terça-feira, 24 de setembro de 2019

DUELO SOBRE A MESA Conto de Celso Lopes



ACADEMIA FEMININA MINEIRA DE LETRAS - AFEMIL 
CONCURSO ADÉLIA PRADO - Resultado.




               CONTO

1º LUGAR
TÍTULO: Retirantes
PSEUDÔNIMO: Amélia Greier
NOME: Carolina Cunha Pereira Frutuozo
CIDADE/ESTADO: São Carlos/SP

 2º LUGAR
TÍTULO: Sob a Sombra do Querer
PSEUDÔNIMO: Aedo dos Féaces
NOME: João Lisboa Cotta
CIDADE/ESTADO: Ponte Nova/MG

 3º LUGAR
TÍTULO: Duelo Sobre a Mesa
PSEUDÔNIMO: Mr. Olímpico
NOME: Celso Antônio Lopes da Silva
CIDADE/ESTADO: SP/SP

 MENÇÃO HONROSA
TÍTULO: Três Marias
PSEUDÔNIMO: Maria Terra
NOME: Geny Teodoro de Assis
CIDADE/ESTADO: RJ/RJ

 TÍTULO: Maria Bethânia
PSEUDÔNIMO: Luz Fernandez
NOME: Hermínia Emilia Prieto Martinez
CIDADE/ESTADO: Viçosa/MG

TÍTULO: Segredos no Armário
PSEUDÔNIMO: Santo Xavier
NOME: Luiz Carlos Giraçol Cichetto
CIDADE/ESTADO: Araraquara/SP





Leia o conto de Celso Lopes

DUELO  SOBRE A MESA  -  

Um dos peritos, impressionado pelo fulgor do embate, chegou a citar, textualmente,  “o caótico rio de pedras”,  narrado pelo escritor  Umberto Eco*. E não sem razão; há de se acreditar, insistia o perito,  que no auge desse enfrentamento imperioso, o interior de ambos seguia em contínua ebulição, certamente, revelando uma torrente furiosa, tal qual uma “correnteza de grandes rochas informes, placas irregulares, cortantes como lâminas, amplas como pedras tumulares (...). Aos olhos do perito, fora assim o duelo entre  Dona Branca e o Professor Pio. Quem os conheceu no dia a dia  informava que as desavenças entre ambos, não raro, surgiam  após um  silêncio profundo; nessas horas o ar ficava pesado e  fazia brotar,  às claras, um rancor íntimo desencavado. Foram encontrados, ali, sentados frente a frente na mesa da sala; cada qual em seu canto  com a cabeça curvada e apoiada sobre o braço;  o olhar de cada  um deles parecia,  certeiramente,  dirigido ao outro. Lá estavam,  inertes, até a descoberta. Cansado de ligar para os pais, o filho informou ao Zelador do prédio, e este,  pressentindo algo estranho, levou o caso  à  polícia, que, instantes depois, solicitou a abertura da porta e  posterior autópsia no local. O casal vivia há muitos anos naquele prédio do bairro. Ela, uma antiga professora de história; ele,  ex-chefe de laboratório de biologia da faculdade, onde se conheceram ainda bem jovens.  A perícia técnica apresentou anotações, laudos, infográficos  e fotos, destacando um considerável número de Palavras Cruzadas abertas; um Volume sisudo de cor marrom;  dois Dicionários que,   pelas digitais,  disseram, o Caldas Aulete seria o  da Mulher, e o Aurélio, o do Homem.  Os corpos, nesse, digamos  “repouso”, segundo o legista, datavam de pelo menos 24 horas,  o que indicaria o  “embate’ no dia anterior. A perícia indicou que as sandálias da Mulher deixaram rastros. Observou-se  que teria se deslocado até à cozinha, onde tomara café na térmica;  depois,  deteve-se  na estante da sala, de onde retirou o Volume marrom, que destacava na página interna, em letras grandes: “Instrumentos de Guerra da Antiguidade”. A perícia disse que  se tratava de  estratégias dos antigos exércitos, como o  “Apito da morte”, descrito, ali, como “um objeto sonoro criado pelos Astecas, que simulava  estridentes gritos  de pessoas em sofrimento,  induzindo os adversários a um estado de transe desesperador.”  Apanhado o livro,  Dona Branca  se dirigira  à mesa do embate.  Então, ali, o duelo teve início para ambos.  Cada qual com os seus compêndios de Cruzadas. Segundo os peritos, era quase possível “ver” a agilidade da Mulher no desafio das verticais e horizontais, sem dar tréguas ao adversário;  os registros indicaram ainda, que, num determinado instante, os olhos da Mulher foram  ao encontro dos olhos  do Homem.  O abalo causado por esse olhar, disseram os peritos, fragilizara o  oponente.  Nesse ponto, o laudo alertava sobre dois nomes  anotados no rodapé de uma das Cruzadas.  O primeiro, a palavra “buquê de flores”... o segundo,  o nome: “senhorita Rose”. O  perito assinala que poderia ter havido, ali,  indícios de um  triângulo amoroso. Ou uma falta grave e imperdoável do Homem,  pois a data indicava o aniversário de Dona Branca. Na praça de guerra,  o espalhamento das revistas indicava que a estratégia do Homem fora rápida e mantinha  rigorosa atenção nas armas de combate.  Ao Homem, sobravam-lhe  publicações relativas a  filmes, teatro, música,  biologia  e textos  sobre armas químicas. Novamente, “pressentia-se”  a voz  da Mulher explosiva  no território da disputa. Podia se ler com clareza uma das perguntas: “Animal mitológico associado à virgindade, tem a  forma de um cavalo com um único chifre frontal?”.   Bingo.  “Unicórnio”. Assim assinalara a Mulher.  Ao Homem,  restava-lhe o sofrimento diante de   uma  pergunta quase sussurrada: “- O  nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo?”. Segundo os peritos, os sinais mostravam, vivamente, que o professor Pio  estancara-se com a caneta no ar; sentia, naquele embate infernal, a Mulher apontando-lhe as  armas de Guerra. Aquelas tamanhas e poderosas, como a Catapulta, arma de ataque capaz de quebrar barreiras dos homens, especialmente, os encastelados  e protegidos em  cidades muradas.  Haveria de destruí-lo, caso ele persistisse. Lançaria sobre seu adversário as mais potentes armas,  que haveriam de liquidá-lo com pedras e  pedregulhos sobre o palácio.  Recuasse, portanto,  ou então,  receberia o golpe  mortal:  haveria de lhe atirar a maldição das  esposas incompreendidas!... Para os peritos,  a mente do Homem dirigira-o  para a área química. Ou ele a superaria ou haveria de viver  a maldição das esposas  abandonadas. O Homem sussurrava, exalando suor frio. Ele sentira o baque. Doeu-lhe a força desse punho gigante da Mulher à sua frente.  Por isso, olhava, agora, de dentro do seu próprio silêncio, para dona Branca,  enquanto  lançava  mão do seu  Aurélio:   O nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo!...   No entanto, as tentativas se mostraram  infrutíferas e o  silêncio fora  quebrado, apenas,  pela  retórica ascendente  da Mulher.   “ - o  Santo Graal também é chamado de.....?”.  Neste ponto,  os peritos adicionaram ao laudo:  “ na sala avolumada de  silêncio, podia ser percebido os contornos grandiosos dos olhos  do Homem e da Mulher,   como fossem eles, Dona Branca e o Professor Pio,  os guerreiros autênticos  das   antigas Cruzadas, os  soldados de Cristo.”.  Então, enquanto a Mulher já se  debruçava  nos desafios mais difíceis da sua  Coquetel Super,  um certo  vazio  se instalava  no ambiente.  Agora,  agora   as horizontais da Passatempo do Homem pediam ajuda aos deuses da sabedoria:  “ - Trepadeira comum em muros -  com quatro letras?  - A flor da idade, no sentido figurado -  com nove letras?”... Enquanto o Homem  entendia a  necessidade urgente dessas  respostas,  ela, a Mulher, garantem os peritos, ganhava distância  a olhos vistos. As palavras cruzadas exigem mais que  uma brincadeira, ironizava em seu silêncio, como se mostrasse a ele, ao Homem,  que as Cruzadas não brincam.  Então, a Mulher preparou-lhe  um  olhar fulminante,   repetindo o  que em  sua  mente captara há tempos:   “Lutar com palavras  é a luta mais vã.  Entanto,  lutamos  mal rompe a manhã(**)”. hghE pelo poder dessas palavras ditas,   prosseguiu   enfatizando  acusações, ironias e desatenção constante... Eis que, então, sob suas mãos, as palavras  ganharam formas definidas de ataque:  primeiro  as pontiagudas,  depois as  cortantes,   e por fim,  as explosivas... E assim, a Mulher  lançara, inapelavelmente,  sobre Homem, os seus escudos especiais. Ao Homem,  restava-lhe manter a distância adequada para não ser ferido de morte. Mas para sua festa surgiram os filmes, teatro, música,  artistas  e afins.  O Homem sorriu largo,  pois, se sentia novamente no páreo; E assim seguiu ele, devorando com gulodice as suas anotações:  - Em que cidade nasceu Yusuf Islam  ( conhecido como Cat Stevans?)   - Qual série de TV tinha como protagonista o Ator Peter Falk?  ... Como  previsto, o Homem avançou  três  compêndios e cinco páginas.  Mas, ainda era pouco.  Entretanto, com o rabo-dos-olhos ele percebeu que a incomodara.  A Mulher, ali, embatucara-se diante dos  símbolos químicos do Enxofre, Lítio, Bário, Cobalto, Cádmio, Carbono, Cobre....   Ele ouviu, sim,  a ênfase retórica,  insistente, carregada  de  nervosismo:  - Enxofre?.... Lítio?...A mente não lhe faltaria nessa hora – garantiu.   A  toxicidade das substâncias químicas dançava  à sua frente,  como um gás mostarda, cloro,  ácido cianídrico...  mas ele, ali,  definira-se pelo Napalm -   O  gel pegajoso e incendiário  que  haveria de atacá-la  aos moldes idênticos do seu uso nas guerras trágicas do  Vietnã, Laos e Camboja... A Mulher tremeu ao se deparar com essa arma incendiária... Mas o Homem jogou a toalha. Confessara a si mesmo. Não viveria a dor do engenheiro Jeff O. Stanford – Chefe do Laboratório Químico dos USA,  responsável pela preparação e envio do Napalm às frentes americanas, que experimentara  o grito antibélico do mundo na própria pele; e culpando a  si mesmo  pelo genocídio,  suicidara.  Diante dessa derrocada,   novamente a Mulher ganharia a dianteira: - Península que abriga a Grécia e a Croácia?  - Nome de Deuses da Mitologia Grega?  ...E, então,  decidida  a trucidá-lo, sem perdão,  tomou para si as armas decisivas.  Com destreza e maestria, Dona Branca apossara-se dos Estrepes e Culverins; segundo os peritos,  “armas medievais atiradas  contra a  cavalaria inimiga”. Desviando desse campo minado,  o Homem seguia titubeando nas garras do abecedário: - Substância encontrada em vegetais, de grande importância  para o funcionamento do intestino?. Os passos  seguintes formariam a barreira implacável. O Homem sofria a cada pergunta que preferia  não ouvir:   - O maior império do mundo (em duração)? - Rei pagão denominado pelos judeus como o Messias?... As muralhas e fortificações,  postas ao chão naquela guerra,  levaram-no à rendição. O ar lhe faltava – disseram os legistas. Portanto, ele se acomodara sobre a mesa, com a cabeça inclinada no braço curvado, e o olhar, certeiramente, nas pupilas da Mulher.  E então,  a Mulher, com sua respiração ofegante naquele campo de batalha sangrenta,  em que vencera  o homem encastelado, naquela luta, silenciosamente inumana, reconhecera no  antagonista, conforme a perícia,  reconhecera nele, um guerreiro, alguém de valor  e  à altura. O que a  levara à rendição definitiva.  O ar lhe faltava – disseram os exames. Portanto, também ela, Dona Branca,  acomodara-se na mesa com a cabeça inclinada sobre o braço curvado, e o  olhar, o olhar certeiramente dirigido às retinas do professor Pio!... Para fortalecer a narrativa técnica, o perito retomaria o “caótico rio de pedras”, criando, aleatoriamente,  o seu  apoteótico final:  “nenhuma voz humana podia se fazer ouvir naquele instante fatal sobre o duelo na mesa;  embora ambos, ali,  tivessem o desejo de falar, de se despedirem de toda a carga de emoção que arrastavam consigo havia horas, não conseguiriam. O ‘rio de pedras’ interior que os conduzia, enfurecia-se cada vez mais, levando tudo ao redor  para as invisíveis vísceras da terra, pulverizando cascalhos, blocos e rochas para exprimir, talvez,  a impotência maior  do Homem e da Mulher.”  


Nota:  (*) Umberto Eco – Confissões de um jovem romancista. Ed. Record/2018.

 (**)   Versos do poema    “O Lutador” – Carlos Drummond de Andrade.  



















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