Come-cru carregava na sua ficha criminal um dos mais ousados planos de fuga do presídio.
Uma ação frustrada, no entanto, pois centenas
de detentos foram soterrados pela queda das paredes de um túnel estratégico. Somado a isso, liderou um
enfrentamento no pavilhão 3, o forno,
diante da truculência do Comandante Benhur – o Dá-Sem-Dó - que totalizou, ali,
mais de 80 corpos inertes pelos corredores da unidade. E ainda que tenha tido saldo negativo, Come-cru ganhara respeito no comando do tráfico – afinal,
conseguiria (não fosse o desabamento), colocar fora dos muros do
presídio mais de 200 ponta-firmes para uma nova célula local. É sabido que, ainda criança, já se
destacava pela ousadia nas brincadeiras
de Salva-cadeia, enganando a todos com sua perspicácia e
impondo sua fúria contra aquela infame prisão do imaginário infantil: “- Liberdade
para todos! ” gritava eufórico,
dando o salvo-conduto para toda a meninada da rua. Tempos depois, o sistema prisional – afeito a
possibilidades diversas, entre elas, a compra da própria liberdade - facilitaria
a saída de Come-cru, que ganhou a rua e escafedeu-se pelas
periferias da cidade. Entretanto, jamais
voltaria para a cadeia – foi o que disseram!... E durante todo o tempo em que ficamos à sua mercê, ele, ele próprio, encarregou-se de tramar o nosso destino de vida ou morte!...
Eu sabia que os olhos do Come-cru
estavam ali e nos seguiam desde que pisamos naquela travessa. Olhos de águia - ele disse.
Ele, o Zóinho, o Segundo, o braço
direito do Chefe, conforme esclareceu. “Devagar”
- eu dizia para o Escritor, observando o
clima tenso. “Devagar” – eu disse com a minha voz precavida - eles
estão nos cercando por todos os lados; as
motos circulam espertas e os motoqueiros
rodopiam as cabeças nos capacetes, com os olhos focados em nós, os invasores... Ignorando
o meu receio, o Escritor seguia
interrogando os moradores: - Sabe quem é Jacques Brel? Diante da
negativa, ele apresentava o cantor e a sua
história de vida. Ao final da rua, onde
o esgoto se transformava num pântano lamacento
que invadia os quintais, quando já íamos
entrar no táxi de volta, eles chegaram em número de cinco ou seis, dando logo as coordenadas de boas-vindas: - Come-cru, disse o Zóinho, o Segundo, o braço direito do
Chefe, Come-cru carrega pra onde vai, o binóculo Nikon
Cross Country, telescópico – na
certa, agora, faz sua mira sobre todos nós aqui. E ele está lá, naquela laje ou naquela
outra... Zóinho, o Segundo, indicava, apontava
e garantia: Come-cru
mantém os olhos sobre nós – informação essa que nos
adiantara o taxista Walter, que nos conduziu ao território sob a lei do chefão – A travessa Jacques Brel, no
bairro Jardim Cereja!... Come-cru
sempre teve pressa, disse o Segundo – e completou - mas, nunca, nunca comia cru,
nunca comeu cru!.. – O Assistente, o braço direito, apontou para o
alto, à direita – Ali, insistiu, ali
está o quartel general do Chefe, disse Zóinho, o Segundo na hierarquia. E quem é ele? Se o Senhor
pergunta, eu respondo: - tem pra mais de um metro e oitenta, bem troncudo, cara enfezada, lutou boxe muito tempo e não deu sossego, nocauteou e colocou muito valentão pra beijar a lona, o
Come-cru; Esperto desde menino – a mãe, ainda vive aqui na
Comunidade e confirma tudo. O nome dele
é Juce, quer dizer, o apelido; o nome de
batismo é Júlio César – homenagem a um general romano, ela disse. Ela mesma
disse que juntou o JU de Júlio, com o
CE
de César – daí, JUCE!... E muito tempo
depois, na prisão, seria o Come-cru, o que carrega a tatuagem do filho e
de uma paixão que escorregou pra vala comum faz tempo. No rosto, uma cicatriz de faca, mas Come-cru
passou o cara no tempero do presídio... Hoje, aqui, ele manda, manda e desmanda, e faz as perguntas... Ele quer que o senhor tenha as
respostas, certo? Então, tá pela ordem? ... Quem são vocês? Gente da polícia? São caguetas?
Informantes? Fiscal do governo? da Prefeitura?... Vão chegando, assim, entrando, a bem dizer, entrando no bairro, na casa da gente, tirando fotos, falando com quem tá quieto... E o táxi branco, só ali seguindo,
de butuca...e aí um diz que é Escritor e o outro, acompanhante? E escreve o quê,
mermão? Tem um livro aí pra gente ver?....O Escritor nessa hora entregou o livro. Zóinho, o Segundo, folheou rápido e
inocente. O nome é esse mesmo? - Glória
partida ao meio?... E o tal de Jaque,
da rua, da travessa, onde entra
nessa história, mermão? ... Tá confuso,
compadre!... Então vem dois de fora, faz
fotos, faz perguntas... a troco de
quê?... de nada?!... Tá pela ordem, isso?!
Antes de chegarmos, nosso táxi seguia um caminho de difícil acesso, e ainda pontuado pelas perguntas do Walter: – Vocês dois, fazer o quê na
travessa Jacques Brel? O Escritor esclareceu
ao Walter, fazendo referência ao livro,
o segundo que escreveria sobre o cantor,
por isso, queria fotos daquela rua, da travessa que lhe faz
homenagem, pra levar, pessoalmente, em
visita, à Fundação Jacques Brel
na capital francesa. “ - Estamos quase chegando, chefia!...”.
O taxista confortava-nos, mas logo nos alertava para o beco-sem-saída à
nossa frente: a travessa Jacques Brel;
Walter conhecia o local, mas
evitava se arriscar – Afinal, confessou-nos
- foi policial civil há muito tempo – deixara a farda e ganhava a vida no táxi. Por isso, melhor falar com o filho, que também é taxista. E logo colocou o celular no viva-voz: - Oi,
Filho... tô indo no Cereja, levo um Escritor
e um amigo dele... barra pesada, lá, foi
o que eu disse, não é?!... “- Tá doido, meu Pai... deixa os caras na rua de cima e pronto!!!...” - Não
disse? ... o menino conhece os mocós... Ali, meu chapa, o mais bonzinho estapeia
a mãe no tanque, podes crer!...E ali tem
dono – o Come-cru – o Cereja tá na
paz... eu acho que tá, mas tá nas mãos dele!... Zóinho, o Segundo, digitava o celular com a competência de um braço direito. Os outros, um mais próximo, outro ali atrás, outro mais adiante – e variando as
idades, lá estavam, também, dois senhores. Um deles fez a pergunta que todos queriam fazer: - O Jaque...
da rua, o da travessa, quem é ele?!... O escritor tomou fôlego e respirou fundo - era sua praia. Esclareceu contente: Jacques
Brel, o maior nome da canção francesa -
pouco conhecido no Brasil – mas se puxar pela memória o senhor vai se lembrar
de Ne Me Quitte Pas,
e ensaiou o canto,
acentuando os primeiros versos: Ne me
quite pas...Ne me quitte pas …Il faut oublier … a música – prosseguiu - fala da paixão, do amor – e continuou:
ninguém cantou essa música como Brel – Mal comparando, como o Roberto Carlos no Brasil, Brel foi o rei da canção popular francesa!... “Danou-se!” – disse Zoinho de volta à roda. O Chefe
quer um aqui e o outro fora
- prosseguiu. As
fotos valem dinheiro - ele disse. Se vai levar pra outro país... tem lá
um interessado. Na certa, vai vender. E, claro que vão pagar em dólar ou euro... Nesse
instante, Walter ameaçara sair do táxi. Havia
ali um imbróglio – um ex-policial civil,
com certeza, teria uma arma camuflada no carro. Melhor que não desse bandeira, o Walter; Agora, ali, na travessa Jacques Brel, a mais
valia falava alto, bem alto, pois
transformava nossa visita em possibilidades
reais de
dinheiro vivo. Um hábil sequestro se desenhava à nossa frente. O escritor vem com a gente pra conhecer a
comunidade!... – sentenciou Zóinho, o Segundo, o braço direito do Chefe. E intimou:
-
o Senhor pensa aí numa ajudazinha. Uma quantia, um tanto pra atender a Comunidade
do Cereja... O Senhor vai, o escritor fica! - Disse o Chefe. Em instantes, Walter agilizava o percurso até um
Caixa-eletrônico, sugerindo, confiante e
retórico: - Leva
mil!... Tem mil?... Leva mil!... Do contrário
é avisar a polícia!... Diz pra ele que
escritor vive do que vende, às vezes nem vende, vende pouco...quem compra livro hoje em dia?!... Enquanto o táxi ladeava, novamente, a
travessa, em minha mente surgia o
escritor, de olhos vendados, punhos amarrados para traz, e isolado na pequena sala mal iluminada; em
minha mente ele sentia numa das faces os
primeiros sinais de tortura, sob a voz tonitruante, aterradora e incisiva do Come-cru, tentando arrancar-lhe as confissões: - Diz
aí, pra quem trabalha? Onde vai com essas fotos? Quanto valem!?... Eu podia sentir os tapas fortes e os golpes
precisos do boxeador ecoando pelo interior da sala. Os lábios do escritor, nesse
momento, deixavam ver o sangue, já respingando nas suas
barbas brancas. Nesse instante, a voz do taxista arrancou-me do pesadelo: “ - Olha lá, são eles, o grupo todo, ali no
final da rua!...” . Seguimos. Os
olhos dos moradores pareciam nos dizer que eram sabedores de tudo.
Uma curva, mais uma, e eis que o Escritor
surge calmo à frente do grupo – Sorria tímido, mas sorria. Suas mãos detalhavam algo no ar. Pareciam contar alguma história, que ele, com
certeza, dominava de cor e salteado. Por
certo, desenhavam com os pincéis mágicos do seu imaginário, o rosto
e as nuances da figura emblemática de Jacques
Brel diante de um microfone, interpretando Valse
a mille temps, e depois, depois reafirmando-se como o patrono-mor daquela pequena
ruazinha, a Travessa Jacques Brel, no
Jardim Cereja!... Assim que nos viu, o Escritor acenou que o
táxi encostasse; os outros, sob ordens
de Zóinho, o Segundo, olhavam silenciosos, porém, carregados de uma
estranha simpatia. O Escritor acenou
a mão em despedida. Zóinho, o Segundo, e os
demais, corresponderam ao gesto. Entramos no táxi e seguimos silenciosos até o
final da rua onde se alcança,
rapidamente, a grande avenida. “- Conta, conta tudo!...” – eu disse logo, com os olhos pregados no Escritor. Sorridente,
ele se mantinha estático, contemplando a paisagem que
o taxista Walter fazia acelerar sob nossas retinas e, ato contínuo, confortavelmente, recitava de cor, um trecho
da orelha do livro Glória partida ao meio, que, circunstancialmente, carregara com ele, e que havia presenteado Come-cru, com dedicatória. -
Dedicatória? - Como assim? –
Perguntei-lhe, espantado. E o escritor
prosseguiu, relembrando o seu texto: “ (...) em meio à tensão da clandestinidade,
nasce uma história de amor; uma paixão ameaçada pelas torturas e perseguições
do tempo da ditadura...”. O assunto, dissera Zóinho, o Segundo,
o assunto encantara o chefe Come-cru, que prometera ler até o final.
E o marcador de livro, na página 246, garantiu
Zóinho, o Segundo, destacava o parágrafo
que levara o Chefe a
tomar aquela decisão. O escritor,
orgulhoso e emocionado, resgatou a
leitura, enfatizando o trecho: “ (...)
Glória presenciou num silêncio forçado os dois companheiros tombarem (...) Quando um dos homens lhe deu as costas (...) ela mirou rapidamente o revólver e apertou o
gatilho. O tiro saiu incrivelmente certeiro, e o projétil atingiu o crânio do
policial, que tombou para a frente, morto. A resposta veio numa rapidez que não
deu nem para sentir: o comparsa mais próximo disparou sua metralhadora como se
cumprisse a missão de arrombar uma caixa-forte; só parou com sua fúria quando o
pente se esgotou; e aí, há muito tempo Glória já havia sucumbido, partida ao
meio.”
Come-cru, por certo, também lera na segunda
capa, a referência à “Jacques Brel”, disse o Escritor. Por isso, Zóinho trouxera o recado amistoso: “- esquecessem o dinheiro. Come-cru ficaria com o livro e os dois poderiam seguir em paz!”. Dediquei-lhe, “uma boa leitura” e assinei -
finalizou o Escritor. Zóinho e os outros, cada qual à sua maneira, registraram
de memória, o nome e o sobrenome de quem trafegou pelo teatro, cinema, vagueou pelo ar
e navegou pelo mares e se lançou ao cancioneiro popular francês de forma viva e brilhante. A Travessa Jacques Brel, no Cereja,
carregaria, para sempre, algumas linhas dessa emblemática história.
Textos incidentais: Glória partida ao meio – Paulo R.Martins - Editora 7 Letras – RJ/2009
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