terça-feira, 17 de dezembro de 2024

 

                   OS BÊBADOS NÃO DESCEM AO MEIO-FIO IMPUNES.

 


(Prêmio VIP de Literatura 2024 /  Classificação: 1º. Lugar


- CAÍ!... 

A palavra vinha-lhe seca e sonora como uma queda abrupta. Um ora pro nobis repetido em penitências, a ladainha. O andarilho bêbado, em andrajos, corpo arqueado, cambaleava junto ao meio-fio como quem fizesse a revelação pública de um pavor íntimo, guardado a sete chaves ou escondido por timidez – O  homem segurou o tombo com um inevitável abraço surdo e encaixado no ereto poste da rua;  seus olhos esbugalharam-se silenciosos e  amarrotados como  um mangá humano, desenhados à revelia e na diagonal, com obscuras perspectivas e pontos-de-fuga. Uma realidade virtual e desconhecida, o labirinto de um porvir estampado naquele rosto ébrio.

- CAÍ!... 

Estanquei-me sem pressa e  sem qualquer razão mais aparente, o meu costume diário, ali na lanchonete do Ananias. Um boteco de esquina, tal qual esses a quem chamamos de pé-pra-fora. Posicionei-me junto à porta para algo inevitável, entretanto, apenas pressentido, pois bem ali, à minha frente:o   bêbado repetia as sílabas insistentes, delirando nomes e datas e feitos e fatos que, aos poucos e  a rigor,  situavam-no num setor de serviços de uma  empresa ou uma indústria qualquer...Um  operador de sistemas?...  Quem sabe um atendente?... Um Chefe de Setor?... Um Coordenador de Área? ... O próprio Diretor?...   O que se via, ali, no entanto, era o improvável desafio do bêbado entre o seu  esvair do mundo corporativo e o  avançar  junto ao grupo esquálido,  que supostamente, o  esperava com satisfação na outra margem da rua.   Quem seriam, para ele, aqueles andarilhos urbanos, mendigos, ajuntados ali,  e sem-moradia, em meio à calçada crua  sob a marquise protetora?...  As mãos do bêbado, automáticas que foram, revistaram, inutilmente, os bolsos fundos à procura de algo. Afundaram-se, ambas as mãos, em busca do avesso,do avesso, do avesso.  Seria um celular?...  Uma agenda eletrônica?... Um caderno de anotações?... Um laptop? O Iphone?... Como eu, ali presente, quem o  visse, naquela estreita distância, logo  entenderia:  era urgente e/ou urgentíssimo comunicar o atraso sobre a importante reunião da qual  deveria participar...Quem sabe, talvez, coordenar?”...  Os sons embolados – numa sintaxe   irreconhecível, formavam um emaranhado de vozes e nomes e datas  e tarefas e projetos,  como fossem  uma linha cruzada em línguas diversas: as palavras, todas,  soavam ali, irrealizáveis, soltas e desconexas, todas elas carentes de uma  história que haveria, por certo, de existir. Diante do pânico e temor de um passo em falso, os gestos e os olhos do bêbado fixaram-se, estáticos,  nas minhas retinas; elas, sim,  turvas e impacientes....

- CAÍ!... 

Agarrado ao poste, o andarilho bêbado experimentava o horror pelas alturas, vociferando um ódio mortal  no desnível assustador  entre a calçada e a  rua. Estava escrito, ali, o prenúncio de uma queda no pequeno vão livre de poucos centímetros, que lhe ensandecia o corpo e  a mente: o drama de um pacote solto por um guindaste, a despencar  sob os olhos  desesperados dos tripulantes e estivadores  na imensidão de um  cais do porto.   Como um arbusto que se alastra, criando contornos próprios e de defesa, o bêbado estendeu seus braços e os pés em forma de uma concha num sinuoso movimento de cai-não-cai: agulha e linha de uma fábula contemporânea, o bêbado e o poste.   O poste e o bêbado.   O corpo torto costurando o invisível tecido urbano, entrecortado pelo trânsito intenso e  feroz de um dia comum.  A voz do bêbado vinha  do fundo, arrancando o grito com recheio de pavor, a voz  penalizada, temerosa, como a suplicar uma volta atrás, ainda que sofredora ou acolhedora... Retornar, quem sabe, à empresa?... Voltar, talvez, à família?...  Reassumir o antigo Setor Contábil?... Criar novas metas para as equipes de Vendas?... Preparar o novo programa de gestão para os clientes?... Em seu silêncio regrado, o bêbado não disse: Recuperar a mim mesmo!... Talvez, tenha jurado com os dedos em cruz, ou apenas fora o que eu mesmo entendi, sóbrio, lúcido e  necessitado desse gesto honroso para aquele  homem  à minha frente.

- CAÍ!... 

O andarilho bêbado enfatizava o som intransitivo junto ao meio-fio. Corpo e voz sintonizados vivos naquela epopeia urbana. Um rosário de lamentações, o delírio. O vocabulário-bêbado reduzido ao único e inevitável verbo. Interjeições e complementos mantinham-se ausentes como num suicídio premeditado, sem cartas de explicação guardadas em gavetas,  ou escondidas em caixas camufladas no interior  de  um armário.  O bêbado adiava, a olhos vistos, o seu inevitável tombo. Nenhuma interjeição pra resistir-lhe o peso.  Um passo-a-passo para  o abandono do emprego e a  demissão  por justa causa.  Seria o Jorge, aquele  do turno da noite?...  Não, o Antônio, o da logística, do setor de trâmites com o  Brasil Central?... Ele?...  Ele mesmo?...Será?!....

- CAÍ!... 

Os bêbados não descem ao meio-fio impunes. O medo do estatelamento e o baque fatal são o preço do pedágio.  A palavra exata e coesa traduzia-lhe a derrocada vertiginosa do topo de uma pirâmide.  Gole após gole, o peso do corpo fragilizando-o diante das salas frias e burocráticas. O entra-e-sai durando a eternidade. O bêbado persistia naquela frase completa, que por si só se desfazia num arriscado voo no universo plano. Corpo e alma simplificados naquela oração enfática, reiterada ilegível e insistentemente. Os bêbados não se arrastam às pedras sem a sonoridade. Decibéis inaudíveis, o grito agudo - a cara no chão!  No leito asfáltico, os veículos acentuavam  o movimento da cena. O pânico do meio-fio surgia-lhe como o ultimo filete de areia na ampulheta.  O andarilho bêbado, ali, à minha frente, ao rés do chão,  capaz de segredar-me  data, hora e o lugar que lhe valeram a queda num  abismo: as  odisseias intermináveis pelos corredores e salas, ouvindo, insistentemente, sermões,refrões e lenga-lengas,  que lhe soavam como uma punhalada pelas costas:  Entre, Senhor Fulano, estamos esperando, entre!.. Venha,  Sicrano... por aqui, me faça o favor!...

 - CAÍ!... 

A derradeira palavra, a mesmíssima, soou-me, agora,  abafada, como uma queda à distância. O bêbado ergueu-se com o esforço possível, graças à força do seu pé de apoio. E,resistente,  com quem se lançasse às últimas energias diárias, arranhou o poste como uma parede nua, em que se abrem frinchas profundas.  Soergueu-se, olhando-me incisivamente. Olhando a mim e o nada.  A rua inteira e a ausência. Olhando a rua e ninguém. A calçada e os vultos. As pessoas e o vazio. Os veículos e o espaço inútil.  Os passos em falso do bêbado, ambos, juntos, atiraram-no ao plano da rua, à frente, para além do meio fio, na medida exata sobre um  chão duro... O baque certeiro do ônibus encarregou-se do sucesso da empreitada.  Os bêbados não descem ao meio-fio impunes. Em meio às vozes e burburinhos, ouvia-se sucessivos apelos para o número do carro-resgate, dito em tons de  insistência e desespero pelos celulares  mais próximos. Ainda sob o som de sirenes cortantes, aproximei-me da cena com todo o desconforto possível. Réu e testemunha, abri espaços entre a aglomeração para um último olhar sobre o andarilho, que mantinha os olhos esbugalhados e estáticos e diretos sobre mim, como quem passasse às minhas retinas, agora,  um enunciado completo, escrito a mão, com todas  as letras,  sílabas, frases e o significado de toda a  sua  história. Sou ali, então, o seu prisioneiro...um cego, surdo e mudo, reverenciando uma tragédia anunciada,  sem me dar conta sequer de como me desviar desse  caminho inevitável...

 

 Texto:  Celso Lopes   elipse84@terra.com.br

DIONÍSIO, O GATO...

 

 

Bicho invocado, aquele. Cor de ferrugem com  cinza escuro e o olhar de quem diz  “- E aí, tá tudo pela ordem?”. “- Aqui, tudo dominado, Chefe, o território é nosso! – respondiam-lhe, juntos, os bichanos da rua, seus  comandados, onde Dionísio era Rei, o Chefe-mor. 

Esta foi a parte do Gato, entretanto, há de se fazer justiça: Seo Dioguinho, que já no nome trazia uma história que fervilhava na imaginação do povo,  carregava parentesco, ainda que distante, e de muitas e muitas  décadas atrás, com o famoso matador de aluguel e outras querelas, que surgira no interior paulista, e que fizera  história no mundo do crime  a serviço dos poderosos coronéis e barões do café.  No entanto, o Seo Dioguinho de hoje era café pequeno, mas bem que corria um pouco daquele mesmo sangue vermelho nas suas veias. Pois, quis o destino que Dionísio e Seo Dioguinho,ambos avessos à paz e ao “deixa a vida me levar”,  cruzassem o mesmo caminho. Um sob os olhos e a fúria do outro. Assim, lá ia  ele, Dionísio, ameaçando e pondo pra correr um  grupo de patos. Quac, Quac, Quac, patas-pra-que-te-quero, e logo, rapidinhos,desapareciam das garras do felino... E não duvide, Dionísio mostrava as garras até mesmo pros vira-latas desavisados que rondavam as proximidades da casa. De novo, o Dionísio, um olho torto e arisco em direção aos ratos e ratazanas desamparados  pela fome. Disseram que outro dia, pôs pra correr uma cascavel perdida no meio-fio da rua; Dionísio  chocalhou a serpente no ar com chocalho e tudo.  E era assim mesmo. A história não mente.  Bem disse, certa vez, Dario (550-478 a.C.) o antigo rei da Pérsia, vencedor de  Caldeus e  Babilônios, à custa de   ampliar seu reino até a Jônia, Trácia, Síria e Cartago, criando, ali, um dos maiores impérios da Antiguidade. “ ... de plano diretor e  gestão de guerra eu entendo, e afirmo sem erro,  que  os Gatos serão os sucessores da raça humana, sujeita à extinção, junto com o seu próprio planeta. É  viver pra ver.”Credo Cruz...esse Dario! – Vade-retro. Pois o que se deu é que muitos séculos depois, chegou a hora e a vez de Seo Dioguinho, o Chefe-mor da casa humana,  onde habitava  o Dionísio, criar um entrevero  à custa de um tropeço acidental  e um chute carregado de ódio na corcova pão-de-açúcar do gato  Dionísio. A partir daí, como se diz, o bicho pegou. Fosse dado a quem viu o confronto entre ambos, uma leitura mais bem aguçada, veria que o certo e o errado, o justo e o injusto, o perdão e a vingança, o amor e o ódio se alastraram  como fossem  fios elétricos desencapados, ali, à flor da pele de um  e à flor dos pelos do outro. Seo Dioguinho, na prevenção, passou a usar as botas sete-léguas, bico fino e solado que denunciava a sua chegada pra exercer a pulso o seu  comando.  Dionísio, em revide, a seu jeito, entendeu, como alguns animais assim dotados, em fazer a escolha mais acertada, obedecendo a  ascendência de conexões e sinapses da sua  inteligência felina.  Assim, seus olhos dionisíacos paralisavam, fulminando o oponente e iminente agressor, por  instantes a fio,  que duravam como a eternidade. Ali, com o olhar cruel disponível, Dionísio balançava   os pelos, e se  punha levantando a corcova montanhosa , o que lhe dava  uma posição invejável e  altíssima, deixando ver seu corpo  troncudo e arredio, revelando na mandíbula avermelhada,  todos os seus  dentes afiados, prontos pra fatiar esse ‘tal’,  como uma navalha cortando, sem perdão,  todas as veias da carne...Muito se falava do homem de casaco de couro por ali. Pra uns, seguira a sina da família, era mesmo capanga de mandantes naquela região aurífera. Pra outros, ganhara notoriedade por lembrar o figurino de “Teodoro do casaco de couro”, um tronco de homem que viera do norte, um capataz de fazenda nas Alagoas, contratado pra ser o Chefe e fazer o  serviço de “limpeza” de bandidos na região,a quem lhe pagasse mais... Pelo sim ou pelo não, dava no mesmo. No entanto, ali, no disfarce, no meio da comunidade, naquela   vizinhança,  era mesmo Seo Dioguinho – mas não faltava quem  lhe  enxergasse sob aquele casaco de couro, a crueldade e a maldade na alma, tal qual seu ascendente, o famoso bandido Dioguinho.O gato Dionísio, por certo, via tudo isso com seus dois olhos fulminantes. E quisera a sorte que, naquele dia fatídico, houvesse, ainda,  um maior desentendimento com o bichano que, quieto e na paz merecida, deglutia uma cabeça de peixe encontrada no lixo...

Pois como quem não quer nada e quer tudo, Seo Dioguinho, com a gana de  mostrar quem era o Rei da Selva por ali, quem mandava e fazia as leis  naquele território demarcado,  fingiu tirar  o casaco de couro  e  tascou-lhe um chute bem dado que o entortou um metro e meio no  ar... Entretanto, sem  tirar nem por, Dionísio rodopiou o  metro e meio acima com   as sete-vidas de que dispunha...e caiu ileso, inteiro, feito homem,  de pé, só ferido bem fundo no seu  orgulho. Fosse dado a quem viu aquela cena,a sabedoria de contá-la,  diria ter visto a alma humana pecaminosa em plena ebulição, e  em sua pior condição, tentando, a todo custo, no embate, como um truculento  galo-de-rinha indiano,  liquidar o oponente numa arena  ladeada pelas  brasas-vivas do inferno.  Espere pelo pior, Seo Dioguinho, mas antes–  diria essa testemunha ocular,  antes,   tome tento na história, que já lhe foi dita. Se a raça humana der brecha... já sabe, não é?... E pelo que me parece estão se descuidando... E Dionísio, então, mostrou, ainda mais, as suas  garras afiadas,  como um descendente de Dionísio, aquele regado a festas  campestres e palacianas... Aquele dotado de domínio sobre cultos, teatros, fecundidade e amante da natureza... Sim, ele, o Deus Dionísio, eleito por unanimidade como Baco, o Deus do Vinho. Ele, um Deus Grego, imortal, que não perderia  essa parada para um descendentezinho dos pobres mortais, alcunhado de Seo Dioguinho qualquer...Espere pelo pior, Seo Dioguinho – pareceu dizer, o imortal Dionísio...e disse.Pois não lhe contaram, Seo Dioguinho, o  que diz  o escritor americano Carl Van Vechten,  sobre nossa espécie, os Gatos?...pois, então,  escute só: “ Um gato nunca é comum, portanto, não é mundano, é um gato; e gatos têm personalidade forte”... E mais, Seo Dioguinho... agora, calo-te, de vez, a boca. Diz aí, petulante, quem é nobre ou quem é a pobreza em pessoa?...Deus me livre disso, mas ouça o que diz Mark Twain, escritor e humorista:“Se o homem pudesse cruzar com os gatos, isso melhoraria o homem e deterioraria o gato”. Fosse o que fosse: estava, ali, criado, um cenário de terra arrasada!...Seo Dioguinho não esperava portanto. Mas, como um ser superior em “achismo”, livrou-se do confronto e  seguiu sua vida  praguejando o seu rival  em gestos, palavras e obras...um desses gestos foi postar-se à espreita, com a  arma em punho, preparada para o disparo. Dionísio, espertamente, captou a mensagem e escafedeu-se em esconderijos. Outro desses gestos de Seo Dioguinho, foi o de  atirar, raivosamente,e cuspindo palavrões, o seu elegante e refinado casaco de couro marrom, reluzente,  brilhoso, sobre os braços de uma  cadeira inocente, fazendo aflorar  no vestuário,  a  etiqueta onde se lia “Cuero de Cabra- Made in Argentina; gesto esse que,  na calada da noite, em silêncio absoluto, colocou  em   prova,  a capacidade felina de Dionísio,  ao armazenar e fazer implodir certas  ações humanas desrespeitosas e desaforadas...Aquela manhã foi a testemunha ocular da história. As tiras arranhadas e arrancadas nas costas do  casaco de couro,  desenhavam  no plano  vertical,  harmoniosamente,  deixando ver entre elas,  sob um vento leve,  a luz filtrada  do sol da janela e da porta da rua... Seo Dioguinho, ainda com os olhos feridos pela luz solar, estendeu no ar e no alto,  o seu distinto casaco de couro em tiras,  como fosse  um toureiro na arena à espera do touro desafeto... E sob um  silêncio insuportável  e carregado de ódio, vociferou, guturalmente, aquele nome que lhe surgia arrancado das suas entranhas:   

- DIONÍSIO!... DIONÍSIO!...”

O grito dioguinhoso, explosivo e repetitivo, tingindo o ar  de  tons manchados de sangue desde a sua primeira geração, ecoou histérico e apunhalador... O silêncio extraordinário de Dionísio, arrastara a  sua proeza felina, bem nas fuças da raça humana, silenciosamente retumbante. Dele, Dionísio, escassearam-se as notícias por um longo espaço de tempo. Bicho invocado aquele. Cor de fumo-navarino-com-chama, uma coloração descoberta durante as  guerras sangrentas d’outrora*.   Um  olhar de quem continuaria sempre a dizer:“- E aí, tá tudo pela ordem?”. “- Bem-vindo de volta, Chefe... O território continua nosso! – responderiam, juntos, todos os  seus  comandados, em reverência cerimoniosa ao  retorno do antigo Rei,  o Chefe-mor da rua.

 

 

(*)Referência a  “Navarino” – Batalha famosa na guerra da independência Grega. (cor de tecido, fumo e fogo). In:Almas Mortas- pg. 410 – Nicolai Gógol.

 

 

 Texto: Celso Lopes   elipse84@terra.com.br     11 98487 1193