quarta-feira, 30 de outubro de 2024

DIÁLOGOS À BEIRA DO "COMA" - Crônica de Celso Lopes

 

Diálogos à beira do “coma”.

 

 

No filme, Fale com ela, (Hable com ella), do diretor Pedro Almodóvar, os personagens masculinos (enfermeiro e jornalista) e os femininos (bailarina e toureira), estabelecem uma relação intensa num hospital, onde ambas se encontram em ‘coma’.  Marco, o jornalista, acredita que elas estão mortas. Benigno, o enfermeiro, que cuida da bailarina (Lydia) aposta num “milagre” e aconselha Marco: “Fale com ela”... “Fale com ela”...e é o que ele fará, de certa forma, dialogando com o longo silêncio de Leonor (a toureira).

Esse, digamos, monólogo, que no filme ganha  contornos de  diálogos, pode, apropriadamente, tornar-se uma “ferramenta essencial”, também  nesses tempos de Pandemia.  Imagine-se como um paciente terminal. Você está internado, próximo ao fim, mas você ainda escuta. De repente, ao seu lado alguém diz:“ - Farei o possível pela sua vida!...”

Até aí, alguns pontos a considerar: primeiro, esse alguém, o médico ou  profissional intensivista,  poderia estar fisicamente ali, desde que fosse possível,  e com todos os cuidados  e protocolos de um não-contágio, especialmente, frente a um vírus pandêmico, como é o caso do Coronavírus.   Segundo ponto, o médico ou esse Atendente especializado, estariam acompanhando você, via equipamentos de “Telemedicina” – com uso de som e  imagem de vídeo;  com a ressalva de que,  até pouco tempo, esse procedimento sofria certo viés contrário, uma vez que, culturalmente, exigíamos dos profissionais de saúde um estreito contato com o paciente. Digamos que, quanto mais melhor, acredito que era assim que todos nós pensávamos no período pré-pandemia.

Mas há uma outra consideração que salta com relevância neste enfoque. E vem de uma experiente profissional no trato com Cuidados Paliativos; um enfrentamento habilidoso, entre médico-paciente-familiares diante de doenças dolorosas e incuráveis. Tendo à frente, doentes que não podem receber visitas, a médica  Ana Cláudia Quintana, tema desse texto, adianta que a importância do profissional de saúde nessa hora,  alcança e estabelece uma conexão fundamental e de extrema confiança ao paciente. Para a doutora - no  momento da nossa maior fragilidade, em que estamos morrendo, e que todas as medidas de sobrevivência já foram tomadas, e não respondemos mais aos  estímulos, mas ouvimos de um  profissional ao nosso lado:  “ - Farei o melhor que puder pela sua vida. Você é muito corajoso!...”

Para a médica Ana Cláudia, esse gesto, cuidadoso, ganha proporções de reflexão sobre a nossa finitude, tornando, não-necessariamente,  a morte digna, mas sim, a vida digna. 

Por isso, acrescenta:“ Se  a última coisa que você ouvir na sua vida for isso, vai ter valido a pena.  Não é nem para salvar a sua vida, mas fazer o possível pela sua vida.”. 

Nessa mesma linha, o movimento InFINITO ( que contou com  participação da médica) acrescenta:A morte precisa ser integrada à nossa existência.(...) O Movimento inFINITO nasce da vontade de ser um espaço de conversas sinceras sobre o viver e o morrer.(...) Aliás, não existe A morte, mas muitas mortes. Morremos um pouco quando recebemos o diagnóstico de uma doença grave. Morremos um pouco quando quem a gente ama, morre. Morremos como adolescentes quando nos tornamos adultos. Morremos como casados se nos separamos. E morremos quando perdemos o emprego. Quantas outras mortes você consegue imaginar?”

A abordagem da médica Ana Cláudia, entre outros pontos importantes, avança, com propriedade, para esse momento restritivo, imposto, ainda mais,  pela  “Pandemia/Coronavírus”,  em particular, sobre o  impedimento presencial junto aos leitos,  de familiares  ou  mesmo, de profissionais de Saúde,  nesta fase delicada  de perda de entes queridos.

Em sua ótica, quando se vê o corpo, a gente sepulta, chora, faz missa, faz rezas, esse ritual cria e garante uma estrutura de segurança a quem fica; é como se fizéssemos uma  trilha sinalizada: “ Sem essa ritualização, a emoção da perda é arrebatadora” – conclui.

Médica com grande reconhecimento na sua área, e autora de livros como “A morteé um dia que vale a pena viver” e “Histórias lindas de morrer”, Ana Cláudia Quintana parece construir, e constrói,  cuidadosamente, aquele “milagre” da narrativa do filme de Almodóvar (Hable com ella),  apostando todas as suas fichas, sabiamente, humanamente e humanitariamente,  nesse aparente e improvável “diálogo” entre os médicos e pacientes, nesse momento delicado da vida humana para todos nós.  

 

 

Texto:Celso Lopes   elipse84@terra.com.br    11 98487 1193

Fonte: Mariana Alvim - @marianaalvimDa BBC News Brasil em São Paulo (12/abril/2020).

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52238892

https://infinito.etc.br/ (Guia de Rituais de Despedidas Virtuais)

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