sexta-feira, 29 de outubro de 2021

A TRAVESSIA (Conto BEATINIK) Persona Editora CELSO LOPES

 


Beatnik - Inconformação com a moral, religião e política ocidental, apreciação pelo outsider, marginalidade, antimilitarismo, ou seja, desapreço por tudo que nos oprime e controla. Esta era a bandeira dos autores da geração beatnik.

   

“A TRAVESSIA ”

 

“ O próprio desejo é viagem, expatriação, saída do meu lugar.”

                                                  Francis Affergarn - Exotisme et altérité -  Paris/PUF/1987

 

Aquela madrugada fluía solta e movimentada no vilarejo.  Logo, o clarão anunciaria  mais uma daquelas  manhãs quentes de verão e o final de mais uma  noite agitada.  Entretanto  para Nirollez, o músico, o significado da palavra ‘fim’ era um reencontro;  uma forma de se penitenciar;  ‘fim’ era o seu próprio desafio para se livrar de um sentimento de culpa que carregara durante toda a sua existência, ao se apegar, desmedidamente, no bem que mais apreciava na vida:  a  música... a música clássica!... Por isso,  àquela hora,  assim como quem nos oferecesse um concerto ainda  sob a luz do  luar, Nirollez surgira com  o  som poderoso  do seu recente instrumento, o Sax MC VI, a jóia rara dos aficcionados,  e passara  a comandar  uma sinfonia sonora naquela pequena rua do arraial de pescadores. E o  que víamos e ouvíamos era algo inusitado e envolvente: pouco a pouco, conforme avançava, com passos lentos e firmes, Nirollez, o músico, conseguira a proeza de instalar o silêncio onde jamais imaginávamos, pois, ali,   diante de todos nós,  fizera  emergir e  reverberar uma sonoridade  tonitruante,  estupenda,  arrancada do seu mágico Saxofone.  E lá  estava Nirollez. A cada passo, em sua execução, nada  parecia cercear as intenções do  intérprete em seu contínuo movimento de seguir em frente. Nada, ali, a impedi-lo  no  provocante  uso que fazia  daquela brilhante  improvisação ao fazer a travessia daquela rua com seu poderoso Sax.  Nirollez, o músico,  entregava-nos tudo isso de mão beijada,  num contínuo processo de criação  e recriação.  Os acordes instigantes, catárticos, mais pareciam gritar para que ouvíssemos a sua  história. Era isso que Nirollez parecia nos dizer,  ali, desfilando à nossa frente.   E se o espírito do jazz está em pensá-lo  como uma linguagem, como  algo que nos lava a alma, e  nos leva à alma a sua origem, o que se ouvia no improviso do jazzista era a sua maneira de nos  conduzir,  de se expiar em culpas à frente daquele público... Era visto que tudo ali era urgente  Por isso, inevitável como a noite que surgia atropelando, Nirollez  seguia impregnando-nos  o seu ímpeto diante do belo e do prazer,  de  um jeito  único, como se ouvíssemos ali,  a voz  dissonante  de “Lester Young”, a nos dizer e a nos intimar:  Escutem, eis aqui a  minha história!... Ouçam!..Ouçam, todos!...”.  O sax  de  Nirolllez   ‘cantava’ com as  raízes do  próprio jazz,   com suas origens e influências, como se ali fosse ele, Nirollez, o talentoso e criativo “Charles Parker” arrastando-nos  de uma  forma inovadora, o que  tornava tudo aquilo para nós,  uma espécie de  Nirollez/Parker’, dois  ícones da  beat generation!...Nem mesmo um olhar mais atento poderia indicar que  à nossa frente estava o maestro Nirollez, um homem acostumado ao reconhecimento do público em seu país, e não somente nos teatros locais como também nas principais casas da Europa; Algumas  evidências de seu desconforto com a música clássica surgiram em sua última récita, quando mal acabara de se curvar, agradecendo aos aplausos pela regência da sua ópera, “1984”, baseada no texto do escritor George Orwell,  e já deixava, apressadamente, sem dizer mais nada,  o pomposo teatro municipal portenho. Impossível não imaginar a situação que criara  ao seu empresário, à esposa, aos dois filhos, aos amigos, e principalmente,  ao seu  público seleto e fiel  que, inevitavelmente, sentiria, para sempre,  a sua ausência. Instantes  depois  dessa ‘performance’ colossal na capital Argentina,   Nirollez  já ocupava um lugar  à bordo de um ônibus da Pluma, em direção à cidade do  Rio de Janeiro, onde, ao chegar,  seguiria  de táxi até o aeroporto Santos Dumont,  para embarcar num voo que  o levaria até  Ilhéus, na Bahia.  Da terra do escritor Jorge Amado, seguiria   para o vilarejo que lhe reservava o sol do  pleno verão à beira-mar.      Por certo,  no voo passara em retrospectiva a sua vida  e a sua história  de um dos  mais prestigiados maestros de todos os tempos. É certo que se mantivera avesso aos grandes festivais como Woodstock, Altamont, Monterey e outros,  em que  surgiram novos expoentes da musica mundial, como  Jimi Hendrix  e  Janis Joplin;  confessava-nos, naquela travessia,  que  ouvira, sim,  o refrão que todos sabiam existir em   Lucy in the sky with diamonds... e, claro, acompanhara  todas as intenções de alegoria ao LSD. E então, perguntaria  a si mesmo: por que acreditar nessa história jovem, nesse poder jovem?...    Mas fora diante dos movimentos políticos dos anos 60, em especial,  o “maio de 68” francês, que Nirollez balançara. Sim, entendia os protestos estudantis como reivindicações por um ensino melhor, entretanto,  vira o desencadear de uma greve geral  de dez milhões de pessoas...  Não, não era apenas o ‘é proibido proibir’, ou as palavras de ordens ‘queremos o impossível’...  Não, 68 apresentara-se como uma brecha na história, e fora capaz de  colocar em xeque a  sociedade que se pensara até então...  Nirollez entendera, sim, que o mundo reagira com uma grande recusa, em  que ‘os de cima não conseguiam mais  mandar, e os que estavam embaixo não queriam de forma alguma  obedecer’.. Sim, era o  ano de se  recusar a tudo.Um grito lancinante ecoava no  planeta.  Mas Nirollez também  vira  chegar o  The dream is over”, o sonho daqueles jovens  chegara ao fim, carregando as utopias todas e  os  seus comandantes...  Vivenciando essa travessia,   Nirollez   reiterava para si, o desafio de  romper de vez com tudo o que aprendera e ganhara como intérprete da música clássica mundial;  a ordem agora era livrar-se dos limites,  das notas,  dos horários e  das agendas...  Nirollez  elegera, portanto,  o jazz,  para lhe carregar a vida;  descobrira  que o sax impunha-se à  improvisação necessária, porém nunca estivera presente em sua formação sisuda e acadêmica.  Nirolezz,  naquela madrugada,  rasgava todas as suas partituras e harmonias... Agora, ali, no pequeno  vilarejo, dedicava a si  mesmo,   um  excesso de cuidados para não revelar  referências ao seu  passado.   Por vezes,  à beira-mar, no sol escaldante,  via-se  com a areia nas mãos, escorrendo como uma  interminável  ampulheta  que lhe mostrava o tempo e  a sua fluidez.  Foram dias ali,  até o momento em  que uma coragem  maior lhe sobrepôs de uma forma  jamais vista ou sentida... Como algo inevitável, a música pulsou-lhe novamente  nas veias, saltou-lhe aos poros e explodiu em sua mente.  Agora, ali, pela primeira vez,  olhara sem culpa o seu sax MC VI, que jamais tocara,   e encarou-o  com algo necessário à  sua própria razão de viver; assim,  o passo seguinte fora decisivo:  com as  mãos protegendo a chama  da brisa marinha,  Nirollez  faria  surgir as  labaredas que  pouco a pouco  engoliriam  todos  os  registros e  documentos do grande músico que fora. À beira da praia  faria morrer,  burocraticamente,   o maestro  Nirollez,  e emergir o seu novo ser, o jazzista,  um novo habitante daquela terra  encantada.  Por iss, hoje, naquela travessia,  Nirollez colocava em prática a sua transgressão tardia, entretanto, sincera. Purificava-se da sua culpa, buscava, ali,  uma reparação existencial,   pois mantivera-se à margem, fora impassível, fugira à luta quando escolhera todas as benesses do establishement... Pois agora, que lhe deixassem seguir, pagar o seu preço, sofrer o que lhe era imponderável...  Os  improvisos  do músico Nirollez, com  seu  sax  MC VI    ganhavam distância na travessia da rua;  deixavam  para traz o bar Chaparrals e as portas do  Manda-brasa,  de onde se desvendava a estradinha que seguia em direção à praia... Os improvisos do músico Nirollez  com o seu  sax MC VI  passaram a  comandar a sinfonia, não apenas de uma rua, mas de um caminho que nos levava,  a todos,  em direção ao mar... Nirollez seguia como quem cumprisse uma simples desarmonia vivida naquela madrugada ... Os seus pés,  pouco a pouco,  já tocavam a areia, atingindo lentamente o quebra-mar,  ainda  leve, calmo, raso, movediço... A sua  música rivalizava-se com o bramir das ondas, dimensionava à altura, como numa audição  em seu  ápice melódico, capaz de  expandir o espaço, a superfície e a profundidade,  levando o jazzista a seguir improvisando acordes e timbres  em direção aos arrecifes, onde o clarão metálico  do seu sax, sob uma intensa luz do luar, ia indo, seguindo, avançando o horizonte até  onde a água  interpunha-se   à  vista da gente, até onde  um sexto sentido nos indicava que aquela noite engolira para sempre o maestro Nirollez... Até a gente sentir na própria pele,  que o mar, o maestro e o sax MC VI,  em verdade,  uniram-se como uma  só coisa, num só corpo,  em uníssono!...

Nota:   “A TRAVESSIA” é uma narrativa ficcional.  NIROLLEZ   é um  anagrama imperfeito de ‘Lorin Maazel’ –  maestro norte-americano, estrela de primeira grandeza na música clássica, a quem  é dedicado este  conto

 Texto:  CELSO LOPES                elipse84@terra.com.br

 

O PIO DA CORUJA - Texto CELSO LOPES (Contos de Terror)

 






O vulto veloz da ave cortou a noite  à minha frente. UHUHUHUHUUUU... Não posso jurar, mas por instantes, além  daquele pio lúgubre, a Coruja parecia  deitar também os seus olhos grandes e penetrantes  sobre a minha desabalada fuga naquela  estrada escura.  Assim, mais  de uma vez,  a ave ziguezagueou o meu caminho acentuando com o seu  pio, as  nuances de uma   sonoridade estranha e acusativa,  como se me intimidasse de dedo em riste, e gritando e invadindo a minha caminhada no  breu da noite:  EU VI...EU VI.... EU VI...  essa sonoridade ia me  dando mostras de que  a ave  acompanharia o  meu vulto onde quer que eu fosse, onde quer que eu andasse.       

Por diversas vezes, à custa de um certo arrependimento, enxuguei com a  manga da camisa,  o suor frio que escorria do meu  rosto naquela acentuada trilha,  que a bem dizer,  não deixava ver  um palmo à frente do nariz. Uma noite sombria que me acompanhava desde que saí da  casa. Na estrada, por onde eu me  embrenhara,  várias vezes,  retive o   animal com as rédeas,   estancando-o bruscamente,  obrigando-o a me obedecer diante dos  desafios da trilha esburacada, pedregosa e acidentada; ora subidas íngremes, ora curvas abruptas por entre o mato.  Nesses momentos, eu sentia falta de  ouvir algo que quebrasse o silêncio, além do trotar da minha montaria,  mas o que martelava em meus ouvidos, mais e mais, era o agudo pio da ave, como a gritar comigo estridentemente:  EU VI... EU VI...EU VI...  o que me fazia, assustado, relembrar e refletir  sobre os  acontecimentos que motivaram a minha própria   fuga naquela noite.

Nessa hora, pudesse me ver refletido num espelho,  sou capaz de afirmar que meu semblante acusaria um  susto medonho diante do pio  da ave, que mais parecia promover uma provocação inabalável: EU SEI ...EU SEI...EU SEI...  A Coruja piava  dando um ar ainda mais  misterioso à noite... e eu,  eu  sentia na minha própria pele,  o mau presságio rondando  a minha caminhada; havendo demônios e maldições nesse mundo,  nesse instante,  eu  sentia a presença de todos eles, de olhos esbugalhados e atentos,  traçando o meu infortúnio estrada afora.  

 O coração, esse, eu  sentia bater acelerado, quase a explodir pela proximidade daquele pio  sem fim  da  ave agourenta: UHUHUHUH...    Numa das minhas  paradas, denunciei-me  a mim  mesmo. Era como se eu sofresse um  ressentimento, uma  amargura, um enjoo, um embrulhar do estômago;  eu ali, sentia de perto um rancor   pelo que fizera a ela. Remoía-me por demais,  por dentro. E cheguei mesmo a dizer em altos brados, esbaforido: “ - Ave do inferno...suma, suma daqui!...”. 

Sim, eu me arrependia do que fiz, mas nunca, nunca, queria ser vingado por um demônio que me provocava dessa forma, imputando-me a culpa a olhos vistos;  a ave, nesse instante, eu pude vê-la sobre um toco da cerca, iluminado apenas pela frágil luz da lua;  Imponente sobre  aquele mourão, ela,  a Coruja,  ali,  silenciosa, os olhos grandes e fixos sobre os meus gestos no alto da montaria, o que me levava a revidar insistentemente:   “- Xô, Xô... ave  maldita.. Xô, Xô...”

 A Coruja, ali, confiante e soberana sobre o tronco, punha-se ainda mais horripilante. Talvez me desafiasse naquela escuridão da noite, em que me vencia, fácil, fácil,  com a sua visão privilegiada. Ela, ali, quase a me dizer,  que eu lhe adivinhasse os pensamentos.  Sim, era isso, a ave, ali, parecendo revelar seus dotes de  clarividência,  o  que me escapava ao domínio; a ave, ali,  dentro da  noite com o poder ver e escutar o que  nós, os homens,  não vemos, não enxergamos.  Além disso, que eu   ficasse pasmo vendo o  girar do seu pescoço ao redor, o que superava, ainda mais,  a sua   capacidade de ter olhos para  aquele  espaço amplo,  sem que  precisasse se mover; por isso, somava, ali, visão e audição à sua habilidade de ave caçadora noturna. Ou nada disso, talvez seja mesmo, como me contaram,  uma Velha vestida de preto com poderes sobrenaturais, camuflada em noites escuras no corpo de uma ave, uma coruja.  Teria, assim, os  poderes divinos aquela Coruja?  Acredito que sim, por isso, enquanto todos dormem,  ela se mantém de olhos arregalados, fixos e vigilantes, refletindo sobre o que escondemos, e até,  enxergando, profundamente, o que queremos, em nós, os homens,  deixar  oculto para sempre.

A essa altura, a bem da verdade,  eu  ponderava a mim  mesmo   que  não poderia voltar atrás;  no entanto, ainda  sem me  acostumar  com a ideia de que fizera o que tinha de ser feito, deveria seguir em frente! – ponderei.

Junto a uma árvore, bem próxima ao canavial espesso, pude  examinar  o par de alianças, exemplarmente escondidas sob as dobras delicadas de um lenço feminino. Senti-as por entre os dedos longos em vários  instantes, até que, atabalhoado, pelo pio da ave e o ruído forte do seu ataque de asas em minha direção,  tentei amparar-lhes a queda  com a  palma trêmula das mãos. Impossível o meu gesto.  As alianças,  ao caírem rodopiaram estrada abaixo, tilintando, tilintando naquela  noite escura,  continuadamente,  por sobre pedras e   rochas,  deixando ver aqui e ali,  o rastro de um brilho quase apagado ao  rolarem, desamparadas,  na  escuridão da estrada.  Ainda sem jeito e desorientado, socorreu-me o  alívio e a certeza de que, só mesmo no clarão do dia é que poderiam, as alianças, serem encontradas. Enquanto ganhava esse tempo,  eu   puxava o fio do novelo. Os acontecimentos  agora chegavam fortes e carregados de uma rica e inflexível simbologia. A ave garantia: EU VI... EU SEI... EU VI.... Impossível não associar a queda das   alianças com o corpo de Alzira  rodopiando apavorada pela escada abaixo; despencando cada vez mais, sem qualquer apoio,  degrau por degrau,  até a soleira daquele piso de pedra  no hall da  grande sala da casa.  Do alto da escadaria,  assisti a tudo, impoluto, resistente e confiante do meu gesto.   Acrescentei  à essa imagem, ainda viva na minha  mente, as marcas do sangue que tingira como uma pasta  espessa  e gosmenta,  todo  o mármore branco da escadaria. Por alguns momentos , tudo em mim  transformava-se em remorsos. Quem dera, pudesse recomeçar  o relacionamento e buscar pelo perdão de Alzira?  Entretanto, noutros instantes, via-me com um olhar parado naquela  noite densa, a insinuar a mim mesmo que nunca, nunca,  haveria de lhe perdoar a traição. E pior, ainda,  traição ocorrida dentro da   nossa própria casa. Nada vi, nada vi,  mas eis a cisma que tive, transformada em ciúme cruel e vingativo. Por essa razão, prometi:  haveria de livrar-me de Alzira e do compromisso que  acreditava imaculado entre nós,  diante do altar:   Até que a morte nos separe!... Assim, guiado pela desconfiança, sobrepus o ciúme à frente, com o desejo de fazê-la pagar pela infame  traição. 

Naquela noite, convicto das minhas  suspeitas,  cheguei obcecado pelo castigo que lhe empunharia. Sim, agora me dei conta de que ao avançar para a casa ouvi aquele piado bem próximo à entrada: UHUHUHUHUH.... Subi as escadas e arranquei-a da espreguiçadeira, sabendo que já sentia o meu ódio pela força que eu  lhe impunha. Alzira debateu, refugou, se fez em gritos, os nervos saltaram-lhe  à pele quando pressentiu o horror defronte da alta escadaria. Pediu clemência, implorou aos Anjos e ao Redentor, mas a  obsessão, há muito,  havia tomado o meu corpo e explodia pelas minhas veias. Forcei que Alzira olhasse o destino lá embaixo, tomei-lhe a aliança,  e meus braços cuidaram do resto. Na queda, regada a gritos de dor, ouvi lá fora  o som do bater de asas e o pio da Coruja, que ecoou, longamente, o horror estampado na sala.  Suportei a dor de ver Alzira estirada na poça de sangue. Nessa hora, adiantei-me à penteadeira em busca de um lenço, onde coloquei as duas alianças que selaram uma parte das nossas vidas. Estava vingado, assenti. Vingado no sentido sufocante da palavra. Mas se quisesse evitar o castigo que, por certo,  logo me  alcançaria, a fuga era mesmo inevitável.

Sob a copa de uma  árvore que ladeava a estrada,  apeei do animal e recostei-me  ao tronco dessa  heroica e única amendoeira  que restara defronte àquele mar de cana. Eu viveria ali, uma ansiosa e demorada espera até ao  amanhecer. Ao clarear do dia,  enfim,  recolheria as alianças-testemunhas do meu último gesto. Enlacei as rédeas do cavalo no mourão da cerca e nesse instante, novamente, a ave cortou a noite à minha frente,  acocorando-se ágil no toco do outro lado da estrada,  de onde, incomodada e insistente, emitia seu estridente grito endereçado a mim:  UHUHUHUH... EU VI... EU SEI... EU VI.... Atinei em espantá-la, inutilmente. Voava e voltava. Abria e fechava suas longas asas. Enfrentava-me indo e vindo. UHUHUHUHUH... Então, com um  pavor desnorteado, empurrado cada vez mais pela ave à procura de um  gesto que fosse,  abri a mochila agregada à sela,  e cometi, sem perdão,  um ato silencioso e reservado, que  ainda não havia  revelado a ninguém,  por conta do meu arrependimento de amor. Na fuga, em mim, vivi algo que me fez ver a própria  existência pela voz tonitruante de Alzira, ao rolar na escadaria. “Naufragaste, marido insano. Duvidastes da minha lealdade. Eu, que desfaleço a seus pés, hei de seguir o que, em um sim mútuo, juramos. E tu, que te agarraste à honra, à desconfiança, ao terrível ciúme doentio, haverá de seguir só, sozinho pela noite,  até o exato instante em que te medites sobre sua dívida à vida.”   

Sim, essas palavras que ouvi de Alzira  me conduziram à decisão, e então, com as minhas  mãos ágeis e um golpe certeiro,  lancei  a  corda  no galho apropriado ao  meu peso e altura. O gesto atiçara a ave, levando-a a retomar a ordem viva, vibrante  e  acusatória: EU VI...EU SEI... EU VI.... As mesmas mãos que, brutalmente, arremessaram  Alzira escada abaixo, ali, agora,  ainda no escuro daquela noite, transformaram-se em  mãos de artífice, tornando esse que vos fala,  em  um  exímio carrasco dele mesmo,  ao executar  um nó perfeito, um laço rígido que me sustentaria pelo pescoço, dolorido e  quieto,  diante do acentuados pios da Coruja,  até o alvorecer, quando,  inevitavelmente,  eu  seria encontrado morto; e as alianças-testemunhas descobertas em seu brilho no leito da estrada acidentada...  

 

 

CONTOS DE TERROR 
O PIO DA CORUJA 
Texto:  CELSO LOPES