terça-feira, 17 de dezembro de 2024

 

                   OS BÊBADOS NÃO DESCEM AO MEIO-FIO IMPUNES.

 


(Prêmio VIP de Literatura 2024 /  Classificação: 1º. Lugar


- CAÍ!... 

A palavra vinha-lhe seca e sonora como uma queda abrupta. Um ora pro nobis repetido em penitências, a ladainha. O andarilho bêbado, em andrajos, corpo arqueado, cambaleava junto ao meio-fio como quem fizesse a revelação pública de um pavor íntimo, guardado a sete chaves ou escondido por timidez – O  homem segurou o tombo com um inevitável abraço surdo e encaixado no ereto poste da rua;  seus olhos esbugalharam-se silenciosos e  amarrotados como  um mangá humano, desenhados à revelia e na diagonal, com obscuras perspectivas e pontos-de-fuga. Uma realidade virtual e desconhecida, o labirinto de um porvir estampado naquele rosto ébrio.

- CAÍ!... 

Estanquei-me sem pressa e  sem qualquer razão mais aparente, o meu costume diário, ali na lanchonete do Ananias. Um boteco de esquina, tal qual esses a quem chamamos de pé-pra-fora. Posicionei-me junto à porta para algo inevitável, entretanto, apenas pressentido, pois bem ali, à minha frente:o   bêbado repetia as sílabas insistentes, delirando nomes e datas e feitos e fatos que, aos poucos e  a rigor,  situavam-no num setor de serviços de uma  empresa ou uma indústria qualquer...Um  operador de sistemas?...  Quem sabe um atendente?... Um Chefe de Setor?... Um Coordenador de Área? ... O próprio Diretor?...   O que se via, ali, no entanto, era o improvável desafio do bêbado entre o seu  esvair do mundo corporativo e o  avançar  junto ao grupo esquálido,  que supostamente, o  esperava com satisfação na outra margem da rua.   Quem seriam, para ele, aqueles andarilhos urbanos, mendigos, ajuntados ali,  e sem-moradia, em meio à calçada crua  sob a marquise protetora?...  As mãos do bêbado, automáticas que foram, revistaram, inutilmente, os bolsos fundos à procura de algo. Afundaram-se, ambas as mãos, em busca do avesso,do avesso, do avesso.  Seria um celular?...  Uma agenda eletrônica?... Um caderno de anotações?... Um laptop? O Iphone?... Como eu, ali presente, quem o  visse, naquela estreita distância, logo  entenderia:  era urgente e/ou urgentíssimo comunicar o atraso sobre a importante reunião da qual  deveria participar...Quem sabe, talvez, coordenar?”...  Os sons embolados – numa sintaxe   irreconhecível, formavam um emaranhado de vozes e nomes e datas  e tarefas e projetos,  como fossem  uma linha cruzada em línguas diversas: as palavras, todas,  soavam ali, irrealizáveis, soltas e desconexas, todas elas carentes de uma  história que haveria, por certo, de existir. Diante do pânico e temor de um passo em falso, os gestos e os olhos do bêbado fixaram-se, estáticos,  nas minhas retinas; elas, sim,  turvas e impacientes....

- CAÍ!... 

Agarrado ao poste, o andarilho bêbado experimentava o horror pelas alturas, vociferando um ódio mortal  no desnível assustador  entre a calçada e a  rua. Estava escrito, ali, o prenúncio de uma queda no pequeno vão livre de poucos centímetros, que lhe ensandecia o corpo e  a mente: o drama de um pacote solto por um guindaste, a despencar  sob os olhos  desesperados dos tripulantes e estivadores  na imensidão de um  cais do porto.   Como um arbusto que se alastra, criando contornos próprios e de defesa, o bêbado estendeu seus braços e os pés em forma de uma concha num sinuoso movimento de cai-não-cai: agulha e linha de uma fábula contemporânea, o bêbado e o poste.   O poste e o bêbado.   O corpo torto costurando o invisível tecido urbano, entrecortado pelo trânsito intenso e  feroz de um dia comum.  A voz do bêbado vinha  do fundo, arrancando o grito com recheio de pavor, a voz  penalizada, temerosa, como a suplicar uma volta atrás, ainda que sofredora ou acolhedora... Retornar, quem sabe, à empresa?... Voltar, talvez, à família?...  Reassumir o antigo Setor Contábil?... Criar novas metas para as equipes de Vendas?... Preparar o novo programa de gestão para os clientes?... Em seu silêncio regrado, o bêbado não disse: Recuperar a mim mesmo!... Talvez, tenha jurado com os dedos em cruz, ou apenas fora o que eu mesmo entendi, sóbrio, lúcido e  necessitado desse gesto honroso para aquele  homem  à minha frente.

- CAÍ!... 

O andarilho bêbado enfatizava o som intransitivo junto ao meio-fio. Corpo e voz sintonizados vivos naquela epopeia urbana. Um rosário de lamentações, o delírio. O vocabulário-bêbado reduzido ao único e inevitável verbo. Interjeições e complementos mantinham-se ausentes como num suicídio premeditado, sem cartas de explicação guardadas em gavetas,  ou escondidas em caixas camufladas no interior  de  um armário.  O bêbado adiava, a olhos vistos, o seu inevitável tombo. Nenhuma interjeição pra resistir-lhe o peso.  Um passo-a-passo para  o abandono do emprego e a  demissão  por justa causa.  Seria o Jorge, aquele  do turno da noite?...  Não, o Antônio, o da logística, do setor de trâmites com o  Brasil Central?... Ele?...  Ele mesmo?...Será?!....

- CAÍ!... 

Os bêbados não descem ao meio-fio impunes. O medo do estatelamento e o baque fatal são o preço do pedágio.  A palavra exata e coesa traduzia-lhe a derrocada vertiginosa do topo de uma pirâmide.  Gole após gole, o peso do corpo fragilizando-o diante das salas frias e burocráticas. O entra-e-sai durando a eternidade. O bêbado persistia naquela frase completa, que por si só se desfazia num arriscado voo no universo plano. Corpo e alma simplificados naquela oração enfática, reiterada ilegível e insistentemente. Os bêbados não se arrastam às pedras sem a sonoridade. Decibéis inaudíveis, o grito agudo - a cara no chão!  No leito asfáltico, os veículos acentuavam  o movimento da cena. O pânico do meio-fio surgia-lhe como o ultimo filete de areia na ampulheta.  O andarilho bêbado, ali, à minha frente, ao rés do chão,  capaz de segredar-me  data, hora e o lugar que lhe valeram a queda num  abismo: as  odisseias intermináveis pelos corredores e salas, ouvindo, insistentemente, sermões,refrões e lenga-lengas,  que lhe soavam como uma punhalada pelas costas:  Entre, Senhor Fulano, estamos esperando, entre!.. Venha,  Sicrano... por aqui, me faça o favor!...

 - CAÍ!... 

A derradeira palavra, a mesmíssima, soou-me, agora,  abafada, como uma queda à distância. O bêbado ergueu-se com o esforço possível, graças à força do seu pé de apoio. E,resistente,  com quem se lançasse às últimas energias diárias, arranhou o poste como uma parede nua, em que se abrem frinchas profundas.  Soergueu-se, olhando-me incisivamente. Olhando a mim e o nada.  A rua inteira e a ausência. Olhando a rua e ninguém. A calçada e os vultos. As pessoas e o vazio. Os veículos e o espaço inútil.  Os passos em falso do bêbado, ambos, juntos, atiraram-no ao plano da rua, à frente, para além do meio fio, na medida exata sobre um  chão duro... O baque certeiro do ônibus encarregou-se do sucesso da empreitada.  Os bêbados não descem ao meio-fio impunes. Em meio às vozes e burburinhos, ouvia-se sucessivos apelos para o número do carro-resgate, dito em tons de  insistência e desespero pelos celulares  mais próximos. Ainda sob o som de sirenes cortantes, aproximei-me da cena com todo o desconforto possível. Réu e testemunha, abri espaços entre a aglomeração para um último olhar sobre o andarilho, que mantinha os olhos esbugalhados e estáticos e diretos sobre mim, como quem passasse às minhas retinas, agora,  um enunciado completo, escrito a mão, com todas  as letras,  sílabas, frases e o significado de toda a  sua  história. Sou ali, então, o seu prisioneiro...um cego, surdo e mudo, reverenciando uma tragédia anunciada,  sem me dar conta sequer de como me desviar desse  caminho inevitável...

 

 Texto:  Celso Lopes   elipse84@terra.com.br

DIONÍSIO, O GATO...

 

 

Bicho invocado, aquele. Cor de ferrugem com  cinza escuro e o olhar de quem diz  “- E aí, tá tudo pela ordem?”. “- Aqui, tudo dominado, Chefe, o território é nosso! – respondiam-lhe, juntos, os bichanos da rua, seus  comandados, onde Dionísio era Rei, o Chefe-mor. 

Esta foi a parte do Gato, entretanto, há de se fazer justiça: Seo Dioguinho, que já no nome trazia uma história que fervilhava na imaginação do povo,  carregava parentesco, ainda que distante, e de muitas e muitas  décadas atrás, com o famoso matador de aluguel e outras querelas, que surgira no interior paulista, e que fizera  história no mundo do crime  a serviço dos poderosos coronéis e barões do café.  No entanto, o Seo Dioguinho de hoje era café pequeno, mas bem que corria um pouco daquele mesmo sangue vermelho nas suas veias. Pois, quis o destino que Dionísio e Seo Dioguinho,ambos avessos à paz e ao “deixa a vida me levar”,  cruzassem o mesmo caminho. Um sob os olhos e a fúria do outro. Assim, lá ia  ele, Dionísio, ameaçando e pondo pra correr um  grupo de patos. Quac, Quac, Quac, patas-pra-que-te-quero, e logo, rapidinhos,desapareciam das garras do felino... E não duvide, Dionísio mostrava as garras até mesmo pros vira-latas desavisados que rondavam as proximidades da casa. De novo, o Dionísio, um olho torto e arisco em direção aos ratos e ratazanas desamparados  pela fome. Disseram que outro dia, pôs pra correr uma cascavel perdida no meio-fio da rua; Dionísio  chocalhou a serpente no ar com chocalho e tudo.  E era assim mesmo. A história não mente.  Bem disse, certa vez, Dario (550-478 a.C.) o antigo rei da Pérsia, vencedor de  Caldeus e  Babilônios, à custa de   ampliar seu reino até a Jônia, Trácia, Síria e Cartago, criando, ali, um dos maiores impérios da Antiguidade. “ ... de plano diretor e  gestão de guerra eu entendo, e afirmo sem erro,  que  os Gatos serão os sucessores da raça humana, sujeita à extinção, junto com o seu próprio planeta. É  viver pra ver.”Credo Cruz...esse Dario! – Vade-retro. Pois o que se deu é que muitos séculos depois, chegou a hora e a vez de Seo Dioguinho, o Chefe-mor da casa humana,  onde habitava  o Dionísio, criar um entrevero  à custa de um tropeço acidental  e um chute carregado de ódio na corcova pão-de-açúcar do gato  Dionísio. A partir daí, como se diz, o bicho pegou. Fosse dado a quem viu o confronto entre ambos, uma leitura mais bem aguçada, veria que o certo e o errado, o justo e o injusto, o perdão e a vingança, o amor e o ódio se alastraram  como fossem  fios elétricos desencapados, ali, à flor da pele de um  e à flor dos pelos do outro. Seo Dioguinho, na prevenção, passou a usar as botas sete-léguas, bico fino e solado que denunciava a sua chegada pra exercer a pulso o seu  comando.  Dionísio, em revide, a seu jeito, entendeu, como alguns animais assim dotados, em fazer a escolha mais acertada, obedecendo a  ascendência de conexões e sinapses da sua  inteligência felina.  Assim, seus olhos dionisíacos paralisavam, fulminando o oponente e iminente agressor, por  instantes a fio,  que duravam como a eternidade. Ali, com o olhar cruel disponível, Dionísio balançava   os pelos, e se  punha levantando a corcova montanhosa , o que lhe dava  uma posição invejável e  altíssima, deixando ver seu corpo  troncudo e arredio, revelando na mandíbula avermelhada,  todos os seus  dentes afiados, prontos pra fatiar esse ‘tal’,  como uma navalha cortando, sem perdão,  todas as veias da carne...Muito se falava do homem de casaco de couro por ali. Pra uns, seguira a sina da família, era mesmo capanga de mandantes naquela região aurífera. Pra outros, ganhara notoriedade por lembrar o figurino de “Teodoro do casaco de couro”, um tronco de homem que viera do norte, um capataz de fazenda nas Alagoas, contratado pra ser o Chefe e fazer o  serviço de “limpeza” de bandidos na região,a quem lhe pagasse mais... Pelo sim ou pelo não, dava no mesmo. No entanto, ali, no disfarce, no meio da comunidade, naquela   vizinhança,  era mesmo Seo Dioguinho – mas não faltava quem  lhe  enxergasse sob aquele casaco de couro, a crueldade e a maldade na alma, tal qual seu ascendente, o famoso bandido Dioguinho.O gato Dionísio, por certo, via tudo isso com seus dois olhos fulminantes. E quisera a sorte que, naquele dia fatídico, houvesse, ainda,  um maior desentendimento com o bichano que, quieto e na paz merecida, deglutia uma cabeça de peixe encontrada no lixo...

Pois como quem não quer nada e quer tudo, Seo Dioguinho, com a gana de  mostrar quem era o Rei da Selva por ali, quem mandava e fazia as leis  naquele território demarcado,  fingiu tirar  o casaco de couro  e  tascou-lhe um chute bem dado que o entortou um metro e meio no  ar... Entretanto, sem  tirar nem por, Dionísio rodopiou o  metro e meio acima com   as sete-vidas de que dispunha...e caiu ileso, inteiro, feito homem,  de pé, só ferido bem fundo no seu  orgulho. Fosse dado a quem viu aquela cena,a sabedoria de contá-la,  diria ter visto a alma humana pecaminosa em plena ebulição, e  em sua pior condição, tentando, a todo custo, no embate, como um truculento  galo-de-rinha indiano,  liquidar o oponente numa arena  ladeada pelas  brasas-vivas do inferno.  Espere pelo pior, Seo Dioguinho, mas antes–  diria essa testemunha ocular,  antes,   tome tento na história, que já lhe foi dita. Se a raça humana der brecha... já sabe, não é?... E pelo que me parece estão se descuidando... E Dionísio, então, mostrou, ainda mais, as suas  garras afiadas,  como um descendente de Dionísio, aquele regado a festas  campestres e palacianas... Aquele dotado de domínio sobre cultos, teatros, fecundidade e amante da natureza... Sim, ele, o Deus Dionísio, eleito por unanimidade como Baco, o Deus do Vinho. Ele, um Deus Grego, imortal, que não perderia  essa parada para um descendentezinho dos pobres mortais, alcunhado de Seo Dioguinho qualquer...Espere pelo pior, Seo Dioguinho – pareceu dizer, o imortal Dionísio...e disse.Pois não lhe contaram, Seo Dioguinho, o  que diz  o escritor americano Carl Van Vechten,  sobre nossa espécie, os Gatos?...pois, então,  escute só: “ Um gato nunca é comum, portanto, não é mundano, é um gato; e gatos têm personalidade forte”... E mais, Seo Dioguinho... agora, calo-te, de vez, a boca. Diz aí, petulante, quem é nobre ou quem é a pobreza em pessoa?...Deus me livre disso, mas ouça o que diz Mark Twain, escritor e humorista:“Se o homem pudesse cruzar com os gatos, isso melhoraria o homem e deterioraria o gato”. Fosse o que fosse: estava, ali, criado, um cenário de terra arrasada!...Seo Dioguinho não esperava portanto. Mas, como um ser superior em “achismo”, livrou-se do confronto e  seguiu sua vida  praguejando o seu rival  em gestos, palavras e obras...um desses gestos foi postar-se à espreita, com a  arma em punho, preparada para o disparo. Dionísio, espertamente, captou a mensagem e escafedeu-se em esconderijos. Outro desses gestos de Seo Dioguinho, foi o de  atirar, raivosamente,e cuspindo palavrões, o seu elegante e refinado casaco de couro marrom, reluzente,  brilhoso, sobre os braços de uma  cadeira inocente, fazendo aflorar  no vestuário,  a  etiqueta onde se lia “Cuero de Cabra- Made in Argentina; gesto esse que,  na calada da noite, em silêncio absoluto, colocou  em   prova,  a capacidade felina de Dionísio,  ao armazenar e fazer implodir certas  ações humanas desrespeitosas e desaforadas...Aquela manhã foi a testemunha ocular da história. As tiras arranhadas e arrancadas nas costas do  casaco de couro,  desenhavam  no plano  vertical,  harmoniosamente,  deixando ver entre elas,  sob um vento leve,  a luz filtrada  do sol da janela e da porta da rua... Seo Dioguinho, ainda com os olhos feridos pela luz solar, estendeu no ar e no alto,  o seu distinto casaco de couro em tiras,  como fosse  um toureiro na arena à espera do touro desafeto... E sob um  silêncio insuportável  e carregado de ódio, vociferou, guturalmente, aquele nome que lhe surgia arrancado das suas entranhas:   

- DIONÍSIO!... DIONÍSIO!...”

O grito dioguinhoso, explosivo e repetitivo, tingindo o ar  de  tons manchados de sangue desde a sua primeira geração, ecoou histérico e apunhalador... O silêncio extraordinário de Dionísio, arrastara a  sua proeza felina, bem nas fuças da raça humana, silenciosamente retumbante. Dele, Dionísio, escassearam-se as notícias por um longo espaço de tempo. Bicho invocado aquele. Cor de fumo-navarino-com-chama, uma coloração descoberta durante as  guerras sangrentas d’outrora*.   Um  olhar de quem continuaria sempre a dizer:“- E aí, tá tudo pela ordem?”. “- Bem-vindo de volta, Chefe... O território continua nosso! – responderiam, juntos, todos os  seus  comandados, em reverência cerimoniosa ao  retorno do antigo Rei,  o Chefe-mor da rua.

 

 

(*)Referência a  “Navarino” – Batalha famosa na guerra da independência Grega. (cor de tecido, fumo e fogo). In:Almas Mortas- pg. 410 – Nicolai Gógol.

 

 

 Texto: Celso Lopes   elipse84@terra.com.br     11 98487 1193

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

DIÁLOGOS À BEIRA DO "COMA" - Crônica de Celso Lopes

 

Diálogos à beira do “coma”.

 

 

No filme, Fale com ela, (Hable com ella), do diretor Pedro Almodóvar, os personagens masculinos (enfermeiro e jornalista) e os femininos (bailarina e toureira), estabelecem uma relação intensa num hospital, onde ambas se encontram em ‘coma’.  Marco, o jornalista, acredita que elas estão mortas. Benigno, o enfermeiro, que cuida da bailarina (Lydia) aposta num “milagre” e aconselha Marco: “Fale com ela”... “Fale com ela”...e é o que ele fará, de certa forma, dialogando com o longo silêncio de Leonor (a toureira).

Esse, digamos, monólogo, que no filme ganha  contornos de  diálogos, pode, apropriadamente, tornar-se uma “ferramenta essencial”, também  nesses tempos de Pandemia.  Imagine-se como um paciente terminal. Você está internado, próximo ao fim, mas você ainda escuta. De repente, ao seu lado alguém diz:“ - Farei o possível pela sua vida!...”

Até aí, alguns pontos a considerar: primeiro, esse alguém, o médico ou  profissional intensivista,  poderia estar fisicamente ali, desde que fosse possível,  e com todos os cuidados  e protocolos de um não-contágio, especialmente, frente a um vírus pandêmico, como é o caso do Coronavírus.   Segundo ponto, o médico ou esse Atendente especializado, estariam acompanhando você, via equipamentos de “Telemedicina” – com uso de som e  imagem de vídeo;  com a ressalva de que,  até pouco tempo, esse procedimento sofria certo viés contrário, uma vez que, culturalmente, exigíamos dos profissionais de saúde um estreito contato com o paciente. Digamos que, quanto mais melhor, acredito que era assim que todos nós pensávamos no período pré-pandemia.

Mas há uma outra consideração que salta com relevância neste enfoque. E vem de uma experiente profissional no trato com Cuidados Paliativos; um enfrentamento habilidoso, entre médico-paciente-familiares diante de doenças dolorosas e incuráveis. Tendo à frente, doentes que não podem receber visitas, a médica  Ana Cláudia Quintana, tema desse texto, adianta que a importância do profissional de saúde nessa hora,  alcança e estabelece uma conexão fundamental e de extrema confiança ao paciente. Para a doutora - no  momento da nossa maior fragilidade, em que estamos morrendo, e que todas as medidas de sobrevivência já foram tomadas, e não respondemos mais aos  estímulos, mas ouvimos de um  profissional ao nosso lado:  “ - Farei o melhor que puder pela sua vida. Você é muito corajoso!...”

Para a médica Ana Cláudia, esse gesto, cuidadoso, ganha proporções de reflexão sobre a nossa finitude, tornando, não-necessariamente,  a morte digna, mas sim, a vida digna. 

Por isso, acrescenta:“ Se  a última coisa que você ouvir na sua vida for isso, vai ter valido a pena.  Não é nem para salvar a sua vida, mas fazer o possível pela sua vida.”. 

Nessa mesma linha, o movimento InFINITO ( que contou com  participação da médica) acrescenta:A morte precisa ser integrada à nossa existência.(...) O Movimento inFINITO nasce da vontade de ser um espaço de conversas sinceras sobre o viver e o morrer.(...) Aliás, não existe A morte, mas muitas mortes. Morremos um pouco quando recebemos o diagnóstico de uma doença grave. Morremos um pouco quando quem a gente ama, morre. Morremos como adolescentes quando nos tornamos adultos. Morremos como casados se nos separamos. E morremos quando perdemos o emprego. Quantas outras mortes você consegue imaginar?”

A abordagem da médica Ana Cláudia, entre outros pontos importantes, avança, com propriedade, para esse momento restritivo, imposto, ainda mais,  pela  “Pandemia/Coronavírus”,  em particular, sobre o  impedimento presencial junto aos leitos,  de familiares  ou  mesmo, de profissionais de Saúde,  nesta fase delicada  de perda de entes queridos.

Em sua ótica, quando se vê o corpo, a gente sepulta, chora, faz missa, faz rezas, esse ritual cria e garante uma estrutura de segurança a quem fica; é como se fizéssemos uma  trilha sinalizada: “ Sem essa ritualização, a emoção da perda é arrebatadora” – conclui.

Médica com grande reconhecimento na sua área, e autora de livros como “A morteé um dia que vale a pena viver” e “Histórias lindas de morrer”, Ana Cláudia Quintana parece construir, e constrói,  cuidadosamente, aquele “milagre” da narrativa do filme de Almodóvar (Hable com ella),  apostando todas as suas fichas, sabiamente, humanamente e humanitariamente,  nesse aparente e improvável “diálogo” entre os médicos e pacientes, nesse momento delicado da vida humana para todos nós.  

 

 

Texto:Celso Lopes   elipse84@terra.com.br    11 98487 1193

Fonte: Mariana Alvim - @marianaalvimDa BBC News Brasil em São Paulo (12/abril/2020).

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52238892

https://infinito.etc.br/ (Guia de Rituais de Despedidas Virtuais)

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

GUARÁ... UM FILHO TEU NÃO FOGE!...

 


GUARÁ, UM FILHO TEU NÃO FOGE...”

 

Ainda hoje me faz falta uma palavra exata

sobre minha origem:

sou uma ave pernalta ou sigo meu caminho

sobre quatro-patas?

 

Quero asas pra singrar os céus,

galgar sobre as cores do arco-íris

e comer nuvens de algodão...

Também me dou pernas fortes e ágeis,

sou como um lobo-guará  de olhos ariscos,

a vigiar a mim mesmo

de todos os  riscos neste chão!...

 

Sou uma‘garça’desde os tempos da minha avó...

ou  quem sabe, um filho rebelde da antiga matilha

a ser expulsa pelo asfalto...

 

Mas o que me faz falta mesmo

é uma  palavra exata,

que  brade aos quatro-ventos,

que exale o cheiro do mato,

que exalte a minha cachoeira,

o rio Sapucaí...

uma palavra que siga, indefinidamente,

nas margens sinuosas  do rio Verde,

o meu ribeirãozinho piscoso,

as terras da Grota e da Água-fria...

 

Faz-me falta uma palavra assim:

intensa, delicada, plural, completa,

que  espalhe e  respingue toda a emoção 

dessa minha eterna  prosa com o  Tempo!..

 Texto:Celso Lopes  


BALANÇO DO TEMPO 


A cidade de Guará,  que anteontem me viu nascer; 

Ontem, partir... Hoje me acena a volta, 

 com sutileza de quem sabe dar corda ao tempo!

 Me traz  a bola-de-gude, o bete na Rio Branco,

 me dá o biloquê e o pião... 

Guará me traz o pique, a salva-cadeia, o papagaio no céu, 

 me traz  trem-de-ferro, a mogiana e o campinho da estação.

 E são tantas as lembranças, meu Deus, quantas!... 

Mas  o menino que me habita não se espanta: 

segue pelas ruas, com os pés descalços, bem presos ao chão... 

(Não cresce nem envelhece, essa criança)... 

No entanto,   pinta e borda, balançando ao vento 

e ao léu, na ponta daquela longa  corda! 

A cidade que me viu nascer e partir,

e que hoje me acena a volta, 

sabe mesmo onde me dói o calo: 

 Quando na minha memória, resvalo naquele menino, 

a me olhar com os olhos que são meus,

e a me dizer das lembranças com a minha própria voz... 

Eu e ele somos um, somos um só, tão franzinos, tão sós... 

(O homem e o menino) ambos, os dois...

correndo atrás do tempo em busca de nós!... 


Texto: Celso Lopes


MEMÓRIAS ESCOLARES 

 (castigo & palmatória) 


Quando me ajoelho 

seis grãos de milho surgem

 debaixo dos meus joelhos... 

 Criaram raízes, mas não frutificaram. 

Dei graças a Deus 

 e aprendi a contar mais que sete! 

Pra quem me deu castigo, as sete pragas do Egito, 

pra quem me deu tortura sete anos de amargura... 

Mas quando me ajoelho, como agora, 

Vejo  um campo florido, contemplo aurora... 

Então  de joelhos, peço mil perdões pela agrura

e setecentos anos de doçura!... 


Texto: Celso Lopes


UMBIGO...


Minha cidadezinha passou

Escapou lenta, 

Medrosa

Cheia de Vida...



CLASSIFICADO PEDE PÁGINA 


Reclamem Zé Pedro, por mim, suplico!... 

Nome de batismo: José Pedro da Silva.

 Há de haver esse crédito, afirmo. 

Gritem nas roças, nas praças, anunciem no alto-falante... 

Acessem a internet,  liguem os centros, países, vielas, 

Informem-se em todos os bairros e cidades: Zé Pedro!... 

O menino de calças-curtas, botinas enlameadas e camisa xadrez... 

Um rosto sereno - redemoinho no cabelo - e uns olhos à espera do futuro. 

Há de estar por aí, asseguro-lhes!.. Zé Pedro. 

Desaparecido na quarta série primária, 

com sua  voz envergonhada, camuflando todos os sonhos... 

Trabalho, coragem, luta e uma dor indecifrável serão pistas. 

Não há bilhetes, porque essa gente não manda, faz!... 

Reclamem Zé Pedro! Olhem os  arquivos, armários, fichas escolares... 

Confiram a letra,. Debrucem sobre a caligrafia inconfundível  

Afinal, o que é mesmo a Vida? Grafoscopia, linha das mãos, 

destino ou ironia? 

Revirem tudo, decifrem hierógrafos, se preciso. 

Visitem a Bíblia, usem o DNA, ou seja lá o que for!... 

Procurem Zé Pedro. Suplico pensamento positivo; 

façam corrente até. Não há dúvidas, é pura dívida: 

Precisamos desse patrimônio vivo!... 

Mestres, perdoem-me se insisto, mas puxem pela memória. 

O primeiro da fila - tímido, matuto, uniforme azul e cinto... 

Um sorriso meio ingênuo, um gesto meio adulto... 

Ah!...reclamem Zé Pedro!....Se vissem, e ouvissem e soubessem

como ele rezava o beabá dos animais e a ciência das plantações:

(os rios, o sol, a lua, os campos,  as árvores, as matas, as estrelas e a chuva...)

Reclamem Zé Pedro, não desistam... 

O menino, a criança, o jovem... O homem... 

onde estiver que me ouça: 

receio a história, todas as histórias, 

sem o justo e verdadeiro herói. 


Texto:   Celso Lopes 

[


RASTROS... 


O melhor do meu sorriso 

dorme sob as lonas de um Circo...


A melhor mágica

o maior salto 

o mais engraçado palhaço 

todos dormem 

num doce e profundo sono.


Cão e Gato essa alegria 

que mais dia, menos dia

reconhece a  casa 

e reconhece o dono!...