quinta-feira, 29 de novembro de 2018

A Sagrada Família - Conto de Celso Lopes

A SAGRADA FAMÍLIA 

Conto de Celso Lopes 
Menção Honrosa no 29 CONCURSO PAULO LEMINSKY - Ed. 2018 
TOLEDO/PR  -   Confira alguns dados do Concurso - Um dos mais famosos do país. 



29º CONCURSO DE CONTOS PAULO LEMINSKI

         

 A Secretaria de Educação, por meio da Biblioteca Pública Municipal - Centro Cultural "Oscar Silva", divulgou nesta terça-feira (13) o resultado da Vigésima nona edição do concurso literário mais famoso de Toledo, o Concurso de Contos Paulo Leminski.
 Ao todo, 625 pessoas inscreveram seus contos. Os participantes são de vários estados brasileiros e até de outros países. Nesta edição de 2018, houveram participação de Minas Gerais (45), Paraná (62),  Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul (82), São Paulo (163), e 13 contos do exterior: Áustria, Japão, França,   Portugal (5), Itália, Alemanha (2) e Suíça.
 Comissão avaliadora
A comissão foi composta pelos seguintes membros: Maria Beatriz Zanchet, Mestre em Educação; Isabel Cristina Gimenez, doutora em Estudos Literários; Clarice Lottermann, doutora em Literatura Infantil; Dulce Alves Nakamura, graduada em Comunicação Social, com Habilitação em Jornalismo e mestra em Educação; Marli Menegazzo Webler, professora e Especialista em Ciências da Educação; Nelzi Kzan Pancera, mestre em Linguística e L. Portuguesa; e Dari J. Klein, Especialista em Literatura Brasileira e Mestre Linguística e Língua Portuguesa.

Processo de avaliação
Os membros da Comissão Avaliadora efetuaram os trabalhos de leitura a partir do mês de agosto, tendo registrado sua avaliação numa planilha, recebida e entregue à Comissão Organizadora que, por sua vez redistribuiu igualmente aos outros membros da banca para atribuir uma nota numa planilha em branco. Ou seja, cada conto foi lido, nos últimos três meses, por pelo menos três membros da banca.   Na última sexta-feira (9) a Comissão de Leitura e Avaliação reuniu-se para reler, analisar, discutir, avaliar e decidir sobre o mérito literário das obras escolhidas e indicadas para a avaliação final.

Classificação
Por decisão da banca, a classificação final do Concurso foi a seguinte:
 1º lugar, de Nilson de Carvalho Lattari, o conto “Encontro na noite”, de Alto dos Passos, Juiz de Fora, (MG), cujo prêmio é de R$2.500,00;
2º lugar, de Isadora Bortoluzzi Massa, de Curitiba, (PR), o conto “Formas de poder”, cujo prêmio é de R$ 1.800,00;
3º lugar, de Alexandre Alliatti, de São Paulo, (SP), o conto “Gamarra”, que receberá um prêmio de R$ 1.500,00.
Melhor Conto Toledano
Além dessas premiações, o conto “Vida no sertão” de Maria Eunice Silva de Lacerda, Jardim Gisela, Toledo (PR), foi escolhido o Melhor Conto Toledano, cujo valor, segundo o regulamento, é de R$ 1.000,00.

Menções Honrosas

Ainda, por decisão da banca, foram indicados, para receberem Menções Honrosas, ordenados alfabeticamente por nome de autor, os seguintes contos:

Celso Antônio Lopes da Silva, com o conto A Sagrada Família; Frederico Dollo Linardi, com o conto As unhas de Elza (RS); Natália Nami; com o conto Que seja eterno, Barra do Piraí/RJ; Paula Giannini (Ana Paula Giannini Rydlewski), com o conto Nona; de Sumarezinho, São Paulo, (SP); Sandra Maria Godinho Gonçalves, com o conto “Vamos brincar?”, de Ponta Negra, Manaus (AM) ; Vitória Moraes de Oliveira Reis, (PR), com o conto Borderline, de Londrina, (PR); e o conto O entregador, de Maria Fernanda dos Santos, Rua Guaíra, Toledo (PR).
A cerimônia de premiação será no próximo dia 30 de novembro às 16h na Biblioteca Pública Municipal, localizada na Avenida Tiradentes, 1165. Os contos que foram premiados nesse evento e também aqueles que receberam menções honrosas, farão parte da 6ª Coletânea de Contos do Concurso Paulo Leminski. A próxima a ser lançada será em 2019.

Parte inferior do formulário

PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE TOLEDO – PR
Rua Raimundo Leonardi, 1586CEP 85900-110 - (45) 3055-8800


(leia o conto) 


 “A  SAGRADA FAMÍLIA”


Andrázio acomoda-se no sofazinho do quarto-e-sala.  Pouco a pouco,  incomoda-se  arisco  e com  pena de si próprio. Corre os olhos pelo interior do quarto-e-sala da Rio Branco, o matadouro. Sabe de cor e salteado que já são horas de aparecer a Zinhazinha -  Luciene ou Rosa Maria?. – Por instantes, a imagem da musa lhe foge do controle mental, então, pergunta  a si mesmo, como quem falasse pras  paredes ou  pra  janela semi-aberta, que escancara lá embaixo a vida que leva no aposento aqui  em cima; Andrázio repete alto, bem alto, altíssimo:   é a sina!... é a minha sina!... a minha própria sina – garante.  Urra, o leão:  são esses malditos rabos-de-saia  que já  no primeiro encontro me aparecem  inventando o pretexto.  Uiva, como uma fera: um Deus que me livre e me guarde de mim mesmo. Sua benção, meu Pai.   Um Deus que me proteja e me guie e que me tire das lábias afiadas dessas Zinhazinhas -   afirma temeroso, o pobrezinho.

- Vem, Andrázio, vem conhecer a minha mãezinha, vem!...

Andrázio escorrega o corpo  pelo sofazinho sem o  apoio dos braços.  Segue andarilho no entorno do quarto-e-sala, enjauladinho, enjauladinho. Não há folga, pressente o incômodo  entre as quatro paredes.  A cara de anjo, anjinho dos catecismos  refletida no espelho. Andrázio ajeita os cachos com o entrededo da mão no espelhinho cor de abóbora. Um presente da Mãe que vive jogado sobre a cômoda. O Pai que o esqueça – resmunga o herói. Defunto que descansa, o Velho. Proibir a viola, pensava o quê? O quê?... Então, eu não podia ser músico como tantos outros por aí? O Velho nunca teve a paciência com os violeiros. Uns vadios, uns vadios!... – dizia.   Andrázio tenta pela milionésima vez livrar-se dessa lembrança que o acompanha... mas, consegue? Deus me livre e guarde que não quero pensar nessas coisas! – desconversa o herói.  Não resiste, olha demoradamente pras mãos. A infância passou assim-assim,  cortando um riscado. O diabo na cruz, o que sofreu, olhando a surda-muda da viola dependurada na parede. As mãos, ainda hoje, sentem a dor da gaze. Dez anos enfaixadas, a sina que teve. Quem repara bem, ainda vê que traz os dedos assim juntinhos. Irmãos Siameses. Dez anos com os dedos grudados e enfaixados, que era pra não tomar gosto pela sonoridade do instrumento. A viola que ficasse lá no alto – dizia o Pai.  A Mãe tinha que cumprir, senão...

Enquanto se penteia, Andrázio pressente que as mãos não morreram assim tristinhas, antes, suicidaram!...- garante em soluços. Pranteia-se, por instantes demorados ouvindo o som da campainha.  Rosa Maria entra e  atira um  olhar que fulmina e entontece o galãzinho. Lá vou eu, Marianinho – diz pra si mesmo, o pobre de Marré, Marré, Marré...  Andrázio reitera, implicante:  Lá vou eu  guia de cego – balbucia molequinho, só pra se atentar.   Andrázio desassossega um tantinho a mais.  De novo um olhar sem jeito pro espelhinho cor de abóbora dependurado na parede – o presente da Mãe que nunca esquece.  Os olhos miram os cachos – cachinhos de Anjo, Anjinho dos catecismos. Confira o Senhor mesmo, insiste o desmiolado.   Enquanto confere os minutos que andam,  Andrázio  ouve  a  ladainha que martela em  seu ouvido.  Andrázio jura com os dedos em cruz  um ora pro nobis  endereçado a  essa  voz  mole-mole da danadinha. Voz macia e amolecida, a de Rosa Maria.   Malemolente até mandar parar,   feito o gingado de quem pede e suplica  uma água  de matar a sede. Água da fonte,  pura e cristalina.  Doce de gulodice, essa lábia-punhal que traz  dois gumes afiados e que me ferem de morte – reafirma, implicante, o coitadinho.  Andrázio ainda implora  um perdão de culpa e paixão sem escolher  o dia, a hora ou lugar.... Nesse momento... Ai... o grito explode. Reage aflito, o matuto. Ai... insiste em choramingos sem fim, o heroizinho das galerias.  Suplica um tantinho que dá pena a qualquer um:   tenham dó desse coitadinho de mim -  confessa o heróizinho  de Sampa, numa lenga-lenga manjada de lamúrias e lamúrias.  

Andrázio reitera tudo, tudo  com os pingos nos is: os meus olhinhos caindo bem nas coxas  de Rosa Maria.  A  boa vontade do vestidinho curto, solto, generoso, par-e-par com a bluzinha transparente;   o doce balanço, os botõezinhos de madrepérola, a minha coceirinha  nas mãos sobre o tecido folgando leve, esvoaçante; uma transparenciazinha pouco a pouco  liberada pelas redondilhas  dos botõezinhos reluzentes... doze, onze, dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro....  Agora, agora livrar-se das últimas casas soltando os  botões que se desprendem em contagem progressiva e  ágil:   três, dois, um!...
Uma corrida no espaço, essa demora – o galãzinho sofre a dor e se derrama em prantos. Uns olhos atentos cronometrando e  conferindo a contagem em replay:   doze, onze, dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um... A seda fina, danadinha que só,  escorregando livre e macia  no colinho de Rosa Maria.  O herói pede socorro. Grita por dentro e por fora,  quase em  desespero:  essa mão boba que tenho – insiste -  segue escrevendo em linhas tortas – vez em quando com as costas das unhas -  displicentezinhas. Vou contornando  os  dedinhos na pele  morena de Rosa Maria.  As unhazinhas, aleatórias  como a insensatez de um lápis,   preenchendo com arte a brancura de um  risque-rabisque sobre a escrivaninha. Ai de mim. Ai de mim – o herói sente o peito arfante.  Surge no fundo, bem fundo,  ultrapassando a rouquidão,  uma dorzinha amorosa que perpassa  a quinta  vértebra da espinha dorsal.  Andrázio engole as sílabas medrosas, e sem se dar conta, transforma-se em lobo manso. Um cordeiro-de-deus somando as contas de três dígitos, insatisfeito com  o patrimônio. A dorzinha  no peito beirando 39, nenhum verso maior, nenhuma frase maior...  só os antibióticos!... O herói sente-se no fio da navalha.  Uma fera enjaulada junto  às esquinas  entre o espanto e a xérox.  Quem dera um demoniozinho  pra  fazer a mea-culpa, mea-culpa, minha   máxima culpa -  vaticina pra si mesmo. Esse, o maior dos perigos – prossegue temeroso -  um tremorzinho de doença,  os calafrios que lhe atacam o corpo. E atacam,  atacam,  atacam  – desconjura  o galãzinho, só meio a meio aturdido, sofrendo profundamente a dor que carrega pra sempre  nessa hora da vida. 

 - Mas, consigo dizer não, consigo? -  desarma-se,  o convencido.

É visível. O herói sofre ao descrever com todas as letras maiúsculas e minúsculas a história daquele  encontro. O pai de Rosa Maria – Andrázio faz questão de repetir  a frase  martelada pelo Velho: “ - se me foge essa filha, vou até o fim do mundo atrás do filha da puta” . O pai de Rosa Maria, continua o herói, o pai de Rosa Maria  trouxera toda a coleção de bichos empalhados. O Velho descrevia – prossegue o herói  – cientificamente, toda a fauna brasileira e estrangeira.  Apresentava a esse leigo,  um a um,  peixes, papagaios, araras  e gaviões,  gaivotas e  condores ...além de algumas espécies em extinção.
- Esta aqui é uma Águia!... ave de rapina da família dos Aquilíneos. Águia-real, inglesa, é diurna!... insistia com ar  professoral, o danado do Pai,   dando nota mínima a esse sofredor que sou eu. Andrázio descreve com todas as letras minúsculas e maiúsculas a história do  encontro. A  mãe de Rosa Maria – O Anjinho faz questão de  completar a frase da Mãe “ É um  moço bonito,  filha, o que ele faz? “  A mãe de Rosa Maria fritava os bolinhos. Receita de uma avó de Rosa Maria, dizia. Que eu  esperasse – prossegue o herói -  valeria a pena.  Um nadinha de nada  na demora. Só o tempo da fervura no tacho de cobre.  Uma delícia, quando quentinhos -  afirmou a futura sogra.

- Vem, Andrázio, vem conhecer a minha mãezinha, vem!

Esse, o pobrezinho que sou -  repete o herói. Uma  cara de anjo que não me livro. Repare você mesmo, insiste o desenxabido. Observe esses cachos, os cabelos anelados, cor de ouro,  os contornos enroladinhos ... Um anjinho,  um Anjinho dos catecismos, não pareço?  Diga,  tenho ou não tenho essa cara de Anjo?... Anjinho de catecismo,  sou  ou não sou?  Pois essa é  a minha sina cravada e  esculpida nesse rosto emoldurado.    O meu destino escrito em linha reta  com essas Zinhazinhas.   Ai de mim. Ai de mim com essa cara de anjo bom...anjinho dos catecismos!...   
Rosa Maria bem que desconfiava, refletiu o herói, lembrando-se da Rosinha-magricela, a menininha  da rua escura que esperava os  moleques  pra levantar a sainha. Ai de mim,  o sinal  que não entendi. O sinal da cruz. Um bobo-alegre o que sou diante de Rosa Maria. Dia desses, vaticina o herói,   voltar a estudar.  Aprender os códigos, os pingos e as letras.  Finalizar o “Ginasial”, terminar o “Colegial”, e depois,  aí, sim,  a Faculdade lá na frente... O heróizinho  lançou um olhar sobre a caderneta, um presente da Mãe,  nunca aberta, jogada ali mesmo sobre a cômoda –  O galãzinho arrisca uma outra mania que tem: um dia ser escritor, garante a si mesmo. Por vezes,  Andrázio tropeça  na própria história:  por certo, confessa a si mesmo, por certo, Rosa Maria carrega um  disfarce  de pai e mãe nesses gestos que ignoro -  lamentou-se, tristinho, tristinho. Segue analista: um jeito próprio que tem essa Zinhazinha com o movimento das mãos, do corpo e da mente:  espertos, libertos, desprovido de códigos, movidos à perspicácia e  uma inteligência  que não lhe falta nunca. Nunquinha...   Arre!... o herói reage em lamentos como quem  sofre a dor de um parto. Um sofredor contumaz.  O falatório que diz, agora, ganha ecos pelo quarto e sala:  conversa  sussurrada ao pé do ouvido nessa minha orelha de abano – justifica o eqüinozinho. Pecado em casa de padre, o aceno que não entendi.  Vou de mãozinha dada com Rosa Maria; vou arrastadinho que dá gosto. Uma Rosinha-magricela na rua escura me esperando pra levantar a sainha no bem-bom – sorri eufórico. Um desejo que não ocupa lugar nem hora – confessa o garanhãozinho duma figa.   Engano, insiste ele. Andrázio  resolveu desistir  do ato:  vou  corno – garante a si mesmo – vou  corno, vou mansinho e  infame,  e por dentro carrego o  carneirinho,  um cordeirinho-de-deus à flor da pele. Deus que  me livre e guarde.  Creio em Deus. Creio em Deus  Pai todo poderoso – benze-se duas vezes, o heroizinho profano;  benze-se  com os gestos articulados  da sua primeira-comunhão orientada, diariamente,  em sacrilégio pelo   padre Milton Cruz.  -  aflorou essa  lembrança, sem saber o porquê...

- Vem Andrázio, vem o conhecer o meu quartinho, vem!

Os botõezinhos de madrepérola, quem me dera.  Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa.  Rosa Maria seminua,  e eu?...  Malditos rabos-de-saia!...  Sempre ao meu ladinho  me atiçando a família.  A sagrada família,  a ferro e fogo. Goela abaixo, o que engulo nessas horas.  Esse ‘ar’ de coroinha, a nobreza que tenho. Sou  mesmo  um Marianinho de Igreja... - desconsidera-se, o troglodita. Diga, tenho ou não tenho essa cara de Anjo, Anjinho dos catecismos? Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa...  Todo rabo-de-saia quer um santo em família.. Eu, eu  quero a salvação. Um desapego   que me livre dessa agonia que trago.  Rosa Maria  seminua, nua, nuazinha  e  insistente, a taradinha...  Um reino de Deus que me livre do pecado à minha frente.. Pobrezinho de mim com essa cara de anjo. Anjinho bom. Um Cordeirinho  de Deus tirando os pecados do mundo. O quarto-e-sala da Rio Branco, a armadilha. O sofazinho de canto sem o apoio dos braços, a estratégia.  O herói estanca a mãozinha boba, mas não resiste ao  gesto. Rosa Maria  sem os sapatos, libertando  os gestos, o tempo e o estilo. Estonteante primavera de dois dígitos.  Idade 19,  16 e meio, o corpinho.  O sofazinho da sala, um tantinho inclinado,  a armadilha do plano -  confirma o herói.  Um corpinho que se deixa, malemolente, ali, estirado e seminu. - Ai quem me dera... os doze botõezinhos de madrepérola que meus dedinhos entreabrem – suspira o herói. A blusinha de seda  escorregando maliciosa, deixando ver a pele nua do corpo danadinho.  A arte emoldurada -  garante o safadinho a si mesmo. Os botõezinhos de madrepérola revelam-se almas gêmeas à espera de qualquer  mão boba que ande, avance, oriente, caminhe, percorra, ensine, alise, rodopie e faça cócegas... O herói tremelica  só de lembrar.  – Um Deus que me acuda – sorri o convencido ali no quarto-e-sala na Rio Branco. O minhonzinho de coxas roliças no puro sorriso.  Água na boca. Um estupendo  filé do Moraes, esse  manjar dos deuses – afirma o heroizinho.  Comer com os olhos. Rã à milaneza do Parreirinha, o que aprecio por demais, reitera Andrázio,  já saboreando os pratos.   Hoje, hoje com Rosa Maria, matar a sede. Livrar-se dos botõezinhos: doze, onze, dez, nove, oito, sete, seis, cinco... ensaia  o petulante.  Rosa Maria  sorri  tagarelando aos quatro ventos:

- Alicinha, minha amiga,  não vai me perdoar nunca, Andrázio...Eu, quase nua,   a  bem dizer,  nuazinha,  aqui contigo nesse sofázinho da sala,  Andrázio! ...

Um quarto e sala na Rio Branco, o matadouro. O sofazinho da sala com o assento largo, sem o apoio dos braços,  o meu golpe – late, late, late,  o ferino: 

-  Ai, quem me dera!... Andrázio esperneia como um bobinho de nascença. 

Sou esse anjo de mim mesmo, sou um  desmilingüido, um  pateta com o corpo em brasa dormida e desativado dos nervos;   esse  é o meu calafrio que sinto na  espinha. Os olhos do herói seguem  testemunhas: indicam uma severa reflexão, coisa pouco comum diante daquela sua estupidez de sempre no dia-a-dia.  Andrázio constata a cena final do encontro; agora, agora transformando-se  numa besta emburrada. Um heroizinho mudo.  O Anjinho   em frangalhos, fora  do tempo e lugar. Bandeira a meio-pau!...  o galãzinho sofre um dia-martelo que bate, bate e bate, sem nunca  atingir a poesia!...Quem dera o amor antigo, único, não esse, desconfiado, que trucida  em golpes de nocaute. Abatido, o heroizinho  sente  a força dos punhos de Rosa Maria  em  seu queixo  de vidro. Ela, de pé, as mãos levantadas à espera do troféu.   Ele, Andrázio, nocauteado, franzininho que dói. Um a menos na sua triste história de vida. Mil ao contrário. Mil de tabaréu.  O herói, ali,  debruçadinho sobre si  mesmo; os olhinhos parados,  pesarosos e suplicantes, teimando em ver os botõezinhos de madrepérola enviesados, sorrateiros e displicentes ao entreaberto lento e medroso das suas  mãozinhas pouco ágeis. Taradinho, o que sou!...- tenta se convencer, o pobrezinho. Mas segue solitário, um  homenzinho abatido no matagal da memória, engolindo seco os prantos de uma viagem sem volta. Leoa no cio, Rosa Maria. Os olhos certeiros, guardando no odre mil verbos à espreita, milhares,  à espera de uma  paixão fulminante e  sem pressa. O herói, descaidinho, um surdo-mudo sem o dom de ler os lábios. Carente de linguagem, o infeliz. Bandeira a meio-pau.  Rosa Maria nua, nuazinha...o herói,  esse, sem gestos,  sem estilo e sem jeito. Um tropeção na areia. O penúltimo dos espermatozóides. Um quase-homenzinho sentindo o veneno do BHC invadindo-lhe  as veias – o herói aponta  o braço – o esquerdo -   Um veneninho lento, colorido de um azul-de-metileno que vai se espalhando, infiltrando sem dó e  piedade  nesse ar que tem  e teima – raciocina insosso.   Uma outra linguagem, o que preciso -  garante pra si mesmo, o que acha que necessita.  Aos poucos,  complementa  o herói,  julgando-se  consistente -   sou mesmo umas sílabas que não se encaixam.  Sinto e pressinto. Uma outra sintaxe o que sou:  surda-muda!  - Andrázio  comemora essa conclusão  em silêncio profundo. Depois, sorri por instantes,  mas segue  enfezadinho, deitadinho em curva como um feto  com  a cabeça  reclinada,  apoiando-se  nas almofadinhas de chita, amparado e acarinhado pelos  doces afagos da donzela que  lhe alisa os cachinhos de Anjo. O Anjinho dos catecismos...




Texto:  CELSO LOPES 







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