terça-feira, 24 de setembro de 2019

DUELO SOBRE A MESA Conto de Celso Lopes



ACADEMIA FEMININA MINEIRA DE LETRAS - AFEMIL 
CONCURSO ADÉLIA PRADO - Resultado.




               CONTO

1º LUGAR
TÍTULO: Retirantes
PSEUDÔNIMO: Amélia Greier
NOME: Carolina Cunha Pereira Frutuozo
CIDADE/ESTADO: São Carlos/SP

 2º LUGAR
TÍTULO: Sob a Sombra do Querer
PSEUDÔNIMO: Aedo dos Féaces
NOME: João Lisboa Cotta
CIDADE/ESTADO: Ponte Nova/MG

 3º LUGAR
TÍTULO: Duelo Sobre a Mesa
PSEUDÔNIMO: Mr. Olímpico
NOME: Celso Antônio Lopes da Silva
CIDADE/ESTADO: SP/SP

 MENÇÃO HONROSA
TÍTULO: Três Marias
PSEUDÔNIMO: Maria Terra
NOME: Geny Teodoro de Assis
CIDADE/ESTADO: RJ/RJ

 TÍTULO: Maria Bethânia
PSEUDÔNIMO: Luz Fernandez
NOME: Hermínia Emilia Prieto Martinez
CIDADE/ESTADO: Viçosa/MG

TÍTULO: Segredos no Armário
PSEUDÔNIMO: Santo Xavier
NOME: Luiz Carlos Giraçol Cichetto
CIDADE/ESTADO: Araraquara/SP





Leia o conto de Celso Lopes

DUELO  SOBRE A MESA  -  

Um dos peritos, impressionado pelo fulgor do embate, chegou a citar, textualmente,  “o caótico rio de pedras”,  narrado pelo escritor  Umberto Eco*. E não sem razão; há de se acreditar, insistia o perito,  que no auge desse enfrentamento imperioso, o interior de ambos seguia em contínua ebulição, certamente, revelando uma torrente furiosa, tal qual uma “correnteza de grandes rochas informes, placas irregulares, cortantes como lâminas, amplas como pedras tumulares (...). Aos olhos do perito, fora assim o duelo entre  Dona Branca e o Professor Pio. Quem os conheceu no dia a dia  informava que as desavenças entre ambos, não raro, surgiam  após um  silêncio profundo; nessas horas o ar ficava pesado e  fazia brotar,  às claras, um rancor íntimo desencavado. Foram encontrados, ali, sentados frente a frente na mesa da sala; cada qual em seu canto  com a cabeça curvada e apoiada sobre o braço;  o olhar de cada  um deles parecia,  certeiramente,  dirigido ao outro. Lá estavam,  inertes, até a descoberta. Cansado de ligar para os pais, o filho informou ao Zelador do prédio, e este,  pressentindo algo estranho, levou o caso  à  polícia, que, instantes depois, solicitou a abertura da porta e  posterior autópsia no local. O casal vivia há muitos anos naquele prédio do bairro. Ela, uma antiga professora de história; ele,  ex-chefe de laboratório de biologia da faculdade, onde se conheceram ainda bem jovens.  A perícia técnica apresentou anotações, laudos, infográficos  e fotos, destacando um considerável número de Palavras Cruzadas abertas; um Volume sisudo de cor marrom;  dois Dicionários que,   pelas digitais,  disseram, o Caldas Aulete seria o  da Mulher, e o Aurélio, o do Homem.  Os corpos, nesse, digamos  “repouso”, segundo o legista, datavam de pelo menos 24 horas,  o que indicaria o  “embate’ no dia anterior. A perícia indicou que as sandálias da Mulher deixaram rastros. Observou-se  que teria se deslocado até à cozinha, onde tomara café na térmica;  depois,  deteve-se  na estante da sala, de onde retirou o Volume marrom, que destacava na página interna, em letras grandes: “Instrumentos de Guerra da Antiguidade”. A perícia disse que  se tratava de  estratégias dos antigos exércitos, como o  “Apito da morte”, descrito, ali, como “um objeto sonoro criado pelos Astecas, que simulava  estridentes gritos  de pessoas em sofrimento,  induzindo os adversários a um estado de transe desesperador.”  Apanhado o livro,  Dona Branca  se dirigira  à mesa do embate.  Então, ali, o duelo teve início para ambos.  Cada qual com os seus compêndios de Cruzadas. Segundo os peritos, era quase possível “ver” a agilidade da Mulher no desafio das verticais e horizontais, sem dar tréguas ao adversário;  os registros indicaram ainda, que, num determinado instante, os olhos da Mulher foram  ao encontro dos olhos  do Homem.  O abalo causado por esse olhar, disseram os peritos, fragilizara o  oponente.  Nesse ponto, o laudo alertava sobre dois nomes  anotados no rodapé de uma das Cruzadas.  O primeiro, a palavra “buquê de flores”... o segundo,  o nome: “senhorita Rose”. O  perito assinala que poderia ter havido, ali,  indícios de um  triângulo amoroso. Ou uma falta grave e imperdoável do Homem,  pois a data indicava o aniversário de Dona Branca. Na praça de guerra,  o espalhamento das revistas indicava que a estratégia do Homem fora rápida e mantinha  rigorosa atenção nas armas de combate.  Ao Homem, sobravam-lhe  publicações relativas a  filmes, teatro, música,  biologia  e textos  sobre armas químicas. Novamente, “pressentia-se”  a voz  da Mulher explosiva  no território da disputa. Podia se ler com clareza uma das perguntas: “Animal mitológico associado à virgindade, tem a  forma de um cavalo com um único chifre frontal?”.   Bingo.  “Unicórnio”. Assim assinalara a Mulher.  Ao Homem,  restava-lhe o sofrimento diante de   uma  pergunta quase sussurrada: “- O  nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo?”. Segundo os peritos, os sinais mostravam, vivamente, que o professor Pio  estancara-se com a caneta no ar; sentia, naquele embate infernal, a Mulher apontando-lhe as  armas de Guerra. Aquelas tamanhas e poderosas, como a Catapulta, arma de ataque capaz de quebrar barreiras dos homens, especialmente, os encastelados  e protegidos em  cidades muradas.  Haveria de destruí-lo, caso ele persistisse. Lançaria sobre seu adversário as mais potentes armas,  que haveriam de liquidá-lo com pedras e  pedregulhos sobre o palácio.  Recuasse, portanto,  ou então,  receberia o golpe  mortal:  haveria de lhe atirar a maldição das  esposas incompreendidas!... Para os peritos,  a mente do Homem dirigira-o  para a área química. Ou ele a superaria ou haveria de viver  a maldição das esposas  abandonadas. O Homem sussurrava, exalando suor frio. Ele sentira o baque. Doeu-lhe a força desse punho gigante da Mulher à sua frente.  Por isso, olhava, agora, de dentro do seu próprio silêncio, para dona Branca,  enquanto  lançava  mão do seu  Aurélio:   O nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo!...   No entanto, as tentativas se mostraram  infrutíferas e o  silêncio fora  quebrado, apenas,  pela  retórica ascendente  da Mulher.   “ - o  Santo Graal também é chamado de.....?”.  Neste ponto,  os peritos adicionaram ao laudo:  “ na sala avolumada de  silêncio, podia ser percebido os contornos grandiosos dos olhos  do Homem e da Mulher,   como fossem eles, Dona Branca e o Professor Pio,  os guerreiros autênticos  das   antigas Cruzadas, os  soldados de Cristo.”.  Então, enquanto a Mulher já se  debruçava  nos desafios mais difíceis da sua  Coquetel Super,  um certo  vazio  se instalava  no ambiente.  Agora,  agora   as horizontais da Passatempo do Homem pediam ajuda aos deuses da sabedoria:  “ - Trepadeira comum em muros -  com quatro letras?  - A flor da idade, no sentido figurado -  com nove letras?”... Enquanto o Homem  entendia a  necessidade urgente dessas  respostas,  ela, a Mulher, garantem os peritos, ganhava distância  a olhos vistos. As palavras cruzadas exigem mais que  uma brincadeira, ironizava em seu silêncio, como se mostrasse a ele, ao Homem,  que as Cruzadas não brincam.  Então, a Mulher preparou-lhe  um  olhar fulminante,   repetindo o  que em  sua  mente captara há tempos:   “Lutar com palavras  é a luta mais vã.  Entanto,  lutamos  mal rompe a manhã(**)”. hghE pelo poder dessas palavras ditas,   prosseguiu   enfatizando  acusações, ironias e desatenção constante... Eis que, então, sob suas mãos, as palavras  ganharam formas definidas de ataque:  primeiro  as pontiagudas,  depois as  cortantes,   e por fim,  as explosivas... E assim, a Mulher  lançara, inapelavelmente,  sobre Homem, os seus escudos especiais. Ao Homem,  restava-lhe manter a distância adequada para não ser ferido de morte. Mas para sua festa surgiram os filmes, teatro, música,  artistas  e afins.  O Homem sorriu largo,  pois, se sentia novamente no páreo; E assim seguiu ele, devorando com gulodice as suas anotações:  - Em que cidade nasceu Yusuf Islam  ( conhecido como Cat Stevans?)   - Qual série de TV tinha como protagonista o Ator Peter Falk?  ... Como  previsto, o Homem avançou  três  compêndios e cinco páginas.  Mas, ainda era pouco.  Entretanto, com o rabo-dos-olhos ele percebeu que a incomodara.  A Mulher, ali, embatucara-se diante dos  símbolos químicos do Enxofre, Lítio, Bário, Cobalto, Cádmio, Carbono, Cobre....   Ele ouviu, sim,  a ênfase retórica,  insistente, carregada  de  nervosismo:  - Enxofre?.... Lítio?...A mente não lhe faltaria nessa hora – garantiu.   A  toxicidade das substâncias químicas dançava  à sua frente,  como um gás mostarda, cloro,  ácido cianídrico...  mas ele, ali,  definira-se pelo Napalm -   O  gel pegajoso e incendiário  que  haveria de atacá-la  aos moldes idênticos do seu uso nas guerras trágicas do  Vietnã, Laos e Camboja... A Mulher tremeu ao se deparar com essa arma incendiária... Mas o Homem jogou a toalha. Confessara a si mesmo. Não viveria a dor do engenheiro Jeff O. Stanford – Chefe do Laboratório Químico dos USA,  responsável pela preparação e envio do Napalm às frentes americanas, que experimentara  o grito antibélico do mundo na própria pele; e culpando a  si mesmo  pelo genocídio,  suicidara.  Diante dessa derrocada,   novamente a Mulher ganharia a dianteira: - Península que abriga a Grécia e a Croácia?  - Nome de Deuses da Mitologia Grega?  ...E, então,  decidida  a trucidá-lo, sem perdão,  tomou para si as armas decisivas.  Com destreza e maestria, Dona Branca apossara-se dos Estrepes e Culverins; segundo os peritos,  “armas medievais atiradas  contra a  cavalaria inimiga”. Desviando desse campo minado,  o Homem seguia titubeando nas garras do abecedário: - Substância encontrada em vegetais, de grande importância  para o funcionamento do intestino?. Os passos  seguintes formariam a barreira implacável. O Homem sofria a cada pergunta que preferia  não ouvir:   - O maior império do mundo (em duração)? - Rei pagão denominado pelos judeus como o Messias?... As muralhas e fortificações,  postas ao chão naquela guerra,  levaram-no à rendição. O ar lhe faltava – disseram os legistas. Portanto, ele se acomodara sobre a mesa, com a cabeça inclinada no braço curvado, e o olhar, certeiramente, nas pupilas da Mulher.  E então,  a Mulher, com sua respiração ofegante naquele campo de batalha sangrenta,  em que vencera  o homem encastelado, naquela luta, silenciosamente inumana, reconhecera no  antagonista, conforme a perícia,  reconhecera nele, um guerreiro, alguém de valor  e  à altura. O que a  levara à rendição definitiva.  O ar lhe faltava – disseram os exames. Portanto, também ela, Dona Branca,  acomodara-se na mesa com a cabeça inclinada sobre o braço curvado, e o  olhar, o olhar certeiramente dirigido às retinas do professor Pio!... Para fortalecer a narrativa técnica, o perito retomaria o “caótico rio de pedras”, criando, aleatoriamente,  o seu  apoteótico final:  “nenhuma voz humana podia se fazer ouvir naquele instante fatal sobre o duelo na mesa;  embora ambos, ali,  tivessem o desejo de falar, de se despedirem de toda a carga de emoção que arrastavam consigo havia horas, não conseguiriam. O ‘rio de pedras’ interior que os conduzia, enfurecia-se cada vez mais, levando tudo ao redor  para as invisíveis vísceras da terra, pulverizando cascalhos, blocos e rochas para exprimir, talvez,  a impotência maior  do Homem e da Mulher.”  


Nota:  (*) Umberto Eco – Confissões de um jovem romancista. Ed. Record/2018.

 (**)   Versos do poema    “O Lutador” – Carlos Drummond de Andrade.  



















quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Sonâmbulo - microconto Piracicaba2019


Parte inferior do formulário
·         Concurso Microcontos de Humor,Destaque   4 de julho de 2019

A Prefeitura do Município de Piracicaba, por meio da SemacTur (Secretaria Municipal da Ação Cultural e Turismo), CEDHU Piracicaba (Centro Nacional de Humor Gráfico) e Biblioteca Pública Municipal “Ricardo Ferraz de Arruda Pinto”, anuncia os vencedores do9º Concurso Microcontos de Humor de Piracicaba 2019:   
As obras serão reunidas na antologia do concurso, que estará disponível para download gratuito em breve, no site da Biblioteca.A nona edição do Microcontos de Humor de Piracicaba recebeu 493 inscrições. Foram representados 27 estados brasileiros. Do exterior, vieram textos dos Estados Unidos, França, Japão e Portugal. Os piracicabanos e piracicabanas participaram com 49 microcontos.
A Comissão Organizadora parabeniza os vencedores e selecionados, e agradece por todas as inscrições enviadas. Nossa gratidão aos amigos e amigas, parceiros e parceiras de sites, blogs e redes sociais que nos ajudaram a divulgar mais uma edição do Microcontos em todo Brasil e também no exterior. Nosso muito obrigado!  Comissão Organizadora
Microcontos vencedores
1º Lugar: Isomorfose (Kafta) – Marcelo Rocha | São Borja/RS
Certa manhã, ao despertar de um pesadelo, W. encontrou-se transformado em algo tão terrível quanto inseto: um ministro.
2º Lugar: Carma – Carlos Carvalho Cavalheiro | Sorocaba/SP
Guru em preleção:
– Alguém sabe como se adquire carma?
O caipira na assistência:
– Com chá de capim cidrão.
3º Lugar: Localizado – Márcio Fernando Silveira | São Paulo/SP
Depois de horas perdido na mata, ficou feliz em ouvir o som de passos se aproximando. A onça também.
Selecionados  (diversos) 

Sonâmbulo – Celso Lopes | SP


" Hoje passei o dia ouvindo cobras e lagartos. À noite, um por um,
matei todos os carneirinhos".







A viagem - conto - menção honrosa Concurso Paulo Setubal 2019


Prezados(as) 
A Comissão do Concurso Paulo Setúbal encaminha a V. Sªs., anexo, o tabloide com os vencedores do Certame 2019. A Cerimônia de Entrega da Premiação foi realizada na sexta, 02 de agosto às 19h no Teatro Procópio Ferreira, onde foram apresentados todos os contemplados. Gostaríamos de cumprimentar a todos os participantes que permitiram o sucesso do Concurso Paulo Setúbal 2019.   Nesse link a divulgação realizada pelo site da Prefeitura de Tatuí, conforme previsto no edital. 
-- 
Museu Histórico Paulo Setúbal
Praça Manoel Guedes, 98
CEP 18270-300 - Tatuí/SP
(15) 3251.4969
anexos
·

PREFEITURA REALIZA PREMIAÇÃO DOS VENCEDORES DOS CONCURSOS PAULO SETÚBAL 2019
 Vencedores do "Concurso Paulo Setúbal" foram conhecidos na sexta, durante cerimônia de premiação no Teatro "Procópio Ferreira", do Conservatório de Tatuí.     O "17º Prêmio Literário Paulo Setúbal – Contos, Crônicas e Poesias", de abrangência nacional, bem como o "Prêmio Galardão", uma honraria recebida por Paulo Setúbal na Academia Brasileira de Letras, destinado única e exclusivamente a obras de autores nascidos ou residentes há dois anos, ou mais, no município de Tatuí, premiou os seguintes vencedores em cada categoria: - Conto: - 1º lugar, recebeu certificado, troféu e premiação no valor de R$ 2.000,00: Umero Card'Oso, de São José dos Campos/SP, com a obra "Lia de Itamaracá e o Circovolante". - 2º lugar, recebeu certificado, troféu e premiação no valor de R$ 1.000,00: Tatiana Alves Soares, do Rio de Janeiro/RJ, com a obra "Destino Ignorado". - 3º lugar, recebeu certificado, troféu e premiação no valor de R$ 500,00: Carlos Aparecido de Souza de Amorim, de São José dos Campos/SP, com a obra "Não Olhe para Trás". - Prêmio Galardão, recebeu certificado, troféu e premiação no valor de R$ 500,00: Alexandre Lopes da Silva, Aparecido de Oliveira Cardoso, de Tatuí/SP, com a obra "Bella Vista". - Menção Honrosa para Celso Lopes /SP, com a obra "A Viagem".    Leia o CONTO:

“A VIAGEM”



“ O próprio desejo é viagem, expatriação, saída do meu lugar.”
                                                   Francis Affergarn - Exotisme et altérité -  Paris/PUF/1987



Aquela madrugada fluía solta e movimentada no vilarejo.  Logo, o clarão anunciaria  mais uma daquelas  manhãs quentes de verão e o final de mais uma  noite. Entretanto  para Nirollez, o músico, o significado da palavra ‘fim’ era um reencontro;  uma forma de se penitenciar;  ‘fim’ era o seu próprio desafio para se livrar de um sentimento de culpa que carregara durante toda a sua existência, ao se apegar, desmedidamente, no bem que mais apreciava na vida:  a  música... a música clássica!... Por isso,  àquela hora,  assim como quem nos oferecesse um concerto ainda  sob a luz do  luar, Nirollez surgia com  o  som poderoso  do seu recente instrumento, o Sax MC VI, a jóia rara dos aficcionados,  e passara  a comandar  uma sinfonia sonora naquela pequena rua do arraial de pescadores. E o  que víamos e ouvíamos era algo inusitado e envolvente: pouco a pouco, conforme avançava, com passos lentos e firmes, Nirollez, o músico, conseguira a proeza de instalar o silêncio onde jamais imaginávamos, pois, ali,   diante de todos nós,  fizera  emergir e  reverberar uma sonoridade  tonitruante,  estupenda,  arrancada do seu mágico Saxofone.   A rua do vilarejo já dava mostras de que seria num futuro próximo, uma espécie de passarela aberta às mais diversas tribos e personalidades alternativas.  Uma rua cosmopolita, de turismo planetário, ou como se diz, hoje, no jargão local:  a Esquina do Mundo!...
E lá  estava Nirollez. A cada passo, em sua execução, nada, ali,  parecia cercear as intenções do  intérprete em seu contínuo movimento de seguir em frente. Nada, ali, a impedi-lo  no  provocante  uso que fazia  daquela brilhante  improvisação ao fazer a travessia daquela rua com seu poderoso Sax.  Nirollez, o músico,  entregava-nos tudo isso de mão beijada  num contínuo processo de criação  e recriação.  Os acordes instigantes, catárticos, mais pareciam gritar para que ouvíssemos a sua  história. Era o que Nirollez parecia nos dizer,  ali, desfilando à nossa frente.   E se o espírito do jazz está em pensá-lo  como uma linguagem, como  algo que nos lava a alma, e  nos leva à alma a sua origem, o que se ouvia no improviso do jazzista era a sua maneira de nos  conduzir,  de se expiar em culpas à frente daquele público... Era visto que tudo ali era urgente  Por isso, inevitável como a noite que surgia atropelando, Nirollez  seguia impregnando-nos  o seu ímpeto diante do belo e do prazer,  de  um jeito  único, como se ouvíssemos ali,  a voz  dissonante  de “Lester Young”, a nos dizer e a nos intimar:  “ Escutem, eis aqui a  minha história!... Ouçam!..Ouçam, todos!...”.  O sax  de  Nirolllez   ‘cantava’ com as  raízes do  próprio jazz,   com a  origem e influências, como se ali fosse ele, Nirollez, o talentoso e criativo “Charles Parker” arrastando-nos  de uma  forma inovadora, o que  tornava tudo aquilo para nós,  uma espécie de  ‘Nirollez/Parker’, dois  ícones da  beat generation!...Nem mesmo um olhar mais atento poderia indicar que  à nossa frente,  turistas pioneiros,  estava o maestro Nirollez, um homem acostumado ao reconhecimento do público em seu país, e não somente nos teatros locais como também nas principais casas da Europa; Algumas  evidências de seu desconforto com a música clássica surgiram em sua última récita, quando mal acabara de se curvar, agradecendo aos aplausos pela regência da sua ópera, “1984”, baseada no texto do escritor George Orwell,  e já deixava, apressadamente, sem dizer mais nada,  o pomposo teatro municipal portenho. Impossível não imaginar a situação que criara  ao seu empresário, à esposa, aos dois filhos, aos amigos, e principalmente,  ao seu  público seleto e fiel  que, inevitavelmente, sentiria, para sempre,  a sua ausência. Instantes  depois  dessa ‘performance’ colossal na capital Argentina,   Nirollez  já ocupava um lugar  à bordo de um ônibus da Pluma, em direção à cidade do  Rio de Janeiro, onde, ao chegar,  seguiria  de táxi até o aeroporto Santos Dumont,  para embarcar num vôo que  o levaria até  Ilhéus, na Bahia.  Da terra do escritor Jorge Amado, seguiria   para o vilarejo, seu destino final,  anexo à  cidade de Porto Seguro.
Por certo,  no vôo passara em retrospectiva a sua vida  e a sua história  de um dos  mais prestigiados maestros de todos os tempos. É certo que se mantivera avesso aos grandes festivais como Woodstock, Altamont, Monterey e outros,  em que  surgiram novos expoentes da musica mundial, como  Jimi Hendrix  e  Janis Joplin;  confessava-nos, naquela travessia,  que  ouvira, sim,  o refrão que todos sabiam existir em   Lucy in the sky with diamonds... e, claro, acompanhara  todas as intenções de alegoria ao LSD. E então, perguntaria  a si mesmo: por que acreditar nessa história jovem, nesse poder jovem?...    Mas fora diante dos movimentos políticos dos anos 60, em especial,  o “maio de 68” francês, que Nirollez balançara. Sim, entendia os protestos estudantis como reivindicações por um ensino melhor, entretanto,  vira o desencadear de uma greve geral  de dez milhões de pessoas...  Não, não era apenas o ‘é proibido proibir’, ou as palavras de ordens ‘queremos o impossível’...  Não, 68 apresentara-se como uma brecha na história, e fora capaz de  colocar em xeque a  sociedade que se pensara até então...  Nirollez entendera, sim, que o mundo reagira com uma grande recusa, em  que ‘os de cima não conseguiam mais  mandar, e os que estavam embaixo não queriam de forma alguma  obedecer’.. Sim, era o  ano de se  recusar a tudo.Um grito lancinante ecoava no  planeta.  Mas Nirollez também  vira  chegar o  “The dream is over”, o sonho daqueles jovens  chegara ao fim, carregando as utopias todas e  os  seus comandantes...  Vivenciando a travessia,   Nirollez   reiterava para si, o desafio de  romper de vez com tudo o que aprendera e ganhara como intérprete da música clássica mundial;  a ordem agora era livrar-se dos limites,  das notas,  dos horários e  das agendas...  Nirollez  elegera, portanto,  o jazz,  para lhe carregar a vida;  descobrira  que o sax impunha-se à  improvisação necessária, o nunca estivera presente em sua formação sisuda e acadêmica.  Nirolezz,  naquela madrugada,  rasgava todas as  partituras e harmonias... Agora, ali, no pequeno  vilarejo, dedicava a si  mesmo,   um  excesso de cuidados para não revelar  referências ao seu  passado.   Por vezes,  à beira-mar, via-se  com a areia nas mãos, como uma  interminável  ampulheta  que lhe mostrava o tempo e  a sua fluidez.  Foram dias ali,  até o momento em  que uma coragem  maior lhe sobrepôs de uma forma  jamais vista ou sentida... Como algo inevitável, a música pulsou-lhe novamente  nas veias, saltou-lhe aos poros e explodiu em sua mente.  Agora, ali, pela primeira vez,   olhara sem culpa o  sax MC VI, que jamais tocara,   e encarou-o  com algo necessário à  sua própria razão de viver;  o passo seguinte fora decisivo:  com as  mãos protegendo a chama  da brisa marinha,  Nirollez  faria  surgir as  labaredas que  pouco a pouco  engoliriam  todos  os  registros e  documentos do grande músico que fora. À beira-mar,  faria morrer,  burocraticamente,   o maestro  Nirollez,  e emergir o seu novo ser, um novo ser naquela terra  encantada.   Hoje, Nirollez colocava em prática a sua transgressão tardia, entretanto, sincera. Purificava-se da sua culpa, buscava, ali,  um reparação existencial,   pois mantivera-se à margem, fora impassível, fugira à luta quando escolhera todas as benesses do establishement... Pois agora, que lhe deixassem seguir, pagar o preço, sofrer o que lhe era imponderável...  Os  improvisos  do músico Nirollez, com  seu  sax  MC VI  já  ganhavam distância na travessia da rua;  deixavam  para traz o bar Chaparrals e as portas do  Manda-brasa,  de onde se desvendava a estradinha que seguia em direção à praia... Os improvisos do músico Nirollez  com o seu  sax MC VI  passaram a  comandar a sinfonia, não apenas de uma rua, mas de um caminho que nos levava,  a todos,  em direção ao mar... Nirollez seguia como quem cumprisse uma simples desarmonia vivida naquela madrugada ... Os seus pés,  pouco a pouco,  já tocavam a areia, atingindo lentamente o quebra-mar,  ainda  leve, calmo, raso, movediço... A sua  música rivalizava-se com o bramir das ondas, dimensionava à altura, como numa audição  em seu  ápice melódico, capaz de  expandir o espaço, a superfície e a profundidade... levando o jazzista a seguir improvisando acordes e timbres  em direção aos arrecifes, onde o clarão metálico  do seu sax, sob uma intensa luz do luar, ia indo, seguindo, avançando o horizonte até  onde a água  interpunha-se   à  vista da gente, até onde  um sexto sentido nos indicava que aquela noite engolira para sempre o maestro Nirollez... Até a gente sentir na própria pele  que o mar, o maestro e o MC VI,  em verdade,  uniram-se como uma  só coisa, num só corpo,  em uníssono!...


Nota:   “A Viagem” é uma narrativa ficcional.  “NIROLLEZ”   é um  anagrama imperfeito de ‘Lorin Maazel’ –  maestro norte-americano, estrela de primeira grandeza na música clássica, a quem  é dedicado este  conto.