Bicho invocado, aquele. Cor de ferrugem com cinza escuro e o olhar de quem diz “- E aí, tá tudo pela ordem?”. “- Aqui, tudo dominado, Chefe, o território é nosso! – respondiam-lhe, juntos, os bichanos da rua, seus comandados, onde Dionísio era Rei, o Chefe-mor.
Esta foi a parte do Gato, entretanto, há de se fazer justiça: Seo Dioguinho, que já no nome trazia uma história que fervilhava na imaginação do povo, carregava parentesco, ainda que distante, e de muitas e muitas décadas atrás, com o famoso matador de aluguel e outras querelas, que surgira no interior paulista, e que fizera história no mundo do crime a serviço dos poderosos coronéis e barões do café. No entanto, o Seo Dioguinho de hoje era café pequeno, mas bem que corria um pouco daquele mesmo sangue vermelho nas suas veias. Pois, quis o destino que Dionísio e Seo Dioguinho,ambos avessos à paz e ao “deixa a vida me levar”, cruzassem o mesmo caminho. Um sob os olhos e a fúria do outro. Assim, lá ia ele, Dionísio, ameaçando e pondo pra correr um grupo de patos. Quac, Quac, Quac, patas-pra-que-te-quero, e logo, rapidinhos,desapareciam das garras do felino... E não duvide, Dionísio mostrava as garras até mesmo pros vira-latas desavisados que rondavam as proximidades da casa. De novo, o Dionísio, um olho torto e arisco em direção aos ratos e ratazanas desamparados pela fome. Disseram que outro dia, pôs pra correr uma cascavel perdida no meio-fio da rua; Dionísio chocalhou a serpente no ar com chocalho e tudo. E era assim mesmo. A história não mente. Bem disse, certa vez, Dario (550-478 a.C.) o antigo rei da Pérsia, vencedor de Caldeus e Babilônios, à custa de ampliar seu reino até a Jônia, Trácia, Síria e Cartago, criando, ali, um dos maiores impérios da Antiguidade. “ ... de plano diretor e gestão de guerra eu entendo, e afirmo sem erro, que os Gatos serão os sucessores da raça humana, sujeita à extinção, junto com o seu próprio planeta. É viver pra ver.”Credo Cruz...esse Dario! – Vade-retro. Pois o que se deu é que muitos séculos depois, chegou a hora e a vez de Seo Dioguinho, o Chefe-mor da casa humana, onde habitava o Dionísio, criar um entrevero à custa de um tropeço acidental e um chute carregado de ódio na corcova pão-de-açúcar do gato Dionísio. A partir daí, como se diz, o bicho pegou. Fosse dado a quem viu o confronto entre ambos, uma leitura mais bem aguçada, veria que o certo e o errado, o justo e o injusto, o perdão e a vingança, o amor e o ódio se alastraram como fossem fios elétricos desencapados, ali, à flor da pele de um e à flor dos pelos do outro. Seo Dioguinho, na prevenção, passou a usar as botas sete-léguas, bico fino e solado que denunciava a sua chegada pra exercer a pulso o seu comando. Dionísio, em revide, a seu jeito, entendeu, como alguns animais assim dotados, em fazer a escolha mais acertada, obedecendo a ascendência de conexões e sinapses da sua inteligência felina. Assim, seus olhos dionisíacos paralisavam, fulminando o oponente e iminente agressor, por instantes a fio, que duravam como a eternidade. Ali, com o olhar cruel disponível, Dionísio balançava os pelos, e se punha levantando a corcova montanhosa , o que lhe dava uma posição invejável e altíssima, deixando ver seu corpo troncudo e arredio, revelando na mandíbula avermelhada, todos os seus dentes afiados, prontos pra fatiar esse ‘tal’, como uma navalha cortando, sem perdão, todas as veias da carne...Muito se falava do homem de casaco de couro por ali. Pra uns, seguira a sina da família, era mesmo capanga de mandantes naquela região aurífera. Pra outros, ganhara notoriedade por lembrar o figurino de “Teodoro do casaco de couro”, um tronco de homem que viera do norte, um capataz de fazenda nas Alagoas, contratado pra ser o Chefe e fazer o serviço de “limpeza” de bandidos na região,a quem lhe pagasse mais... Pelo sim ou pelo não, dava no mesmo. No entanto, ali, no disfarce, no meio da comunidade, naquela vizinhança, era mesmo Seo Dioguinho – mas não faltava quem lhe enxergasse sob aquele casaco de couro, a crueldade e a maldade na alma, tal qual seu ascendente, o famoso bandido Dioguinho.O gato Dionísio, por certo, via tudo isso com seus dois olhos fulminantes. E quisera a sorte que, naquele dia fatídico, houvesse, ainda, um maior desentendimento com o bichano que, quieto e na paz merecida, deglutia uma cabeça de peixe encontrada no lixo...
Pois como quem não quer nada e quer
tudo, Seo Dioguinho, com a gana de mostrar quem era o Rei da Selva por ali, quem mandava e fazia as leis naquele território demarcado, fingiu tirar
o casaco de couro e tascou-lhe um chute bem dado que o entortou
um metro e meio no ar... Entretanto, sem tirar nem por, Dionísio rodopiou o metro e meio acima com as sete-vidas de que dispunha...e caiu
ileso, inteiro, feito homem, de pé, só ferido bem fundo no seu orgulho. Fosse dado a quem viu aquela cena,a
sabedoria de contá-la, diria ter visto a
alma humana pecaminosa em plena ebulição, e
em sua pior condição, tentando, a todo custo, no embate, como um
truculento galo-de-rinha indiano, liquidar o oponente numa arena ladeada pelas
brasas-vivas do inferno. Espere
pelo pior, Seo Dioguinho, mas antes–
diria essa testemunha ocular, antes, tome tento na história, que já lhe foi dita.
Se a raça humana der brecha... já sabe, não é?... E pelo que me parece estão se
descuidando... E Dionísio, então, mostrou, ainda mais, as suas garras afiadas, como um descendente de Dionísio, aquele regado
a festas campestres e palacianas... Aquele
dotado de domínio sobre cultos, teatros, fecundidade e amante da natureza... Sim, ele, o Deus Dionísio, eleito por unanimidade como Baco, o Deus
do Vinho. Ele, um Deus Grego, imortal, que não perderia essa parada para um descendentezinho dos pobres mortais, alcunhado de Seo Dioguinho
qualquer...Espere pelo pior, Seo Dioguinho – pareceu dizer, o
imortal Dionísio...e disse.Pois não lhe contaram, Seo Dioguinho,
o que diz o escritor americano Carl Van Vechten, sobre nossa espécie, os Gatos?...pois, então, escute só: “
Um gato nunca é comum, portanto, não é mundano, é um gato; e gatos têm
personalidade forte”... E mais, Seo Dioguinho... agora, calo-te,
de vez, a boca. Diz aí, petulante, quem é nobre ou quem é a pobreza em pessoa?...Deus
me livre disso, mas ouça o que diz Mark Twain, escritor e humorista:“Se o homem pudesse cruzar com os gatos,
isso melhoraria o homem e deterioraria o gato”. Fosse o que fosse: estava,
ali, criado, um cenário de terra arrasada!...Seo Dioguinho não esperava portanto.
Mas, como um ser superior em “achismo”, livrou-se do confronto e seguiu sua vida praguejando o seu rival em gestos, palavras e obras...um desses gestos
foi postar-se à espreita, com a arma em
punho, preparada para o disparo. Dionísio, espertamente, captou a mensagem e
escafedeu-se em esconderijos. Outro desses gestos de Seo Dioguinho, foi o de atirar, raivosamente,e cuspindo palavrões, o seu
elegante e refinado casaco de couro marrom, reluzente, brilhoso, sobre os braços de uma cadeira inocente, fazendo aflorar no vestuário,
a etiqueta onde se lia “Cuero de Cabra- Made in Argentina; gesto
esse que, na calada da noite, em
silêncio absoluto, colocou em prova, a capacidade felina de Dionísio, ao armazenar e fazer implodir certas ações humanas desrespeitosas e desaforadas...Aquela
manhã foi a testemunha ocular da história. As tiras arranhadas e arrancadas nas
costas do casaco de couro, desenhavam
no plano vertical, harmoniosamente, deixando ver entre elas, sob um vento leve, a luz filtrada do sol da janela e da porta da rua... Seo
Dioguinho, ainda com os olhos feridos pela luz solar, estendeu no ar e no alto,
o seu distinto casaco de couro em tiras,
como fosse um toureiro na arena à espera do touro
desafeto... E sob um silêncio insuportável e carregado de ódio, vociferou, guturalmente,
aquele nome que lhe surgia arrancado das suas entranhas:
“-
DIONÍSIO!... DIONÍSIO!...”
O grito dioguinhoso, explosivo e repetitivo, tingindo o ar de tons
manchados de sangue desde a sua primeira geração, ecoou histérico e apunhalador...
O silêncio extraordinário de Dionísio, arrastara a sua proeza felina, bem nas fuças da raça
humana, silenciosamente retumbante. Dele, Dionísio, escassearam-se as notícias
por um longo espaço de tempo. Bicho invocado aquele. Cor de fumo-navarino-com-chama, uma coloração descoberta durante as
guerras sangrentas d’outrora*. Um olhar
de quem continuaria sempre a dizer:“- E
aí, tá tudo pela ordem?”. “- Bem-vindo de volta, Chefe... O território continua
nosso! – responderiam, juntos, todos os seus
comandados, em reverência cerimoniosa ao retorno do antigo Rei, o Chefe-mor da rua.
(*)Referência
a “Navarino” – Batalha famosa na guerra
da independência Grega. (cor de tecido, fumo e fogo). In:Almas Mortas- pg. 410
– Nicolai Gógol.
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