A SAGRADA FAMÍLIA
Conto de Celso LopesMenção Honrosa no 29 CONCURSO PAULO LEMINSKY - Ed. 2018
TOLEDO/PR - Confira alguns dados do Concurso - Um dos mais famosos do país.
29º CONCURSO DE CONTOS PAULO LEMINSKI
Ao todo, 625 pessoas
inscreveram seus contos. Os participantes são de vários estados brasileiros e
até de outros países. Nesta edição de 2018, houveram participação de Minas Gerais (45), Paraná
(62), Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul (82), São Paulo (163), e 13
contos do exterior: Áustria, Japão, França, Portugal (5), Itália,
Alemanha (2) e Suíça.
Comissão avaliadora
A comissão foi composta pelos seguintes membros: Maria Beatriz Zanchet,
Mestre em Educação; Isabel Cristina Gimenez, doutora em Estudos Literários;
Clarice Lottermann, doutora em Literatura Infantil; Dulce Alves Nakamura,
graduada em Comunicação Social, com Habilitação em Jornalismo e mestra em
Educação; Marli Menegazzo Webler, professora e Especialista em Ciências da
Educação; Nelzi Kzan Pancera, mestre em Linguística e L. Portuguesa; e Dari J.
Klein, Especialista em Literatura Brasileira e Mestre Linguística e Língua
Portuguesa.
Processo de avaliação
Os membros da Comissão Avaliadora efetuaram os trabalhos de leitura a
partir do mês de agosto, tendo registrado sua avaliação numa planilha, recebida
e entregue à Comissão Organizadora que, por sua vez redistribuiu igualmente aos
outros membros da banca para atribuir uma nota numa planilha em branco. Ou
seja, cada conto foi lido, nos últimos três meses, por pelo menos três membros
da banca. Na última sexta-feira (9) a Comissão de
Leitura e Avaliação reuniu-se para reler, analisar, discutir, avaliar e decidir
sobre o mérito literário das obras escolhidas e indicadas para a avaliação
final.
Classificação
Por decisão da banca, a classificação final do Concurso foi a seguinte:
1º lugar, de Nilson de Carvalho Lattari, o conto “Encontro na noite”, de
Alto dos Passos, Juiz de Fora, (MG), cujo prêmio é de R$2.500,00;
2º lugar, de Isadora Bortoluzzi Massa, de
Curitiba, (PR), o conto “Formas de poder”, cujo prêmio é de R$ 1.800,00;
3º lugar, de Alexandre Alliatti, de São Paulo,
(SP), o conto “Gamarra”, que receberá um prêmio de R$ 1.500,00.
Melhor Conto Toledano
Além dessas premiações, o conto “Vida
no sertão” de Maria Eunice Silva de Lacerda, Jardim Gisela, Toledo (PR),
foi escolhido o Melhor Conto Toledano, cujo valor, segundo o regulamento, é de
R$ 1.000,00.
Menções Honrosas
Ainda, por decisão da
banca, foram indicados, para receberem Menções Honrosas, ordenados
alfabeticamente por nome de autor, os seguintes contos:
Celso Antônio Lopes
da Silva, com o conto A Sagrada Família; Frederico Dollo Linardi, com o conto As
unhas de Elza (RS); Natália Nami; com o conto Que seja eterno, Barra do Piraí/RJ; Paula Giannini (Ana Paula
Giannini Rydlewski), com o conto Nona; de Sumarezinho, São Paulo, (SP);
Sandra Maria Godinho Gonçalves, com o conto “Vamos brincar?”, de Ponta
Negra, Manaus (AM) ; Vitória Moraes de Oliveira Reis, (PR), com o conto Borderline,
de Londrina, (PR); e o conto O entregador, de Maria Fernanda dos
Santos, Rua Guaíra, Toledo (PR).
A cerimônia de
premiação será no próximo dia 30 de novembro às 16h na Biblioteca Pública
Municipal, localizada na Avenida Tiradentes, 1165. Os contos que foram
premiados nesse evento e também aqueles que receberam menções honrosas, farão
parte da 6ª Coletânea de
Contos do Concurso
Paulo Leminski. A próxima a ser lançada será em 2019.
PREFEITURA DO
MUNICÍPIO DE TOLEDO – PR
Rua Raimundo
Leonardi, 1586CEP 85900-110 - (45) 3055-8800
“A
SAGRADA FAMÍLIA”
Andrázio acomoda-se no sofazinho do
quarto-e-sala. Pouco a pouco, incomoda-se
arisco e com pena de si próprio. Corre os olhos pelo
interior do quarto-e-sala da Rio Branco, o matadouro. Sabe de cor e salteado
que já são horas de aparecer a Zinhazinha
- Luciene ou Rosa Maria?. – Por
instantes, a imagem da musa lhe foge do controle mental, então, pergunta a si mesmo, como quem falasse pras paredes ou
pra janela semi-aberta, que
escancara lá embaixo a vida que leva no aposento aqui em cima; Andrázio repete alto, bem alto,
altíssimo: é a sina!... é a minha sina!... a minha própria sina –
garante. Urra, o leão: são esses malditos rabos-de-saia que já
no primeiro encontro me aparecem
inventando o pretexto. Uiva, como
uma fera: um Deus que me livre e me guarde de mim mesmo. Sua benção, meu
Pai. Um Deus que me proteja e me guie e
que me tire das lábias afiadas dessas Zinhazinhas - afirma temeroso, o pobrezinho.
-
Vem, Andrázio, vem conhecer a minha mãezinha, vem!...
Andrázio escorrega o corpo pelo sofazinho sem o apoio dos braços. Segue andarilho no entorno do quarto-e-sala,
enjauladinho, enjauladinho. Não há folga, pressente o incômodo entre as quatro paredes. A cara de anjo, anjinho dos catecismos refletida no espelho. Andrázio ajeita os
cachos com o entrededo da mão no espelhinho cor de abóbora. Um presente da Mãe
que vive jogado sobre a cômoda. O Pai que o esqueça – resmunga o herói. Defunto
que descansa, o Velho. Proibir a viola,
pensava o quê? O quê?... Então,
eu não podia ser músico como tantos outros por aí? O Velho nunca teve a
paciência com os violeiros. Uns vadios,
uns vadios!... – dizia. Andrázio
tenta pela milionésima vez livrar-se dessa lembrança que o acompanha... mas,
consegue? Deus me livre e guarde que não quero pensar nessas coisas! –
desconversa o herói. Não resiste, olha
demoradamente pras mãos. A infância passou assim-assim, cortando um riscado. O diabo na cruz, o que
sofreu, olhando a surda-muda da viola dependurada na parede. As mãos, ainda
hoje, sentem a dor da gaze. Dez anos enfaixadas, a sina que teve. Quem repara
bem, ainda vê que traz os dedos assim juntinhos. Irmãos Siameses. Dez anos com
os dedos grudados e enfaixados, que era pra não tomar gosto pela sonoridade do
instrumento. A viola que ficasse lá no alto – dizia o Pai. A Mãe tinha que cumprir, senão...
Enquanto se penteia, Andrázio
pressente que as mãos não morreram assim tristinhas, antes, suicidaram!...-
garante em soluços. Pranteia-se, por instantes demorados ouvindo o som da
campainha. Rosa Maria entra e atira um
olhar que fulmina e entontece o galãzinho. Lá vou eu, Marianinho – diz
pra si mesmo, o pobre de Marré, Marré, Marré...
Andrázio reitera, implicante: Lá
vou eu guia de cego – balbucia
molequinho, só pra se atentar. Andrázio
desassossega um tantinho a mais. De novo
um olhar sem jeito pro espelhinho cor de abóbora dependurado na parede – o
presente da Mãe que nunca esquece. Os
olhos miram os cachos – cachinhos de Anjo, Anjinho dos catecismos. Confira o
Senhor mesmo, insiste o desmiolado.
Enquanto confere os minutos que andam,
Andrázio ouve a
ladainha que martela em seu
ouvido. Andrázio jura com os dedos em
cruz um ora pro nobis endereçado
a essa
voz mole-mole da danadinha. Voz
macia e amolecida, a de Rosa Maria.
Malemolente até mandar parar,
feito o gingado de quem pede e suplica
uma água de matar a sede. Água da
fonte, pura e cristalina. Doce de gulodice, essa lábia-punhal que traz dois gumes afiados e que me ferem de morte –
reafirma, implicante, o coitadinho.
Andrázio ainda implora um perdão
de culpa e paixão sem escolher o dia, a
hora ou lugar.... Nesse momento... Ai... o grito explode. Reage aflito, o
matuto. Ai... insiste em choramingos sem fim, o heroizinho das galerias. Suplica um tantinho que dá pena a qualquer
um: tenham dó desse coitadinho de mim
- confessa o heróizinho de Sampa, numa lenga-lenga manjada de
lamúrias e lamúrias.
Andrázio reitera tudo, tudo com os pingos nos is: os meus olhinhos caindo
bem nas coxas de Rosa Maria. A boa
vontade do vestidinho curto, solto, generoso, par-e-par com a bluzinha
transparente; o doce balanço, os
botõezinhos de madrepérola, a minha coceirinha
nas mãos sobre o tecido folgando leve, esvoaçante; uma
transparenciazinha pouco a pouco
liberada pelas redondilhas dos
botõezinhos reluzentes... doze, onze, dez, nove, oito, sete, seis, cinco,
quatro.... Agora, agora livrar-se das
últimas casas soltando os botões que se
desprendem em contagem progressiva e
ágil: três, dois, um!...
Uma corrida no espaço, essa demora –
o galãzinho sofre a dor e se derrama em prantos. Uns olhos atentos
cronometrando e conferindo a contagem em
replay: doze, onze, dez, nove, oito,
sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um... A seda fina, danadinha que só, escorregando livre e macia no colinho de Rosa Maria. O herói pede socorro. Grita por dentro e por
fora, quase em desespero:
essa mão boba que tenho – insiste -
segue escrevendo em linhas tortas – vez em quando com as costas das
unhas - displicentezinhas. Vou
contornando os dedinhos na pele morena de Rosa Maria. As unhazinhas, aleatórias como a insensatez de um lápis, preenchendo com arte a brancura de um risque-rabisque sobre a escrivaninha. Ai de
mim. Ai de mim – o herói sente o peito arfante.
Surge no fundo, bem fundo,
ultrapassando a rouquidão, uma
dorzinha amorosa que perpassa a
quinta vértebra da espinha dorsal. Andrázio engole as sílabas medrosas, e sem se
dar conta, transforma-se em lobo manso. Um cordeiro-de-deus
somando as contas de três dígitos, insatisfeito com o patrimônio. A dorzinha no peito beirando 39, nenhum verso maior,
nenhuma frase maior... só os
antibióticos!... O herói sente-se no fio da navalha. Uma fera enjaulada junto às esquinas
entre o espanto e a xérox. Quem
dera um demoniozinho pra fazer a mea-culpa,
mea-culpa, minha máxima culpa - vaticina pra si mesmo. Esse, o maior dos
perigos – prossegue temeroso - um
tremorzinho de doença, os calafrios que
lhe atacam o corpo. E atacam, atacam,
atacam – desconjura o galãzinho, só meio a meio aturdido,
sofrendo profundamente a dor que carrega pra sempre nessa hora da vida.
- Mas,
consigo dizer não, consigo? - desarma-se, o convencido.
É visível. O herói sofre ao
descrever com todas as letras maiúsculas e minúsculas a história daquele encontro. O pai de Rosa Maria – Andrázio faz
questão de repetir a frase martelada pelo Velho: “ - se me foge essa filha, vou até o fim do
mundo atrás do filha da puta” . O pai de Rosa Maria, continua o herói, o
pai de Rosa Maria trouxera toda a
coleção de bichos empalhados. O Velho descrevia – prossegue o herói – cientificamente, toda a fauna brasileira e
estrangeira. Apresentava a esse leigo, um a um,
peixes, papagaios, araras e
gaviões, gaivotas e condores ...além de algumas espécies em
extinção.
-
Esta aqui é uma Águia!... ave de rapina da família dos Aquilíneos. Águia-real,
inglesa, é diurna!... insistia com ar professoral, o danado do Pai, dando nota mínima a esse sofredor que sou
eu. Andrázio descreve com todas as letras minúsculas e maiúsculas a história
do encontro. A mãe de Rosa Maria – O Anjinho faz questão de completar a frase da Mãe “ É um moço bonito, filha, o que ele faz? “ A mãe de Rosa Maria fritava os bolinhos.
Receita de uma avó de Rosa Maria, dizia. Que eu
esperasse – prossegue o herói -
valeria a pena. Um nadinha de
nada na demora. Só o tempo da fervura no
tacho de cobre. Uma delícia, quando
quentinhos - afirmou a futura sogra.
- Vem, Andrázio, vem conhecer a
minha mãezinha, vem!
Esse, o pobrezinho que sou - repete o herói. Uma cara de anjo que não me livro. Repare você
mesmo, insiste o desenxabido. Observe esses cachos, os cabelos anelados, cor de
ouro, os contornos enroladinhos ... Um
anjinho, um Anjinho dos catecismos, não
pareço? Diga, tenho ou não tenho essa cara de Anjo?...
Anjinho de catecismo, sou ou não sou?
Pois essa é a minha sina cravada
e esculpida nesse rosto emoldurado. O meu destino escrito em linha reta com essas Zinhazinhas. Ai de mim. Ai de
mim com essa cara de anjo bom...anjinho dos catecismos!...
Rosa Maria bem que desconfiava,
refletiu o herói, lembrando-se da Rosinha-magricela, a menininha da rua escura que esperava os moleques
pra levantar a sainha. Ai de mim,
o sinal que não entendi. O sinal
da cruz. Um bobo-alegre o que sou diante de Rosa Maria. Dia desses, vaticina o
herói, voltar a estudar. Aprender os códigos, os pingos e as
letras. Finalizar o “Ginasial”, terminar
o “Colegial”, e depois, aí, sim, a Faculdade lá na frente... O heróizinho lançou um olhar sobre a caderneta, um
presente da Mãe, nunca aberta, jogada
ali mesmo sobre a cômoda – O galãzinho
arrisca uma outra mania que tem: um dia ser
escritor, garante a si mesmo. Por vezes,
Andrázio tropeça na própria história: por certo, confessa a si mesmo, por certo,
Rosa Maria carrega um disfarce de pai e mãe nesses gestos que ignoro - lamentou-se, tristinho, tristinho. Segue
analista: um jeito próprio que tem essa Zinhazinha com o movimento das mãos, do corpo e
da mente: espertos, libertos, desprovido
de códigos, movidos à perspicácia e uma
inteligência que não lhe falta nunca.
Nunquinha... Arre!... o herói reage em
lamentos como quem sofre a dor de um
parto. Um sofredor contumaz. O falatório
que diz, agora, ganha ecos pelo quarto e sala:
conversa sussurrada ao pé do
ouvido nessa minha orelha de abano – justifica o eqüinozinho. Pecado em casa de
padre, o aceno que não entendi. Vou de
mãozinha dada com Rosa Maria; vou arrastadinho que dá gosto. Uma
Rosinha-magricela na rua escura me esperando pra levantar a sainha no bem-bom –
sorri eufórico. Um desejo que não ocupa lugar nem hora – confessa o
garanhãozinho duma figa. Engano, insiste
ele. Andrázio resolveu desistir do ato:
vou corno – garante a si mesmo –
vou corno, vou mansinho e infame,
e por dentro carrego o
carneirinho, um cordeirinho-de-deus à flor da pele. Deus
que me livre e guarde. Creio em Deus. Creio em Deus Pai todo poderoso – benze-se duas vezes, o
heroizinho profano; benze-se com os gestos articulados da sua primeira-comunhão orientada,
diariamente, em sacrilégio pelo padre Milton Cruz. -
aflorou essa lembrança, sem saber
o porquê...
-
Vem Andrázio, vem o conhecer o meu quartinho, vem!
Os botõezinhos de madrepérola, quem
me dera. Minha culpa, minha culpa, minha máxima
culpa. Rosa Maria seminua, e eu?...
Malditos rabos-de-saia!... Sempre
ao meu ladinho me atiçando a
família. A sagrada família, a ferro e fogo. Goela abaixo, o que engulo
nessas horas. Esse ‘ar’ de coroinha, a
nobreza que tenho. Sou mesmo um Marianinho de Igreja... - desconsidera-se,
o troglodita. Diga, tenho ou não tenho essa cara de Anjo, Anjinho dos
catecismos? Minha culpa, minha culpa,
minha máxima culpa... Todo rabo-de-saia quer um santo em família..
Eu, eu quero a salvação. Um
desapego que me livre dessa agonia que
trago. Rosa Maria seminua, nua, nuazinha e
insistente, a taradinha... Um
reino de Deus que me livre do pecado à minha frente.. Pobrezinho de mim com
essa cara de anjo. Anjinho bom. Um Cordeirinho
de Deus tirando os pecados do mundo.
O quarto-e-sala da Rio Branco, a armadilha. O sofazinho de canto sem o apoio
dos braços, a estratégia. O herói estanca
a mãozinha boba, mas não resiste ao
gesto. Rosa Maria sem os sapatos,
libertando os gestos, o tempo e o
estilo. Estonteante primavera de dois dígitos.
Idade 19, 16 e meio, o
corpinho. O sofazinho da sala, um
tantinho inclinado, a armadilha do plano
- confirma o herói. Um corpinho que se deixa, malemolente, ali,
estirado e seminu. - Ai quem me dera...
os doze botõezinhos de madrepérola que meus dedinhos entreabrem – suspira o herói. A blusinha de seda escorregando maliciosa, deixando ver a pele nua
do corpo danadinho. A arte emoldurada
- garante o safadinho a si mesmo. Os
botõezinhos de madrepérola revelam-se almas gêmeas à espera de qualquer mão boba que ande, avance, oriente, caminhe,
percorra, ensine, alise, rodopie e faça cócegas... O herói tremelica só de lembrar. – Um
Deus que me acuda – sorri o convencido ali no quarto-e-sala na Rio Branco.
O minhonzinho de coxas roliças no puro sorriso. Água na boca. Um estupendo filé do
Moraes, esse manjar dos deuses –
afirma o heroizinho. Comer com os olhos. Rã à milaneza do
Parreirinha, o que aprecio por demais, reitera Andrázio, já saboreando os pratos. Hoje, hoje com Rosa Maria, matar a sede.
Livrar-se dos botõezinhos: doze, onze,
dez, nove, oito, sete, seis, cinco... ensaia o petulante.
Rosa Maria sorri tagarelando aos quatro ventos:
“-
Alicinha, minha amiga, não vai me
perdoar nunca, Andrázio...Eu, quase nua,
a bem dizer, nuazinha,
aqui contigo nesse sofázinho da sala,
Andrázio! ...
Um quarto e sala na Rio Branco, o
matadouro. O sofazinho da sala com o assento largo, sem o apoio dos
braços, o meu golpe – late, late,
late, o ferino:
- Ai, quem me dera!... Andrázio esperneia
como um bobinho de nascença.
Sou esse anjo de mim mesmo, sou
um desmilingüido, um pateta com o corpo em brasa dormida e
desativado dos nervos; esse é o meu calafrio que sinto na espinha. Os olhos do herói seguem testemunhas: indicam uma severa reflexão,
coisa pouco comum diante daquela sua estupidez de sempre no dia-a-dia. Andrázio constata a cena final do encontro;
agora, agora transformando-se numa besta
emburrada. Um heroizinho mudo. O Anjinho
em frangalhos, fora do tempo e lugar. Bandeira a meio-pau!... o
galãzinho sofre um dia-martelo que
bate, bate e bate, sem nunca atingir a
poesia!...Quem dera o amor antigo, único, não esse, desconfiado, que
trucida em golpes de nocaute. Abatido, o
heroizinho sente a força dos punhos de Rosa Maria em seu
queixo de vidro. Ela, de pé, as mãos
levantadas à espera do troféu. Ele,
Andrázio, nocauteado, franzininho que dói. Um a menos na sua triste história de
vida. Mil ao contrário. Mil de tabaréu. O herói, ali, debruçadinho sobre si mesmo; os olhinhos parados, pesarosos e suplicantes, teimando em ver os
botõezinhos de madrepérola enviesados, sorrateiros e displicentes ao
entreaberto lento e medroso das suas
mãozinhas pouco ágeis. Taradinho,
o que sou!...- tenta se convencer, o pobrezinho. Mas segue solitário,
um homenzinho abatido no matagal da
memória, engolindo seco os prantos de uma viagem sem volta. Leoa no cio, Rosa
Maria. Os olhos certeiros, guardando no odre mil verbos à espreita,
milhares, à espera de uma paixão fulminante e sem pressa. O herói, descaidinho, um
surdo-mudo sem o dom de ler os lábios. Carente de linguagem, o infeliz. Bandeira a meio-pau. Rosa Maria nua, nuazinha...o herói, esse, sem gestos, sem estilo e sem jeito. Um tropeção na areia.
O penúltimo dos espermatozóides. Um quase-homenzinho sentindo o veneno do BHC
invadindo-lhe as veias – o herói aponta o braço – o esquerdo - Um veneninho lento, colorido de um
azul-de-metileno que vai se espalhando, infiltrando sem dó e piedade
nesse ar que tem e teima – raciocina insosso. Uma outra linguagem, o que preciso - garante pra si mesmo, o que acha que
necessita. Aos poucos, complementa
o herói, julgando-se consistente - sou
mesmo umas sílabas que não se encaixam.
Sinto e pressinto. Uma outra sintaxe o que sou: surda-muda! - Andrázio comemora essa conclusão em silêncio profundo. Depois, sorri por
instantes, mas segue enfezadinho, deitadinho em curva como um
feto com
a cabeça reclinada, apoiando-se
nas almofadinhas de chita, amparado e acarinhado pelos doces afagos da donzela que lhe alisa os cachinhos de Anjo. O Anjinho dos catecismos...
Texto: CELSO LOPES