses do establishement... Pois agora, que lhe deixassem seguir, pagar o seu preço, sofrer o que lhe era imponderável...  Os  improvisos  do músico Nirollez, com  seu  sax  MC VI    ganhavam distância na travessia da rua;  deixavam  para traz o bar Chaparrals e as portas do  Manda-brasa,  de onde se desvendava a estradinha que seguia em direção à praia... Os improvisos do músico Nirollez  com o seu  sax MC VI  passaram a  comandar a sinfonia, não apenas de uma rua, mas de um caminho que nos levava,  a todos,  em direção ao mar... Nirollez seguia como quem cumprisse uma simples desarmonia vivida naquela madrugada ... Os seus pés,  pouco a pouco,  já tocavam a areia, atingindo lentamente o quebra-mar,  ainda  leve, calmo, raso, movediço... A sua  música rivalizava-se com o bramir das ondas, dimensionava à altura, como numa audição  em seu  ápice melódico, capaz de  expandir o espaço, a superfície e a profundidade,  levando o jazzista a seguir improvisando acordes e timbres  em direção aos arrecifes, onde o clarão metálico  do seu sax, sob uma intensa luz do luar, ia indo, seguindo, avançando o horizonte até  onde a água  interpunha-se   à  vista da gente, até onde  um sexto sentido nos indicava que aquela noite engolira para sempre o maestro Nirollez... Até a gente sentir na própria pele,  que o mar, o maestro e o sax MC VI,  em verdade,  uniram-se como uma  só coisa, num só corpo,  em uníssono!...

Nota:   “A TRAVESSIA” é uma narrativa ficcional.  NIROLLEZ   é um  anagrama imperfeito de ‘Lorin Maazel’ –  maestro norte-americano, estrela de primeira grandeza na música clássica, a quem  é dedicado este  conto

 Texto:  CELSO LOPES                elipse84@terra.com.br

 

O PIO DA CORUJA - Texto CELSO LOPES (Contos de Terror)

 






O vulto veloz da ave cortou a noite  à minha frente. UHUHUHUHUUUU... Não posso jurar, mas por instantes, além  daquele pio lúgubre, a Coruja parecia  deitar também os seus olhos grandes e penetrantes  sobre a minha desabalada fuga naquela  estrada escura.  Assim, mais  de uma vez,  a ave ziguezagueou o meu caminho acentuando com o seu  pio, as  nuances de uma   sonoridade estranha e acusativa,  como se me intimidasse de dedo em riste, e gritando e invadindo a minha caminhada no  breu da noite:  EU VI...EU VI.... EU VI...  essa sonoridade ia me  dando mostras de que  a ave  acompanharia o  meu vulto onde quer que eu fosse, onde quer que eu andasse.       

Por diversas vezes, à custa de um certo arrependimento, enxuguei com a  manga da camisa,  o suor frio que escorria do meu  rosto naquela acentuada trilha,  que a bem dizer,  não deixava ver  um palmo à frente do nariz. Uma noite sombria que me acompanhava desde que saí da  casa. Na estrada, por onde eu me  embrenhara,  várias vezes,  retive o   animal com as rédeas,   estancando-o bruscamente,  obrigando-o a me obedecer diante dos  desafios da trilha esburacada, pedregosa e acidentada; ora subidas íngremes, ora curvas abruptas por entre o mato.  Nesses momentos, eu sentia falta de  ouvir algo que quebrasse o silêncio, além do trotar da minha montaria,  mas o que martelava em meus ouvidos, mais e mais, era o agudo pio da ave, como a gritar comigo estridentemente:  EU VI... EU VI...EU VI...  o que me fazia, assustado, relembrar e refletir  sobre os  acontecimentos que motivaram a minha própria   fuga naquela noite.

Nessa hora, pudesse me ver refletido num espelho,  sou capaz de afirmar que meu semblante acusaria um  susto medonho diante do pio  da ave, que mais parecia promover uma provocação inabalável: EU SEI ...EU SEI...EU SEI...  A Coruja piava  dando um ar ainda mais  misterioso à noite... e eu,  eu  sentia na minha própria pele,  o mau presságio rondando  a minha caminhada; havendo demônios e maldições nesse mundo,  nesse instante,  eu  sentia a presença de todos eles, de olhos esbugalhados e atentos,  traçando o meu infortúnio estrada afora.  

 O coração, esse, eu  sentia bater acelerado, quase a explodir pela proximidade daquele pio  sem fim  da  ave agourenta: UHUHUHUH...    Numa das minhas  paradas, denunciei-me  a mim  mesmo. Era como se eu sofresse um  ressentimento, uma  amargura, um enjoo, um embrulhar do estômago;  eu ali, sentia de perto um rancor   pelo que fizera a ela. Remoía-me por demais,  por dentro. E cheguei mesmo a dizer em altos brados, esbaforido: “ - Ave do inferno...suma, suma daqui!...”. 

Sim, eu me arrependia do que fiz, mas nunca, nunca, queria ser vingado por um demônio que me provocava dessa forma, imputando-me a culpa a olhos vistos;  a ave, nesse instante, eu pude vê-la sobre um toco da cerca, iluminado apenas pela frágil luz da lua;  Imponente sobre  aquele mourão, ela,  a Coruja,  ali,  silenciosa, os olhos grandes e fixos sobre os meus gestos no alto da montaria, o que me levava a revidar insistentemente:   “- Xô, Xô... ave  maldita.. Xô, Xô...”

 A Coruja, ali, confiante e soberana sobre o tronco, punha-se ainda mais horripilante. Talvez me desafiasse naquela escuridão da noite, em que me vencia, fácil, fácil,  com a sua visão privilegiada. Ela, ali, quase a me dizer,  que eu lhe adivinhasse os pensamentos.  Sim, era isso, a ave, ali, parecendo revelar seus dotes de  clarividência,  o  que me escapava ao domínio; a ave, ali,  dentro da  noite com o poder ver e escutar o que  nós, os homens,  não vemos, não enxergamos.  Além disso, que eu   ficasse pasmo vendo o  girar do seu pescoço ao redor, o que superava, ainda mais,  a sua   capacidade de ter olhos para  aquele  espaço amplo,  sem que  precisasse se mover; por isso, somava, ali, visão e audição à sua habilidade de ave caçadora noturna. Ou nada disso, talvez seja mesmo, como me contaram,  uma Velha vestida de preto com poderes sobrenaturais, camuflada em noites escuras no corpo de uma ave, uma coruja.  Teria, assim, os  poderes divinos aquela Coruja?  Acredito que sim, por isso, enquanto todos dormem,  ela se mantém de olhos arregalados, fixos e vigilantes, refletindo sobre o que escondemos, e até,  enxergando, profundamente, o que queremos, em nós, os homens,  deixar  oculto para sempre.

A essa altura, a bem da verdade,  eu  ponderava a mim  mesmo   que  não poderia voltar atrás;  no entanto, ainda  sem me  acostumar  com a ideia de que fizera o que tinha de ser feito, deveria seguir em frente! – ponderei.

Junto a uma árvore, bem próxima ao canavial espesso, pude  examinar  o par de alianças, exemplarmente escondidas sob as dobras delicadas de um lenço feminino. Senti-as por entre os dedos longos em vários  instantes, até que, atabalhoado, pelo pio da ave e o ruído forte do seu ataque de asas em minha direção,  tentei amparar-lhes a queda  com a  palma trêmula das mãos. Impossível o meu gesto.  As alianças,  ao caírem rodopiaram estrada abaixo, tilintando, tilintando naquela  noite escura,  continuadamente,  por sobre pedras e   rochas,  deixando ver aqui e ali,  o rastro de um brilho quase apagado ao  rolarem, desamparadas,  na  escuridão da estrada.  Ainda sem jeito e desorientado, socorreu-me o  alívio e a certeza de que, só mesmo no clarão do dia é que poderiam, as alianças, serem encontradas. Enquanto ganhava esse tempo,  eu   puxava o fio do novelo. Os acontecimentos  agora chegavam fortes e carregados de uma rica e inflexível simbologia. A ave garantia: EU VI... EU SEI... EU VI.... Impossível não associar a queda das   alianças com o corpo de Alzira  rodopiando apavorada pela escada abaixo; despencando cada vez mais, sem qualquer apoio,  degrau por degrau,  até a soleira daquele piso de pedra  no hall da  grande sala da casa.  Do alto da escadaria,  assisti a tudo, impoluto, resistente e confiante do meu gesto.   Acrescentei  à essa imagem, ainda viva na minha  mente, as marcas do sangue que tingira como uma pasta  espessa  e gosmenta,  todo  o mármore branco da escadaria. Por alguns momentos , tudo em mim  transformava-se em remorsos. Quem dera, pudesse recomeçar  o relacionamento e buscar pelo perdão de Alzira?  Entretanto, noutros instantes, via-me com um olhar parado naquela  noite densa, a insinuar a mim mesmo que nunca, nunca,  haveria de lhe perdoar a traição. E pior, ainda,  traição ocorrida dentro da   nossa própria casa. Nada vi, nada vi,  mas eis a cisma que tive, transformada em ciúme cruel e vingativo. Por essa razão, prometi:  haveria de livrar-me de Alzira e do compromisso que  acreditava imaculado entre nós,  diante do altar:   Até que a morte nos separe!... Assim, guiado pela desconfiança, sobrepus o ciúme à frente, com o desejo de fazê-la pagar pela infame  traição. 

Naquela noite, convicto das minhas  suspeitas,  cheguei obcecado pelo castigo que lhe empunharia. Sim, agora me dei conta de que ao avançar para a casa ouvi aquele piado bem próximo à entrada: UHUHUHUHUH.... Subi as escadas e arranquei-a da espreguiçadeira, sabendo que já sentia o meu ódio pela força que eu  lhe impunha. Alzira debateu, refugou, se fez em gritos, os nervos saltaram-lhe  à pele quando pressentiu o horror defronte da alta escadaria. Pediu clemência, implorou aos Anjos e ao Redentor, mas a  obsessão, há muito,  havia tomado o meu corpo e explodia pelas minhas veias. Forcei que Alzira olhasse o destino lá embaixo, tomei-lhe a aliança,  e meus braços cuidaram do resto. Na queda, regada a gritos de dor, ouvi lá fora  o som do bater de asas e o pio da Coruja, que ecoou, longamente, o horror estampado na sala.  Suportei a dor de ver Alzira estirada na poça de sangue. Nessa hora, adiantei-me à penteadeira em busca de um lenço, onde coloquei as duas alianças que selaram uma parte das nossas vidas. Estava vingado, assenti. Vingado no sentido sufocante da palavra. Mas se quisesse evitar o castigo que, por certo,  logo me  alcançaria, a fuga era mesmo inevitável.

Sob a copa de uma  árvore que ladeava a estrada,  apeei do animal e recostei-me  ao tronco dessa  heroica e única amendoeira  que restara defronte àquele mar de cana. Eu viveria ali, uma ansiosa e demorada espera até ao  amanhecer. Ao clarear do dia,  enfim,  recolheria as alianças-testemunhas do meu último gesto. Enlacei as rédeas do cavalo no mourão da cerca e nesse instante, novamente, a ave cortou a noite à minha frente,  acocorando-se ágil no toco do outro lado da estrada,  de onde, incomodada e insistente, emitia seu estridente grito endereçado a mim:  UHUHUHUH... EU VI... EU SEI... EU VI.... Atinei em espantá-la, inutilmente. Voava e voltava. Abria e fechava suas longas asas. Enfrentava-me indo e vindo. UHUHUHUHUH... Então, com um  pavor desnorteado, empurrado cada vez mais pela ave à procura de um  gesto que fosse,  abri a mochila agregada à sela,  e cometi, sem perdão,  um ato silencioso e reservado, que  ainda não havia  revelado a ninguém,  por conta do meu arrependimento de amor. Na fuga, em mim, vivi algo que me fez ver a própria  existência pela voz tonitruante de Alzira, ao rolar na escadaria. “Naufragaste, marido insano. Duvidastes da minha lealdade. Eu, que desfaleço a seus pés, hei de seguir o que, em um sim mútuo, juramos. E tu, que te agarraste à honra, à desconfiança, ao terrível ciúme doentio, haverá de seguir só, sozinho pela noite,  até o exato instante em que te medites sobre sua dívida à vida.”   

Sim, essas palavras que ouvi de Alzira  me conduziram à decisão, e então, com as minhas  mãos ágeis e um golpe certeiro,  lancei  a  corda  no galho apropriado ao  meu peso e altura. O gesto atiçara a ave, levando-a a retomar a ordem viva, vibrante  e  acusatória: EU VI...EU SEI... EU VI.... As mesmas mãos que, brutalmente, arremessaram  Alzira escada abaixo, ali, agora,  ainda no escuro daquela noite, transformaram-se em  mãos de artífice, tornando esse que vos fala,  em  um  exímio carrasco dele mesmo,  ao executar  um nó perfeito, um laço rígido que me sustentaria pelo pescoço, dolorido e  quieto,  diante do acentuados pios da Coruja,  até o alvorecer, quando,  inevitavelmente,  eu  seria encontrado morto; e as alianças-testemunhas descobertas em seu brilho no leito da estrada acidentada...  

 

 

CONTOS DE TERROR 
O PIO DA CORUJA 
Texto:  CELSO LOPES 










terça-feira, 6 de julho de 2021

DUELO SOB O SOL Conto de Celso Lopes


A Academia de Letras de São João da Boa Vista divulga o resultado de seu XXIX Concurso Literário de Poesia e Prosa, parabenizando aos vencedores e a todos os participantes, pelo alto nível dos trabalhos. A premiação terá lugar em cerimônia virtual a realizar-se no dia 14 de agosto de 2021, às 17h, no canal da instituição no YouTube, quando será lançada a respectiva Antologia.

Prêmio Especial Octávio Pereira Leite

60+
1º lugar - "Duelo sob o sol" - Celso Antonio Lopes da Silva - São Paulo - SP
2º lugar - "Um dia, num sábado" - Evaristo Souza Soares - Mucuri - BA
3º lugar - "Tal filha, tal mãe!" - Soeli Tiegs - Curitiba - PR


                                                    DUELO SOB O SOL

O grito pra gente acudir o Divino lá no terreiro da Casa Grande chegou ainda com o solzinho da manhã.  “Diacho de homenzarrão”,  pois não devia ele de estar lá  no corte da cana com os outros?...Que diabos o gigante fora fazer lá no terreirão da fazenda?   Pra todos ali no batente do  corte, o Divino era tal qual um gigante, entretanto, naquele dia, eu com os  meus doze anos, fiz a comparação dele com a Santa Joana D’Arc!... Era tamanha  a coragem do gigante que, devagarinho, surgiu-me  na memória as  palavras do Seo Marianinho, da catequese: A Santa Joana D’Arc tinha uma “Fé  Inquebrantável!...”.  Pra nós, do catecismo, essas palavras, quando ditas,   causaram um  rebuliço na imaginação. “ Fé Inquebrantável”...E Seo Marianinho usava essa força mágica  pra nos orientar,  dizendo sempre que  a Santa Joana D’Arc era  movida pela fé, e fora com fé  que aquela menina-mulher, nascida em Domrémi, na França, no ano de 1412, liderara o exército francês contra os ingleses. Do Divino, que todos ali conheciam,  diziam  que lá pelos treze anos, cismara de ouvir uma voz, tal qual a que  a Santa ouvira.  Voz de quem Divino? De quem?   Ao que ele  se entretinha a dizer que estava ouvindo, estava escutando,  mas não sabia soletrar. Não entendia aquela voz estranha.  Quando isso acontecia,  assim ficava o Divino: meio que jogado num canto até que o “surto” passasse.  Digo “surto” porque o Divino era medicado com o tal do Gardenal,  remédio indicado pra  quem “sofria dos nervos”- diziam.  Por isso, em se tratando do gigante, apenas dizíamos:  “Ah! é o Divino, de novo!...Deixa ele, logo passa!”. E o Divino era assim: o que tinha de estranho, e de grandalhão, tinha de bom, a bondade em pessoa.  Ajudava sempre a quem precisasse. Um dia veio lá o Divino com aquele seu vozeirão de trovoada recitando um  palavrório  desconexo. Da sua boca saia aquela sonoridade impulsiva e estranha:  “as palavras são obras de Deus... mas são também obras  de um demo;  não vê  lá quando eu digo “iscumungado”... E “iscumungado” não tem uma parte  com o coisa-ruim? Ora, se tem!... E não é “iscumungado” quem me aprepara a degola?!(*).  

Instantes depois,  aquietava-se o Divino. Quietinho como um cordeirinho de Deus a sentir na própria pele o deslize cometido. E assim, em instantes,  retornava com o facão ágil e forte de volta à lida.    Naquele  dia, sem que se soubesse o porquê,  Divino largara o corte ainda bem cedinho e escapulira  rumo à Casa Grande.  Alguns juravam que ouviram da boca do Divino, “que hoje  era um  dia de Libertação”.  Mas, ninguém ali  botava fé nesse atarantado. E nós, ainda crianças, meninos,  a gente trucidava:  Nem te ligo, gigante! Nem te ligo!... No entanto, fosse o dia da voz de Deus ou de um  grito rouco do Diabo,  o certo é que o Divino, como uma ovelha desgarrada à procura de outros campos verdejantes,  preparou-nos todas as letras daquela manhã  com as tintas vermelhas de sangue.    Ao aviso, corremos todos pro terreirão!... Já  era possível ver o Divino lá no alto da Colheitadeira de grãos, aquele  maquinário imenso e estranho  que acabara de chegar na fazenda havia três  dias. Era um maquinário moderno e novo por ali, e por isso ainda causava estranheza naqueles  campos de cultivo...  Lá em cima,  sob o sol escaldante, víamos nas mãos do Divino,  alguma coisa que muito bem não se via.  Uma arma?  Uma foice?  Um facão?   O Divino  parecia fazer  uns  passos de ataque e defesa,  subindo, pulando,  avançando  e recuando, e de tempo em tempo, insistindo nos gestos de bater forte  sem dó nem piedade! ...E bater em quem? No invisível?... Divino arriscava passadas longas  e a gente enxergava o Divino cada vez mais  alto...Ele, o gigante,  pé por pé,  apoiando-se no contorno das ferragens, procurando alcançar o topo como quem subisse às nuvens  para alcançar  o céu. Da sua boca  ouvíamos aquela conhecida  sonoridade grave, tonitruante:  “- O que farão sem os  montes de ferros?!...Terei fim, mas o espaço, não!.. A luta, não! A sorte está jogada, mas jogada por mim!...” (*).  Quem há de saber, se ouvíamos aquilo ou se inventamos? Nenhum de nós confiava tanto no que se passava ali no terreirão. O Divino, lá no alto, parecia  ganhar uns jeitos outros, assim espevitado, assim como um guerreiro  sanguinário.... ou a gente via, via? Nas mãos do  Divino, o que antes era um facão, a foice, agora mais parecia um aríete potente,  impiedoso,  não fosse apenas um  cabo de enxada aparado. Forte. Feito à mão, liso!... E Divino, o gigante, um porta-estandarte rodopiando  em pleno ato, tendo nas mãos uma longa espada de prata a trespassar a carapaça dura daquela  sua montaria -  a Colhedeira, a Colheitadeira.  Ele, Divino, o enviado dos deuses,  com a sua fé inquebrantável, subira ao céus  pra combater  o inferno na terra:  a Colheitadeira, a Colhedeira de grãos!...  Em silêncio,  entreolhávamo-nos, todos. Dona Felicidade, a mais velha da turma, de terço na mão,  ensaiava  uma Salve-Rainha Mãe da Misericórdia...  Divino, lá no alto, os braços abertos em cruz, a nos indicar  o alvo com a sonoridade potente  de um  grito:  “ Se houvesse inferno,  haveria de ser para reis e poderosos que se sustentam do trabalho alheio” (*).  O vozerio profético do Divino ecoava com endereço certo, pois todos ali,  os boias-frias,  temiam que o maquinário lhes arrancasse o emprego e o pão nosso de cada dia.  Então, como numa guerra, um duelo de vida e morte,  Divino arvorou-se contra o demônio, contra o descomunal, contra o portentoso.  Na sua  mão, o punhal, o cabo da  enxada, o aríete, o varapau, prontos a atingir e  a deitar por terra, quem por ventura  lhe roubasse  o ganha-pão,  o salário, o brio, o orgulho, a honra e  o sustento da própria vida.  Nossos olhares, como fossem  um só,   rodearam imobilizados a Colheitadeira. Lá em cima, banhado pela luz do sol,  Divino expunha-nos as suas chagas vivas. O maquinário gigante,  o lobo vencedor,  bravamente,  resistira  aos ataques insanos de fúria. Divino, ao alto, curvado sobre  uma abóbada de ferros, preso às pontas das ferragens, atingia uma angulação dolorida  em  nossos olhos.  Ali, a gente toda sabia quem  era o boia-fria Divino em seus delírios. No entanto,  lá em cima, trespassado pelos ferros da  Colhedeira, de onde respingavam incessantes gotas de sangue, aprendíamos a ver e a olhar  o astuto lobo metálico,  de onde os homens do canavial, a duras penas, tentavam alcançar o Divino, para retirá-lo das farpas traiçoeiras e pontiagudas que o perfuraram  até a morte.

                          

 

Referência incidental:

(*) A Canção da Nossa Gente – Eduardo Galeano – Ed. Paz e Terra


segunda-feira, 19 de abril de 2021

MÚSICA: DA COR DA AVELÃ - Letrista: Celso Lopes

 


DA COR DA AVELÃ

 

Teus cabelos da cor da  avelã,

me  lembram imagens de Paul Gauguin...

Em teus olhos negros, eu vejo  El Greco...

Teus lábios doces, se Frida Kahlo fossem...

Tanta arte, tanta arte, tanta arte

eu amaria em ti!... (bis/ou repete 3 vezes)

 

Pra  tua beleza, a beleza de um Renoir...

Pro  teu amor, o amor de  um Monet...

Pra tua  paixão, a paixão de um Dali....

Tanta arte, tanta arte, tanta arte

eu amaria em ti!...(bis/ou repete 3 vezes)

 

Se numa tela branca eu pintasse você,

te faria  num traço  buscando o  infinito,

um traço   bonito que   igual nunca vi...

Então,  toda arte,  tão pura e tão bela,

desistiria da tela com inveja de ti!...

Tanta arte, tanta arte, tanta arte

eu amaria em ti... (bis/ou repete 3 vezes)

 

Letra:  Celso Lopes   elipse84@terra.com.br   11 98487 1193

sexta-feira, 12 de março de 2021

O PULO DO RATO E OUTROS RELATOS - Crônicas de Celso Lopes

                  


 “O PULO DO RATO”                                                     

 Não, você não leu errado. Ainda que quem esteja à frente desse estrelato de habilidades seja o Gato,  com as suas 7 vidas ou por vezes até 9, de acordo com cultura local de países,  neste caso, o felino terá de ceder a vez  e a expertise para o Rato. É certo que  continuamos tratando aqui de Vida, onde os gatos seriam praticamente imbatíveis, seja pela proeza inimitável do seu pulo, seja pela imunidade à doenças ou mesmo pela narrativa  convincente das “sete vidas”; entretanto,  pasmem, resta a eles abrir espaço, pois o que está em jogo não é somente a Vida,  porém, a Vida eterna.    Isso mesmo.  A Vida eterna, garante o engenheiro formado pelo MIT e  futurólogo venezuelano,  José Luiz Cordeiro, está com os dias contados, quer dizer, em contagem regressiva  de uma  data  ou progressiva para alcançá-la  – à escolha de todos nós mortais. Ou seria melhor dizer – imortais? Apresentando dados que, por vezes, queremos crer que sejam mesmo verdadeiros, confiáveis, uma vez que respalda suas teorias sobre a Vida eterna em expoentes como o matemático David Wood (autor de A morte da morte), incluindo o biólogo e cientista David Sinclair, da Universidade de Harvard, Cordeiro ‘prega e bota fé’ no que chama de interrupção da velhice, afirmando:  “já temos novas tecnologias de reprogramação celular e estamos entre a última geração humana mortal e a primeira imortal”.  Quando  perguntado sobre os caminhos dessa viagem sem volta, saltam à tona, entre outros micro-organismos, as bactérias. “ Sabemos que há células e organismos que não envelhecem, como, por exemplo, as bactérias. Elas são as primeiras formas de vida no planeta”.  

“- Outro tipo de célula que se descobriu que não envelhece é a do câncer” – acrescenta enfático:  “(...) Esse é o problema do câncer, ele não envelhece e por isso é preciso matar todas as células cancerosas porque, se deixar uma sobrevivente, elas voltam a se reproduzir”.  No rol desse esquadrão de “eliminadores do Gato”,  entram nomes de peso, como por exemplo, a Microsoft:  “ Depois do sequenciamento do genoma humano, conseguimos entender, por exemplo, que o câncer é uma mutação para se manter jovem”.   Cordeiro garante que a cura virá por aí:  “Não foi uma companhia médica ou farmacêutica que falou isso (cura do câncer), mas a Microsoft, porque o câncer é um problema computacional, não um problema médico. Podemos encontrar as mutações que geraram o câncer e compará-las com as células não cancerosas”.

Outro “golpe mortal” sobre os felinos estaria a um passo de acontecer,   e chega pela Universidade de Tóquio, através de um Samurai-cientista, o  japonês Shinya Yamanaka, prêmio Nobel  em 2012. “ Ele descobriu (2006) que células podem ser reprogramadas e que é possível modificar genes de uma célula velha e torná-la novamente jovem (...)”,  acentua  Cordeiro.   Para fortalecer, ainda mais, as previsões,  Cordeiro agrega as projeções do futurista Raymond Kurzweil: “  Ele fala que no ano de 2045, o envelhecimento e a morte se tornarão opcionais, quando a inteligência artificial ultrapassará a inteligência humana”. Assim,  outra data, 2029,  agora bem mais próxima,  entra em cena:  “... alcançaremos a velocidade de escape da longevidade (....) para cada ano que vivermos, ganharemos um ano a mais (...) Mas não é o suficiente. Kurzweil estima que a partir de 2029 passaremos a viver indefinidamente, mas ainda envelhecendo. E em 2045 teremos as tecnologias de rejuvenescimento biológico com a reprogramação celular”.

Bem, “o tiro de misericórdia” ao reinado e à  sobrevida dos felinos tem hora marcada, garante Cordeiro: “O sequenciamento do genoma envolve três bilhões de bases nitrogenadas (...)   A mente humana não consegue ver a diferença (...)  Nosso cérebro é limitado e a inteligência artificial não tem esse problema. Por isso, ela será decisiva para a cura de muitas doenças e tratamentos (...)”.  E é neste ponto que  os ratos saem do buraco e nos olham, assim,   cara a  cara. Afinal, geneticamente, são 90% iguais aos humanos, e sobressaem-se, até aqui,  como importantes e excelentes “cobaias”, embora vivam em média  dois anos e meio.  Entretanto, afirma Cordeiro, entregando-nos, de bandeja,  “O  pulo do Rato”:   “ Agora temos espécimes que vivem cinco anos. Conseguimos duplicar a expectativa de vida dos ratos. E já temos conhecimento suficiente para usar isso experimentalmente com os humanos”. Uffa... pelo visto,  não temos nada a temer. Quem precisará daquelas 7 vidas dos felinos, se são os ratos, agora, que  já nos acenam com a Vida eterna?...

 

 

Fonte:  -   https://istoe.com.br/a-morte-vai-se-tornar-opcional/   

 



segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

OPERAÇÃO DOM QUIXOTE - Conto de CELSO LOPES

 


 OPERAÇÃO D. QUIXOTE   -  Conto de Celso Lopes

 

“Há o amor, é claro. Mas há a vida, sua inimiga.”

                                                                   Jean Anovith  (dramaturgo e cineasta francês

 

 A armadilha do Miranda já estava preparada. Fora somente o tempo de rodopiar a chave no cadeado da porta de enrolar que, com a devida precaução não deveria ser tão pesada para se levantar quanto se mostrava, embora tal sintoma justificasse a qualidade do material, o que evitava perfurações ou eventuais arrombamentos. Pois pareceu tudo com essa exatidão, quando os policiais à paisana surgiram fechando o cerco. Enquanto os agentes o algemavam em alvoroço festivo de comemoração, Miranda, num silêncio constrangedor, mantinha-se acocorado no estreito cômodo, com um olhar cabisbaixo e desolado diante daquela vasculhação,  acompanhando os chutes fortes e certeiros  que derrubavam seus cavaletes, latas de tintas, pincéis,  tecidos, a mesinha, uma  banqueta e diversos outros apetrechos, além de notas e papeis do seu local de trabalho.  Aos gritos e pontapés,  os agentes intimavam o pintor de faixas:

- Vamos, seu merda,  me dá um nome!...Vamos, me dá um nome!...

Lá fora, quase uma dezena de carros policiais, que mais pareciam infernizar o trânsito àquela hora da manhã,  com suas sirenes ligadas, aguardavam a saída do pintor,  ainda bem assustado e  bem  temeroso dos novos e futuros acontecimentos.  Era visível que se fosse um Dom Quixote nessa hora, Miranda, o ex-tipógrafo da Gráfica Moderna,  transformaria seus pincéis em lanças pontiagudas e espadas implacáveis;  dos seus lápis inocentes, que antes  se acomodavam no porta-trecos sobre a mesinha, Miranda  faria  as zarabatanas com setas envenenadas pelo curare, ou transformava-as em atiradeiras de miras precisas... Quem sabe ainda, dali, do seu ‘ateliê de pintura’,  um cubículo com paredes descascadas, e com a estreiteza de dois metros  por quatro e pouco, onde  mal  cabiam as suas  faixas estendidas, quem sabe dali,  do seu minúsculo cômodo sublocado nas imediações do centro da cidade, Miranda,  com seus pincéis ágeis, criaria  os vestígios de um campo de relvas, feito uma clareira aberta em meio à floresta, para que pudesse,  como o Cavaleiro Andante, combater o  bom combate e  escorraçar de vez e para sempre os  seus carrancudos  opressores; então,   enfrentaria  os agentes, seus algozes, em campo aberto,  mas  antes, claro,  anunciaria  a façanha  ao som de trombetas e clarins, como uma aventura necessária à sua  vida tão carente de novas dimensões até aquele maldito dia...   Miranda, por certo, usaria  para si,  da mesma descrição  que o “Manco de Lepanto” dirigira a si mesmo:  “este que aqui vês, de rosto pontiagudo, de cabelo castanho, testa lisa e desembaraçada, de olhos alegres e nariz curvo (...)  os bigodes grandes, a boca pequena, os dentes nem miúdos nem grandes, porque não tem senão seis, e estes mal acondicionados e pior postos, porque não têm correspondência uns com os outros...

 Aprisionado entre as paredes daquele estreito corredor, em meio a seus objetos  de trabalho, a essa hora, jogados e  espalhados pelo chão, Miranda, depois de atirado ao solo várias vezes pelos  Agentes, e  já cansado da pancadaria vinda das mãos fortes daquele grupo de afronta, agora,  prestava-se a ouvir os apelos insistentes para que ele, Miranda, abrisse o bico, para que ele, Miranda, desovasse tudo; Os Agentes insistiam para que ele, Miranda, desse com a língua nos dentes; para que ele, Miranda,  entregasse a eles,  os Agentes, alguém de cima: o seu Chefe, o seu Líder, o Mandante, o Mandão, o Déspota!...  Os Agentes pressionavam para que ele, Miranda,  caguetasse um nome;   se preciso, agisse sem pena, sem piedade e sem dó nenhum... Ali, como um bicho enjaulado, Miranda, quase em transe, quase em comoção,  completaria para si mesmo de uma maneira ‘nada exemplar’:  Este que aqui está,  digo, este que aqui vês, trôpego, arruinado,  exposto hoje ao vexame público, desenganado, um miserável  traste em mãos alheias,  um cachorro morto que continua a ser chutado, sem que qualquer culpa tenha nesta vida... este,  este sou eu,  Miranda Martins, cujo primeiro emprego foi o de ‘Estafeta’ na Gráfica Moderna de São Paulo. E depois quase uma vida como  impressor gráfico, como tipógrafo.  Eu, o Miranda, a quem sempre, todos diziam:  Anda, Miranda, anda!...” 

 Miranda lembrou-se, ainda,  que ao compor os seus  textos na bancada da Gráfica Moderna, na maioria das vezes sozinho,  sentia  um medo danado da morte, pois temia que um dia morresse ali,  solitário e esquecido,  sob o som alto e continuado, no ato contínua de uma   impressora tipográfica Minerva trabalhando a todo vapor.    Entretanto, nada disso acontecera, mas o receio da morte rondava-o novamente, agora,  diante daqueles carrascos à sua frente.  Então, como quem quisesse ganhar tempo, sabedor que “o sapo não pula por boniteza, mas por precisão”,  Miranda, sabe-se lá como,  esclarecia aos Agentes que na Moderna aprendera,  por exemplo,  que Ottmar Mergenthaler, o Otto, dizia o Miranda, fora  o inventor da ‘Linotipo’, nome aportuguesado de uma máquina de composição, que fundia em chumbo, linhas inteiras de ‘tipos’ em um único bloco. Na verdade, sabe-se lá como,  Miranda avisava que  havia quem  a chamasse de “A oitava maravilha do mundo!”... Diante da insistência de um Agente mais brando, Miranda explicou-lhe  que ‘tipo’  se referia às letras do alfabeto, aos sinais gráficos  e a todos os outros caracteres usados  para criar e formar as palavras, sentenças, blocos de texto, etcetera e tal.   Afirmou também para os Agentes,  que a sua função, antes da Linotipo,  era organizar  as letras para o bloco de impressão nas maquinas tipográficas, por isso, fora antes, um tipógrafo.  E assim que as antigas impressoras perderam lugar para as modernas offsets, ele, Miranda,  perdera também, o  emprego na Gráfica Moderna de São Paulo... Miranda reiterava para os  homens da lei,  que hoje era apenas um  pintor de faixas, quer dizer, fazia também  alguns banners,  algumas placas, além de cartazes e painéis...  E, ali,  na frente de todos eles, sabe-se lá como,   ainda jurava  por Deus nosso Senhor e  pela Santíssima Nossa Senhora Aparecida  que no dia de ontem fizera, sim, fizera aquela faixa inocente a que eles se referiam.   Uma faixa com uma  mensagem de amor.  Miranda esclareceu que fez  o serviço a pedido de um Motoqueiro,  que nem mesmo o capacete havia tirado da cabeça, por isso, ele, Miranda, não vira sequer o rosto do homem, que nem era  muito baixo nem era muito alto.  A moto, aquela sim, ficara ali parada, ali onde agora estão as viaturas; uma moto verde oliva, ali mesmo  junto ao meio-fio da rua.   Mas os Agentes, de imediato,  retrucaram que tudo bem, Seo Miranda, entretanto, a mensagem, saiba o senhor,  era um  SALVE GERAL” para uma contra-ofensiva comandada pelos presos diante da proibição de visitas íntimas no presídio. Havia quem dissesse também, Seo Miranda,   que era uma represália à linha dura do governo e do Comando da Segurança, que impediram a  saída  livre do Dia das Mães para os  detentos do semiaberto.  Portanto, afirmaram os Agentes, que ele, Miranda Martins, a pessoa jurídica, fora entregue aos policiais como o local onde se produziu  o “SALVE”, quer dizer,  a faixa solicitada pelo homem da  moto.  Agora, ele, “Miranda Martins, a pessoa física, dava pinta de não querer facilitar as coisas. Na verdade, enrolava e dificultava, até.  Custasse o que custasse, mas tinha de ter um nome.   Assim, disseram os Agentes,  tudo ficaria  muito mais  simples, não é mesmo, Seo Miranda?...  Afinal,  algo não estava se encaixando bem, disseram os Agentes.  Faltavam peças neste quebra-cabeças. Faltavam letras  nesse texto. A frase completa não fazia sentido, diziam. Estava sem coerência. Toda oração merecia  sujeito e predicado,  Seo Miranda de merda!... Algo está em falta nesse seu discurso,  seja uma crase, um  acento grave,  ou  uma  linha a mais que realce os contornos dessa historiazinha mal contada, Seo Miranda imprestável!... Por isso, Mano, abre o bico!... Caguete, alguém, vamos!... Vomite uma oração com início, meio e fim,  seu bosta!...   Aponte  o caminho útil  dessa narrativa;  Diz aí, Seo Miranda, quem é o protagonista, o herói, o mocinho?... o Cjefe do crime;  onde anda o sujeito, Seo Miranda?...   Não faça nós, os Agentes, perdermos a nossa compostura e leveza.  Vamos, seu merda, sopre  um nome,  me dá um nome, um nome!...Anda, Seo Miranda, anda!... O verso livre, Seo Miranda, incisivo, direto... A nota de rodapé que tudo esclarece; o parágrafo inteiro, completo, vamos, Seo Miranda, não temos aqui uma  vida inteira ao seu dispor!... E outra coisa, Seo Miranda – prosseguiram os Agentes -  Sabemos que  o senhor começou a trabalhar como Estafeta,  uma espécie de office-boy, já que Estafeta era o nome que se dava pros meninos lá  em Portugal, para aqueles  que trabalhavam em escritórios ou empresas fazendo serviços, assim, digamos,  sem muito valor, de pouca importância e complexidade... serviços  sem prestígio, coisa assim como ir a agência bancária fazer um pagamento de contas,  ou quem sabe,  andar para fazer  entrega de documentos, essas coisas, essas coisas burocráticas.  Era uma tarefa  de jovens que ainda não tinham lá seus estudos completados e precisavam de uns trocados, dinheiro, dinheiro,  para ele mesmo ou pra ajudar a família;  havia quem passasse uma vida inteira nesses empregos... Os  office-boys, que hoje os tempos se encarregaram de modificar, são os atuais Motoqueiros e Motoboys,  que agora já não são mais garotos, mas ao contrário,  são quase homens formados ou jovens com idade mais avançada, acima dos dezoito, e às vezes ultrapassando os vinte e tantos; nas grandes cidades, eles formam, hoje, um exército motorizado a ziguezaguear pelas ruas ...

Enquanto ouvia, Miranda era empurrado para dentro do camburão,  sentindo-se reduzido  a um homenzinho  infeliz e desastrado.  Miranda contemplava pela porta semiaberta,  os sinais da destruição no seu  estreito corredor de  dois por quase cinco; sentia-se triste, vendo espalhados pelo chão, atirados a esmo pelos estabanados Agentes, o seu armário, a sua mesinha, os cavaletes, os pincéis, os lápis,  as latas de tinta e de querosene, os tecidos, a sua banquetinha quadrada, com as laterais mais altas pra  facilitar-lhe  o apoio dos apetrechos... Miranda lembrou-se de que  ficara lá, também, em algum canto do chão, o  peso de papel, um pedaço de madeira com uma chapa de  metal fixada, em que se  via o desenho invertido de uma Águia... Um ‘clichê’ que Miranda guardara desde os tempos  da Moderna. Bastava que algum cliente apenas olhasse pro objeto, e ele,  Miranda, discorria contente,  sem titubear  Ah. isso é um clichê. Uma chapa  para impressão em relevo, usada nas antigas tipografias. Olha só, aqui a tinta não entra. Aqui entra. Quando a chapa pressiona o papel, pronto, a Águia surge soberana, resplandecente no claro-escuro, a cortar os céus!...

 As veraneios  dos agentes, agora, já davam sinais de manobra, e Miranda revia o filme daquela manhã  terrível de setembro, quando chegara ao terminal de ônibus e ali, como todos,  dera-se  conta do tamanho do estrago. A cidade ficara, inteira, de joelhos diante do  crime organizado.  Ainda nem raiara o dia e o saldo já estava contabilizado: incêndios em garagens públicas,  carros metralhados,  coqueteis molotov  explodindo em delegacias,  bombas caseiras estourando vidros, ataques relâmpagos nas bases móveis da polícia,   carros em chamas jogados contra agências bancárias,  caixas eletrônicos carbonizados,   ônibus incendiados nos terminais; e mais:  gritos, correrias, tiros e bombas na madrugada inteira... Sob um som cortante de sirenes, indo e vindo, ambulâncias e carros policiais cruzavam  as longas avenidas ou até mesmo subindo em canteiros e calçadas dos pedestres; ninguém poderia deixar de ver os estragos consideráveis que exalavam da temperatura quente daquela madrugada. Diante da paralisação geral do transporte público na região, todos seguiam andando avenida acima em direção ao centro da cidade.  Vez ou outra, nos bares e botecos, já se ouvia os plantões de TV e rádios com os  primeiros informes e comentários:  agentes policiais mortos, ônibus queimados, gente ferida e em estado grave, prédios públicos metralhados, vidros estilhaçados pelo chão...A ação comandada pelos internos aprisionados, fora mesmo  uma represália contra o sistema carcerário, garantiam!  As escutas  telefônicas, grampeadas pela polícia, apontavam para um  SALVE GERAL”. A referência, comentada pela jornalista da tevê, fez com que Miranda desviasse os olhos para o bar. 

 - Uma frase de amor!... – insistia a  repórter.

 Miranda, de forma automática,  repetiu o texto completo  para si mesmo. E eufórico com a notícia, se pudesse olhar com mais atenção, teria percebido que a frase que espocara  na TV,   acentuava-lhe  uma fortíssima  sonoridade carregada de culpa. Pelo menos era assim que seus batimentos cardíacos se manifestaram. Os sinais de impaciência tornavam-se, agora,  bem mais visíveis. Sem conseguir explicar para si mesmo, o como e o porquê, Miranda sentia-se cúmplice absoluto  do que enxergava e ouvia. O seu olhar, ao longo do caminho, parecia  denunciá-lo às centenas de trabalhadores que ali caminhavam juntos.  Talvez por essa razão, seus  passos ganharam outro ritmo, moto-contínuo, acelerados, uma corrida contra o tempo;  e o que  lhe vinha à cabeça naquele momento, era somente o  texto escrito no papel-rascunho que havia  deixado sobre a sua bancada, protegido pelo peso do clichê tipográfico... Entretanto, sem que soubesse como, os Agentes anteciparam à sua chegada e lhe prepararam o flagrante. Fora apenas o tempo de rodopiar a chave na porta de enrolar,  e lá estavam eles;  surgiram sabe-se lá de onde!...  Agora, no Camburão, moído, quebrado e alquebrado, com hematomas visíveis pelo corpo, surrado e torturado física e psicologicamente,  Miranda, longe de saber para onde o levariam naquele passeio sem fim,  viu surgir-lhe na mente as  páginas de uma  antiga brochura que  imprimira na gráfica Moderna: Dom Quixote!  Lembrou-se melhor: Dom Quixote de La Mancha, o romance famoso  de Miguel de Cervantes!... Miranda recordou-se de uma prova de página que lera para revisão. Lembrava-se ainda da fonte utilizada: maiúsculas e minúsculas em garamond, corpo 12,  romano.  E   sem que se desse conta saiu-lhe da boca um sussurro alto em brados:   Dom Quixote!... Voltou a repetir forte: -  Dom Quixote de La Mancha!...

 Enquanto Miranda regurgitava o nome do imortal cavaleiro  da triste figura,  acompanhado do seu fiel escudeiro Sancho Pança, avançando por  montes e vales, e lutando contra moinhos de vento e cavaleiros imaginários em nome da justiça,  os Agentes policiais,  atônitos e boquiabertos, em uníssono, cumpriram ordens de se reunirem  em confraria, numa espécie de AAU, quer seja, uma Assembleia de Avaliação Urgente;  algo como uma banca examinadora que fixasse pontuação ao texto diante  da adequação ao tema, coerência, coesão, encadeamento das ideias,  ortografia e dificuldades gramaticais... E assim, os Agentes chegaram imediatamente  a um veredicto: foram unânimes em afirmar que  avançaram.  E como avançaram.  Sim, sabiam que o caminho era esse.  Miranda não era mesmo um reles  pintorzinho de faixas como antes alguns previram;  nem sequer  um inocentezinho pra inglês ver... Não!... Hoje, Miranda estava ali entregando o ouro sobre a  mais recente e  perigosa facção criminosa  surgida no interior do sistema prisional:  Dom Quixote!  Sim, diziam os Agentes,  agora estavam prontos  para uma nova investida.  Agora, agora tinham um nome. Agora, agora era escancarar as portas para a imprensa.  Afinal, não basta só botar o ovo. É preciso cacarejar: Dom Quixote! ...Operação Dom Quixote!!! diziam sorridentes e aos brados, sob o som das sirenes e buzinas, comemorando a descoberta da  facção que, ou já existia ou estava sendo plantada nos corredores do sistema prisional. Sim, estava claro, o ataque fora encomendado por uma nova e recente força:  Dom Quixote!... Operação D. Quixote.  Algo como uma luta dos amotinados contra os gigantes controladores do cárcere;  Algo como  uma proposta de implosão do sistema de Segurança Pública; ou ainda, quem sabe,  um combate sem tréguas para ridicularizar os promotores e os agentes da lei. E tudo isso,  regado a muita ironia e blasfêmia. Sim, concluíram os Agentes: naquele 12 de setembro havia surgido  um novo modelo de célula,  inclusive com uso de amigos, parentes,  pilotos e celulares... Operação Dom Quixote!... Operação Dom Quixote!... 

 Tivesse olhos pra todas as coisas, Miranda veria que  os Agentes, naquele momento,   sequer  lhe davam atenção, quando, insistentemente,  repetia as palavras que ouvira do Motoqueiro:  “ quero as  letras bem grandes, Seo Pintor...Assinar não é preciso, não! O Anjo me conhece, Seo Pintor.  Deixo o pagamento adiantado e  retiro à tardinha... E motoboy tem folga, Seo Pintor? Folga nenhuma. O dia inteiro no vai e vem dessa cidade. Entrega e busca. Leva e traz!...”

Desse  mais atenção ao entusiasmo que causara aos  Agentes,  que riam e riam em sinal do V de  vitória. sob os sons desconcertantes das sirenes,  Miranda perceberia  que a conversa que ouvira do falso motoboy pouco lhes interessava naquele momento, entretanto, Miranda continuava acentuando o que o “ avião” lhe dissera: “Porcelana fina, Seo pintor!... Uma Diana, essa mulher!...  Deusa Grega, essa Vênus platinada... Pois quero fazer-lhe uma surpresa, Seo Pintor. Quero ver a faixa  estendida bem lá  na  esquina,  bem ali no cruzamento da avenida por  onde ela passa todo dia”.   Miranda registrara as lembranças com nitidez e precisão. E por essa razão empolgava-se com sua memória. A ele, Miranda, parecia-lhe que cada palavra, cada frase que dizia, transformava-se em testemunha ocular para a  sua própria liberdade. Sua memória, portanto, poderia  servir-lhe de álibi infalível pra escapar dessa bruta  enrascada em que se metera naquele dia. Grosso modo, era como se ele, Miranda, tivesse se transformado no próprio Motoqueiro em pessoa, tal a empolgação dirigida aos Agentes: “ Essa mulher é como uma princesa, Seo Pintor.  Preciosa como um objeto raro que se guarda na Cristaleira. Fosse de vidro, Seo Pintor, seria  um ‘Murano’, translúcido e colorido,  com traços feito à mão, coisa de artesão  que se consagra soprando belezas raras com a cana de vidreiro.  Fosse uma paisagem,  Seo Pintor, habitaria os campos resplandecentes de um amanhecer esplendoroso...  Cuido que nunca se  quebre esse vaso Chinês, Seo Pintor. Nunca!.. Essa mulher,  eu carrego aqui  no meu  coração...Pois escreve  aí, Seo Pintor, escreve aí   nessa faixa com as letras  grandes, Seo Pintor, bem grandes,   assim ó:  BIBELÔ, EU TE AMO!”.

Ainda que os Agentes não lhe  dessem a mínima,  Miranda esclarecia a eles que até rira de si mesmo diante do trabalho que fizera, e confessou a si mesmo que,  para um tipógrafo-minervista até que se saíra muito bem como um pintor de faixas!”.  Miranda explicou ainda, que desenhara  as letras sobre o tecido branco. A mensagem, esta destacara em vermelho-vivo,  cor quente, a cor da do amor e da paixão. As letras ganharam assim um jeitão bold, pesadas,  com um ligeiro filete em preto, que era  pra saltar aos olhos da musa do Motoqueiro.  Pois não fora assim, o pedido?...  Então, o Motoqueiro não lhe implorara o máximo empenho pra lhe atender a um desejo do coração?

 Alheios e indiferentes, os Agentes todos, como articulassem um pacto, um sinal de aviso,  uma combinação prévia,  uma estratégia armada para dar inicio à “Operação Dom Quixote”, cruzavam com seus veículos em marcha moderada, depois de muitas  idas e vindas rodando com as possantes viaturas.  Agora, agora chegavam a um destino em silêncio gradual e profundo.  Uma a uma, simultaneamente, as portas escancaram-se para a saída dos Agentes que, calados todos, diante daquele cenário de relvas, num campo aberto tal qual uma clareira à espera de  acontecimentos,  a um só tempo, e juntos,  pareciam remoer aquela maldita frase reiterativa: Dom Quixote!...Operação Dom Quixote!... Todos, ali, pareciam sentir na própria carne, aquele  golpe fulminante que sofreram diante da frase estampada numa faixa de rua: BIBELÔ, EU TE AMO!... Por isso, o revide. Por isso, a vingança.  Por isso, o troco cruel  a quem ameaçara colocar  a cidade em pé-de-guerra naquela  fatídica manhã de 12 de setembro; dali pra frente, era, pois, o inevitável. O fato  exigia dos Agentes  um olhar para o  avesso do avesso do avesso.  Por isso,  de olhos vendados pelos seus algozes, e desatento às urdiduras todas do demorado passeio daquela manhã,  Miranda descera do Camburão amaldiçoando o seu dia,   sentindo um  suor frio  percorrer-lhe algumas vértebras da  espinha,  ao compreender  que ali,  bem próximo dele, pelo som que se impunha,  os grupos  se dividiram:  de um lado,  alguns  Agentes marcando um ritmo cadenciado na palma das mãos, chamando-o  aos gritos, de  forma alternada e incessante: anda, Miranda, anda!... anda, Miranda, anda!...e de outro... todo os demais ensaiavam uma sequência ruidosa  de sons metálicos, tal qual gatilhos em preparativos, que pipocariam sobre seu corpo, martelando os seus ouvidos e ferindo seus tímpanos continuadamente...