Beatnik - Inconformação com a moral, religião e política ocidental, apreciação pelo outsider, marginalidade, antimilitarismo, ou seja, desapreço por tudo que nos oprime e controla. Esta era a bandeira dos autores da geração beatnik.
“A TRAVESSIA ”
“ O próprio desejo é viagem, expatriação, saída do
meu lugar.”
Francis Affergarn - Exotisme et altérité - Paris/PUF/1987
Aquela madrugada fluía solta e movimentada no vilarejo. Logo, o clarão anunciaria mais uma daquelas manhãs quentes de verão e o final de mais uma noite agitada. Entretanto para Nirollez, o músico, o significado da palavra ‘fim’ era um reencontro; uma forma de se penitenciar; ‘fim’ era o seu próprio desafio para se livrar de um sentimento de culpa que carregara durante toda a sua existência, ao se apegar, desmedidamente, no bem que mais apreciava na vida: a música... a música clássica!... Por isso, àquela hora, assim como quem nos oferecesse um concerto ainda sob a luz do luar, Nirollez surgira com o som poderoso do seu recente instrumento, o Sax MC VI, a jóia rara dos aficcionados, e passara a comandar uma sinfonia sonora naquela pequena rua do arraial de pescadores. E o que víamos e ouvíamos era algo inusitado e envolvente: pouco a pouco, conforme avançava, com passos lentos e firmes, Nirollez, o músico, conseguira a proeza de instalar o silêncio onde jamais imaginávamos, pois, ali, diante de todos nós, fizera emergir e reverberar uma sonoridade tonitruante, estupenda, arrancada do seu mágico Saxofone. E lá estava Nirollez. A cada passo, em sua execução, nada parecia cercear as intenções do intérprete em seu contínuo movimento de seguir em frente. Nada, ali, a impedi-lo no provocante uso que fazia daquela brilhante improvisação ao fazer a travessia daquela rua com seu poderoso Sax. Nirollez, o músico, entregava-nos tudo isso de mão beijada, num contínuo processo de criação e recriação. Os acordes instigantes, catárticos, mais pareciam gritar para que ouvíssemos a sua história. Era isso que Nirollez parecia nos dizer, ali, desfilando à nossa frente. E se o espírito do jazz está em pensá-lo como uma linguagem, como algo que nos lava a alma, e nos leva à alma a sua origem, o que se ouvia no improviso do jazzista era a sua maneira de nos conduzir, de se expiar em culpas à frente daquele público... Era visto que tudo ali era urgente Por isso, inevitável como a noite que surgia atropelando, Nirollez seguia impregnando-nos o seu ímpeto diante do belo e do prazer, de um jeito único, como se ouvíssemos ali, a voz dissonante de “Lester Young”, a nos dizer e a nos intimar: “ Escutem, eis aqui a minha história!... Ouçam!..Ouçam, todos!...”. O sax de Nirolllez ‘cantava’ com as raízes do próprio jazz, com suas origens e influências, como se ali fosse ele, Nirollez, o talentoso e criativo “Charles Parker” arrastando-nos de uma forma inovadora, o que tornava tudo aquilo para nós, uma espécie de ‘Nirollez/Parker’, dois ícones da beat generation!...Nem mesmo um olhar mais atento poderia indicar que à nossa frente estava o maestro Nirollez, um homem acostumado ao reconhecimento do público em seu país, e não somente nos teatros locais como também nas principais casas da Europa; Algumas evidências de seu desconforto com a música clássica surgiram em sua última récita, quando mal acabara de se curvar, agradecendo aos aplausos pela regência da sua ópera, “1984”, baseada no texto do escritor George Orwell, e já deixava, apressadamente, sem dizer mais nada, o pomposo teatro municipal portenho. Impossível não imaginar a situação que criara ao seu empresário, à esposa, aos dois filhos, aos amigos, e principalmente, ao seu público seleto e fiel que, inevitavelmente, sentiria, para sempre, a sua ausência. Instantes depois dessa ‘performance’ colossal na capital Argentina, Nirollez já ocupava um lugar à bordo de um ônibus da Pluma, em direção à cidade do Rio de Janeiro, onde, ao chegar, seguiria de táxi até o aeroporto Santos Dumont, para embarcar num voo que o levaria até Ilhéus, na Bahia. Da terra do escritor Jorge Amado, seguiria para o vilarejo que lhe reservava o sol do pleno verão à beira-mar. Por certo, no voo passara em retrospectiva a sua vida e a sua história de um dos mais prestigiados maestros de todos os tempos. É certo que se mantivera avesso aos grandes festivais como Woodstock, Altamont, Monterey e outros, em que surgiram novos expoentes da musica mundial, como Jimi Hendrix e Janis Joplin; confessava-nos, naquela travessia, que ouvira, sim, o refrão que todos sabiam existir em Lucy in the sky with diamonds... e, claro, acompanhara todas as intenções de alegoria ao LSD. E então, perguntaria a si mesmo: por que acreditar nessa história jovem, nesse poder jovem?... Mas fora diante dos movimentos políticos dos anos 60, em especial, o “maio de 68” francês, que Nirollez balançara. Sim, entendia os protestos estudantis como reivindicações por um ensino melhor, entretanto, vira o desencadear de uma greve geral de dez milhões de pessoas... Não, não era apenas o ‘é proibido proibir’, ou as palavras de ordens ‘queremos o impossível’... Não, 68 apresentara-se como uma brecha na história, e fora capaz de colocar em xeque a sociedade que se pensara até então... Nirollez entendera, sim, que o mundo reagira com uma grande recusa, em que ‘os de cima não conseguiam mais mandar, e os que estavam embaixo não queriam de forma alguma obedecer’.. Sim, era o ano de se recusar a tudo.Um grito lancinante ecoava no planeta. Mas Nirollez também vira chegar o “The dream is over”, o sonho daqueles jovens chegara ao fim, carregando as utopias todas e os seus comandantes... Vivenciando essa travessia, Nirollez reiterava para si, o desafio de romper de vez com tudo o que aprendera e ganhara como intérprete da música clássica mundial; a ordem agora era livrar-se dos limites, das notas, dos horários e das agendas... Nirollez elegera, portanto, o jazz, para lhe carregar a vida; descobrira que o sax impunha-se à improvisação necessária, porém nunca estivera presente em sua formação sisuda e acadêmica. Nirolezz, naquela madrugada, rasgava todas as suas partituras e harmonias... Agora, ali, no pequeno vilarejo, dedicava a si mesmo, um excesso de cuidados para não revelar referências ao seu passado. Por vezes, à beira-mar, no sol escaldante, via-se com a areia nas mãos, escorrendo como uma interminável ampulheta que lhe mostrava o tempo e a sua fluidez. Foram dias ali, até o momento em que uma coragem maior lhe sobrepôs de uma forma jamais vista ou sentida... Como algo inevitável, a música pulsou-lhe novamente nas veias, saltou-lhe aos poros e explodiu em sua mente. Agora, ali, pela primeira vez, olhara sem culpa o seu sax MC VI, que jamais tocara, e encarou-o com algo necessário à sua própria razão de viver; assim, o passo seguinte fora decisivo: com as mãos protegendo a chama da brisa marinha, Nirollez faria surgir as labaredas que pouco a pouco engoliriam todos os registros e documentos do grande músico que fora. À beira da praia faria morrer, burocraticamente, o maestro Nirollez, e emergir o seu novo ser, o jazzista, um novo habitante daquela terra encantada. Por iss, hoje, naquela travessia, Nirollez colocava em prática a sua transgressão tardia, entretanto, sincera. Purificava-se da sua culpa, buscava, ali, uma reparação existencial, pois mantivera-se à margem, fora impassível, fugira à luta quando escolhera todas as benesses do establishement... Pois agora, que lhe deixassem seguir, pagar o seu preço, sofrer o que lhe era imponderável... Os improvisos do músico Nirollez, com seu sax MC VI já ganhavam distância na travessia da rua; deixavam para traz o bar Chaparrals e as portas do Manda-brasa, de onde se desvendava a estradinha que seguia em direção à praia... Os improvisos do músico Nirollez com o seu sax MC VI passaram a comandar a sinfonia, não apenas de uma rua, mas de um caminho que nos levava, a todos, em direção ao mar... Nirollez seguia como quem cumprisse uma simples desarmonia vivida naquela madrugada ... Os seus pés, pouco a pouco, já tocavam a areia, atingindo lentamente o quebra-mar, ainda leve, calmo, raso, movediço... A sua música rivalizava-se com o bramir das ondas, dimensionava à altura, como numa audição em seu ápice melódico, capaz de expandir o espaço, a superfície e a profundidade, levando o jazzista a seguir improvisando acordes e timbres em direção aos arrecifes, onde o clarão metálico do seu sax, sob uma intensa luz do luar, ia indo, seguindo, avançando o horizonte até onde a água interpunha-se à vista da gente, até onde um sexto sentido nos indicava que aquela noite engolira para sempre o maestro Nirollez... Até a gente sentir na própria pele, que o mar, o maestro e o sax MC VI, em verdade, uniram-se como uma só coisa, num só corpo, em uníssono!...
Nota: “A TRAVESSIA” é uma narrativa ficcional. “NIROLLEZ” é um anagrama imperfeito de ‘Lorin Maazel’ – maestro norte-americano, estrela de primeira grandeza na música clássica, a quem é dedicado este conto