O vulto veloz da ave cortou a noite à minha frente. UHUHUHUHUUUU... Não posso jurar, mas por instantes, além daquele pio lúgubre, a Coruja parecia deitar também os seus olhos grandes e penetrantes sobre a minha desabalada fuga naquela estrada escura. Assim, mais de uma vez, a ave ziguezagueou o meu caminho acentuando com o seu pio, as nuances de uma sonoridade estranha e acusativa, como se me intimidasse de dedo em riste, e gritando e invadindo a minha caminhada no breu da noite: EU VI...EU VI.... EU VI... essa sonoridade ia me dando mostras de que a ave acompanharia o meu vulto onde quer que eu fosse, onde quer que eu andasse. Por diversas vezes, à custa de um certo
arrependimento, enxuguei com a manga da
camisa, o suor frio que escorria do meu rosto naquela acentuada trilha, que a bem dizer, não deixava ver um palmo à frente do nariz. Uma noite sombria
que me acompanhava desde que saí da casa.
Na estrada, por onde eu me embrenhara, várias vezes, retive o
animal com as rédeas, estancando-o bruscamente, obrigando-o a me obedecer diante dos desafios da trilha esburacada, pedregosa e
acidentada; ora subidas íngremes, ora curvas abruptas por entre o mato. Nesses momentos, eu sentia falta de ouvir algo que quebrasse o silêncio, além do
trotar da minha montaria, mas o que
martelava em meus ouvidos, mais e mais, era o agudo pio da ave, como a gritar
comigo estridentemente: EU VI... EU
VI...EU VI... o que me fazia, assustado,
relembrar e refletir sobre os acontecimentos que motivaram a minha própria fuga naquela noite. Nessa hora, pudesse me ver refletido num espelho, sou capaz de afirmar que meu semblante acusaria
um susto medonho diante do pio da ave, que mais parecia promover uma
provocação inabalável: EU SEI ...EU SEI...EU SEI... A Coruja piava dando um ar ainda mais misterioso à noite... e eu, eu sentia
na minha própria pele, o mau presságio
rondando a minha caminhada; havendo
demônios e maldições nesse mundo, nesse
instante, eu sentia a presença de todos eles, de olhos
esbugalhados e atentos, traçando o meu
infortúnio estrada afora. O coração, esse, eu sentia bater acelerado, quase a explodir pela proximidade daquele pio sem fim da ave agourenta: UHUHUHUH... Numa das minhas paradas, denunciei-me a mim mesmo. Era como se eu sofresse um ressentimento, uma amargura, um enjoo, um embrulhar do estômago; eu ali, sentia de perto um rancor pelo que fizera a ela. Remoía-me por demais, por dentro. E cheguei mesmo a dizer em altos brados, esbaforido: “ - Ave do inferno...suma, suma daqui!...”. Sim, eu me arrependia do que fiz, mas nunca, nunca,
queria ser vingado por um demônio que me provocava dessa forma, imputando-me a
culpa a olhos vistos; a ave, nesse
instante, eu pude vê-la sobre um toco da cerca, iluminado apenas pela frágil
luz da lua; Imponente sobre aquele mourão, ela, a Coruja, ali,
silenciosa, os olhos grandes e fixos sobre os meus gestos no alto da
montaria, o que me levava a revidar insistentemente: “- Xô,
Xô... ave maldita.. Xô, Xô...” A Coruja, ali, confiante e soberana sobre o tronco, punha-se ainda mais horripilante. Talvez me desafiasse naquela escuridão da noite, em que me vencia, fácil, fácil, com a sua visão privilegiada. Ela, ali, quase a me dizer, que eu lhe adivinhasse os pensamentos. Sim, era isso, a ave, ali, parecendo revelar seus dotes de clarividência, o que me escapava ao domínio; a ave, ali, dentro da noite com o poder ver e escutar o que nós, os homens, não vemos, não enxergamos. Além disso, que eu ficasse pasmo vendo o girar do seu pescoço ao redor, o que superava, ainda mais, a sua capacidade de ter olhos para aquele espaço amplo, sem que precisasse se mover; por isso, somava, ali, visão e audição à sua habilidade de ave caçadora noturna. Ou nada disso, talvez seja mesmo, como me contaram, uma Velha vestida de preto com poderes sobrenaturais, camuflada em noites escuras no corpo de uma ave, uma coruja. Teria, assim, os poderes divinos aquela Coruja? Acredito que sim, por isso, enquanto todos dormem, ela se mantém de olhos arregalados, fixos e vigilantes, refletindo sobre o que escondemos, e até, enxergando, profundamente, o que queremos, em nós, os homens, deixar oculto para sempre. A essa altura, a bem da verdade, eu ponderava a mim mesmo que não poderia voltar atrás; no entanto, ainda sem me acostumar com a ideia de que fizera o que tinha de ser feito, deveria seguir em frente! – ponderei. Junto a uma árvore, bem próxima ao canavial espesso, pude examinar o par de alianças, exemplarmente escondidas sob as dobras delicadas de um lenço feminino. Senti-as por entre os dedos longos em vários instantes, até que, atabalhoado, pelo pio da ave e o ruído forte do seu ataque de asas em minha direção, tentei amparar-lhes a queda com a palma trêmula das mãos. Impossível o meu gesto. As alianças, ao caírem rodopiaram estrada abaixo, tilintando, tilintando naquela noite escura, continuadamente, por sobre pedras e rochas, deixando ver aqui e ali, o rastro de um brilho quase apagado ao rolarem, desamparadas, na escuridão da estrada. Ainda sem jeito e desorientado, socorreu-me o alívio e a certeza de que, só mesmo no clarão do dia é que poderiam, as alianças, serem encontradas. Enquanto ganhava esse tempo, eu puxava o fio do novelo. Os acontecimentos agora chegavam fortes e carregados de uma rica e inflexível simbologia. A ave garantia: EU VI... EU SEI... EU VI.... Impossível não associar a queda das alianças com o corpo de Alzira rodopiando apavorada pela escada abaixo; despencando cada vez mais, sem qualquer apoio, degrau por degrau, até a soleira daquele piso de pedra no hall da grande sala da casa. Do alto da escadaria, assisti a tudo, impoluto, resistente e confiante do meu gesto. Acrescentei à essa imagem, ainda viva na minha mente, as marcas do sangue que tingira como uma pasta espessa e gosmenta, todo o mármore branco da escadaria. Por alguns momentos , tudo em mim transformava-se em remorsos. Quem dera, pudesse recomeçar o relacionamento e buscar pelo perdão de Alzira? Entretanto, noutros instantes, via-me com um olhar parado naquela noite densa, a insinuar a mim mesmo que nunca, nunca, haveria de lhe perdoar a traição. E pior, ainda, traição ocorrida dentro da nossa própria casa. Nada vi, nada vi, mas eis a cisma que tive, transformada em ciúme cruel e vingativo. Por essa razão, prometi: haveria de livrar-me de Alzira e do compromisso que acreditava imaculado entre nós, diante do altar: Até que a morte nos separe!... Assim, guiado pela desconfiança, sobrepus o ciúme à frente, com o desejo de fazê-la pagar pela infame traição. Naquela noite, convicto das minhas suspeitas, cheguei obcecado pelo castigo que lhe empunharia. Sim, agora me dei conta de que ao avançar para a casa ouvi aquele piado bem próximo à entrada: UHUHUHUHUH.... Subi as escadas e arranquei-a da espreguiçadeira, sabendo que já sentia o meu ódio pela força que eu lhe impunha. Alzira debateu, refugou, se fez em gritos, os nervos saltaram-lhe à pele quando pressentiu o horror defronte da alta escadaria. Pediu clemência, implorou aos Anjos e ao Redentor, mas a obsessão, há muito, havia tomado o meu corpo e explodia pelas minhas veias. Forcei que Alzira olhasse o destino lá embaixo, tomei-lhe a aliança, e meus braços cuidaram do resto. Na queda, regada a gritos de dor, ouvi lá fora o som do bater de asas e o pio da Coruja, que ecoou, longamente, o horror estampado na sala. Suportei a dor de ver Alzira estirada na poça de sangue. Nessa hora, adiantei-me à penteadeira em busca de um lenço, onde coloquei as duas alianças que selaram uma parte das nossas vidas. Estava vingado, assenti. Vingado no sentido sufocante da palavra. Mas se quisesse evitar o castigo que, por certo, logo me alcançaria, a fuga era mesmo inevitável. Sob a copa de uma árvore que ladeava a estrada, apeei do animal e recostei-me ao tronco dessa heroica e única amendoeira que restara defronte àquele mar de cana. Eu viveria
ali, uma ansiosa e demorada espera até ao amanhecer. Ao clarear do dia, enfim,
recolheria as alianças-testemunhas do meu último gesto. Enlacei as
rédeas do cavalo no mourão da cerca e nesse instante, novamente, a ave cortou a
noite à minha frente, acocorando-se ágil
no toco do outro lado da estrada, de
onde, incomodada e insistente, emitia seu estridente grito endereçado a mim: UHUHUHUH... EU VI... EU SEI... EU VI....
Atinei em espantá-la, inutilmente. Voava e voltava. Abria e fechava suas longas
asas. Enfrentava-me indo e vindo. UHUHUHUHUH... Então, com um pavor desnorteado, empurrado cada vez mais
pela ave à procura de um gesto que
fosse, abri a mochila agregada à
sela, e cometi, sem perdão, um ato silencioso e reservado, que ainda não havia revelado a ninguém, por conta do meu arrependimento de amor. Na
fuga, em mim, vivi algo que me fez ver a própria existência pela voz tonitruante de Alzira, ao
rolar na escadaria. “Naufragaste, marido
insano. Duvidastes da minha lealdade. Eu, que desfaleço a seus pés, hei de
seguir o que, em um sim mútuo, juramos. E tu, que te agarraste à honra, à
desconfiança, ao terrível ciúme doentio, haverá de seguir só, sozinho pela
noite, até o exato instante em que te
medites sobre sua dívida à vida.” Sim, essas palavras que ouvi de
Alzira me conduziram à decisão, e então,
com as minhas mãos ágeis e um golpe
certeiro, lancei a corda
no galho apropriado ao meu peso e altura. O gesto atiçara a ave,
levando-a a retomar a ordem viva, vibrante e acusatória:
EU VI...EU SEI... EU VI.... As mesmas mãos que, brutalmente, arremessaram Alzira escada abaixo, ali, agora, ainda no escuro daquela noite,
transformaram-se em mãos de artífice,
tornando esse que vos fala, em um exímio carrasco dele mesmo, ao executar um nó perfeito, um laço rígido que me sustentaria pelo pescoço, dolorido
e quieto, diante do acentuados pios da Coruja, até o alvorecer, quando, inevitavelmente, eu seria
encontrado morto; e as alianças-testemunhas descobertas em seu brilho no leito
da estrada acidentada...
CONTOS DE TERROR O PIO DA CORUJA Texto: CELSO LOPES
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