sábado, 13 de junho de 2020

SABE QUEM É JACQUES BREL?




“SABE QUEM É JACQUES BREL?”                                

                                                                   Texto:  Celso Lopes 



Come-cru carregava na sua ficha criminal  um dos mais ousados planos de fuga do presídio. Uma ação frustrada, no entanto, pois centenas de detentos foram soterrados pela queda das paredes de um  túnel estratégico. Somado a isso, liderou um enfrentamento  no pavilhão 3, o forno,  diante da truculência do Comandante Benhur – o Dá-Sem-Dó -   que totalizou, ali,  mais de 80 corpos  inertes  pelos corredores da unidade.  E  ainda que tenha tido  saldo negativo, Come-cru ganhara respeito no comando do tráfico  – afinal,  conseguiria (não fosse o desabamento), colocar fora dos muros do presídio mais de  200 ponta-firmes para uma nova célula local.  É sabido que, ainda criança, já se destacava pela  ousadia nas brincadeiras de  Salva-cadeia,  enganando a todos com sua perspicácia e impondo sua fúria  contra aquela infame prisão do imaginário infantil:  “- Liberdade para todos! ” gritava eufórico,  dando o salvo-conduto para toda a meninada da rua.  Tempos depois, o sistema prisional – afeito a possibilidades diversas, entre elas, a compra da própria  liberdade -  facilitaria  a saída de Come-cru,  que ganhou a rua e escafedeu-se pelas periferias da cidade.  Entretanto, jamais voltaria para a cadeia – foi o que disseram!... E durante todo  o tempo em que ficamos à sua mercê, ele,  ele próprio, encarregou-se de  tramar o nosso destino de vida ou morte!...
Eu sabia que os olhos do Come-cru estavam ali e nos seguiam desde que pisamos naquela travessa. Olhos de águia -  ele disse.  Ele, o  Zóinho, o Segundo, o braço direito do Chefe, conforme esclareceu.  “Devagar” - eu dizia para o Escritor,  observando o clima tenso.   “Devagar” – eu  disse com a minha  voz precavida -  eles estão nos  cercando por todos os lados; as motos circulam espertas e os  motoqueiros  rodopiam as cabeças nos capacetes, com  os olhos focados em nós, os invasores... Ignorando o meu receio, o Escritor seguia  interrogando os moradores:  - Sabe quem é Jacques Brel? Diante da negativa, ele  apresentava o cantor e a sua história de vida.  Ao final da rua, onde o esgoto se transformava num  pântano lamacento que invadia os quintais,  quando já íamos entrar no táxi de volta, eles chegaram em número de cinco ou seis, dando logo  as coordenadas de boas-vindas:    - Come-cru,  disse o Zóinho, o Segundo, o braço direito do Chefe,  Come-cru  carrega pra onde vai, o  binóculo Nikon Cross Country, telescópico  – na certa, agora, faz sua mira sobre todos nós aqui.  E ele está lá, naquela laje ou naquela outra... Zóinho, o Segundo,  indicava, apontava e garantia:   Come-cru mantém os olhos sobre nós – informação essa  que  nos adiantara o  taxista Walter,  que nos conduziu ao  território sob a  lei do chefão – A travessa Jacques Brel, no bairro Jardim Cereja!... Come-cru sempre teve pressa, disse o Segundo – e completou - mas, nunca, nunca comia cru, nunca comeu cru!.. –  O  Assistente, o braço direito, apontou para o alto,  à direita – Ali, insistiu, ali está  o quartel general do Chefe,  disse Zóinho,  o Segundo na hierarquia. E quem é ele? Se o Senhor pergunta, eu respondo:  -  tem pra mais de um metro e oitenta,  bem  troncudo,  cara enfezada, lutou boxe muito tempo  e não deu sossego,  nocauteou e colocou muito valentão  pra beijar a  lona,   o Come-cru;  Esperto  desde menino – a mãe, ainda vive aqui na Comunidade e  confirma tudo. O nome dele é Juce,  quer dizer, o apelido; o nome de batismo é Júlio César –  homenagem  a um general romano, ela disse. Ela mesma disse que juntou o JU de Júlio, com o  CE  de César – daí, JUCE!... E  muito tempo  depois, na prisão, seria  o Come-cru, o que carrega a  tatuagem  do filho e  de uma paixão que escorregou pra vala comum faz tempo. No rosto, uma  cicatriz de faca,  mas Come-cru  passou o cara  no tempero do presídio... Hoje, aqui,  ele manda, manda e desmanda,  e faz  as perguntas... Ele quer que o senhor tenha as respostas, certo? Então, tá pela ordem? ... Quem são vocês? Gente da polícia?  São caguetas?   Informantes?  Fiscal do governo?  da Prefeitura?...  Vão chegando, assim,  entrando, a bem dizer, entrando no bairro,  na casa da gente,  tirando fotos, falando com  quem tá quieto... E o táxi branco, só ali seguindo, de butuca...e aí um diz que é Escritor e o outro, acompanhante? E escreve o quê, mermão?  Tem um  livro aí pra gente ver?....O Escritor nessa  hora entregou o livro.   Zóinho, o Segundo, folheou rápido e inocente.  O nome é esse mesmo? - Glória partida ao meio?... E o tal de Jaque, da rua, da travessa,  onde entra nessa história, mermão? ... Tá confuso, compadre!... Então vem dois de fora,  faz fotos,  faz perguntas... a troco de quê?... de nada?!... Tá pela ordem, isso?!   Antes de chegarmos, nosso táxi seguia um caminho de difícil acesso,  e ainda pontuado  pelas  perguntas do Walter: – Vocês dois,  fazer o quê na travessa Jacques Brel?  O Escritor esclareceu ao Walter, fazendo  referência ao livro, o segundo que escreveria  sobre o cantor,  por isso,  queria  fotos daquela rua, da travessa que lhe faz homenagem,  pra levar, pessoalmente,  em  visita, à Fundação Jacques Brel na capital francesa. “ - Estamos quase chegando, chefia!...”. O  taxista confortava-nos,  mas logo nos alertava para o beco-sem-saída à nossa frente: a travessa Jacques Brel;  Walter conhecia o local,  mas evitava se arriscar – Afinal, confessou-nos  - foi policial civil há muito tempo – deixara a farda e ganhava  a vida no táxi. Por isso,  melhor falar com o filho,  que também é taxista. E logo  colocou o celular no viva-voz:  - Oi, Filho... tô indo  no Cereja, levo um Escritor e um amigo dele... barra pesada, lá,  foi o que eu disse, não é?!...  - Tá doido, meu Pai... deixa os  caras na rua de cima e pronto!!!...” - Não disse? ... o menino conhece os mocós... Ali, meu chapa, o mais bonzinho estapeia a  mãe no tanque, podes crer!...E ali tem dono – o Come-cru – o  Cereja tá na paz... eu acho que tá,  mas tá nas mãos  dele!...  Zóinho, o Segundo,  digitava o celular com a competência de um braço direito.  Os outros, um mais próximo, outro ali  atrás, outro mais adiante – e variando as idades,  lá estavam, também,  dois senhores. Um deles fez  a pergunta que todos queriam fazer:  - O Jaque... da rua,  o da travessa, quem é ele?!...    O escritor  tomou fôlego e respirou fundo -  era sua praia. Esclareceu contente: Jacques Brel, o maior nome da canção francesa -  pouco conhecido no Brasil – mas se puxar pela memória o senhor vai se lembrar de Ne Me Quitte Pas,  e ensaiou o canto,  acentuando os primeiros versos:    Ne me quite pas...Ne me quitte pas Il faut oublier   a  música – prosseguiu -  fala da paixão, do amor –  e continuou:  ninguém  cantou essa música como Brel –  Mal comparando, como o  Roberto Carlos no Brasil,  Brel foi o rei da canção popular francesa!...   Danou-se!” – disse Zoinho de volta à roda.   O Chefe  quer  um aqui e o outro fora -  prosseguiu.   As fotos valem dinheiro -  ele disse. Se vai levar pra outro país... tem lá um  interessado. Na certa, vai vender.  E, claro que  vão pagar em dólar ou euro... Nesse instante, Walter ameaçara sair do táxi.  Havia  ali um imbróglio – um ex-policial civil, com certeza, teria uma arma camuflada no carro.  Melhor que não desse bandeira, o Walter;  Agora, ali, na travessa Jacques Brel, a mais  valia falava alto, bem alto,  pois transformava nossa visita  em possibilidades reais  de  dinheiro vivo. Um hábil sequestro se desenhava à nossa frente. O escritor vem com a gente pra conhecer a comunidade!... – sentenciou Zóinho, o Segundo, o  braço direito do Chefe.  E intimou:   -  o Senhor pensa aí numa ajudazinha. Uma quantia, um tanto pra atender a Comunidade do Cereja... O Senhor vai,   o escritor  fica! - Disse o Chefe.  Em instantes,  Walter agilizava o percurso até um Caixa-eletrônico, sugerindo,  confiante e retórico:    - Leva mil!... Tem mil?...   Leva mil!...   Do contrário é avisar a polícia!... Diz pra ele que escritor vive do que vende, às vezes nem vende,  vende pouco...quem compra livro hoje em dia?!...  Enquanto o táxi ladeava, novamente, a travessa,  em minha mente surgia o escritor, de olhos vendados, punhos amarrados para traz,  e isolado na pequena sala mal iluminada; em minha mente ele  sentia numa das faces os primeiros sinais de tortura, sob a voz tonitruante,  aterradora e incisiva do Come-cru, tentando arrancar-lhe as confissões:  - Diz aí,  pra quem trabalha?  Onde vai com essas fotos? Quanto valem!?...  Eu podia sentir os tapas fortes e os golpes precisos do boxeador ecoando  pelo  interior da sala. Os lábios do escritor, nesse momento,  deixavam ver o sangue,  já respingando  nas suas  barbas brancas. Nesse instante, a voz do taxista  arrancou-me do pesadelo: “ - Olha lá, são eles, o grupo todo, ali no final da rua!...” . Seguimos. Os olhos  dos moradores  pareciam nos dizer que eram sabedores de tudo.  Uma curva, mais uma, e eis que o Escritor  surge calmo  à frente do grupo –  Sorria tímido, mas sorria. Suas mãos  detalhavam algo no ar.  Pareciam contar alguma história, que ele, com certeza, dominava  de cor e salteado. Por certo,  desenhavam com os  pincéis mágicos do seu imaginário, o rosto e  as nuances da figura emblemática de Jacques Brel diante de um microfone, interpretando Valse a mille temps,  e depois, depois  reafirmando-se como o patrono-mor  daquela pequena ruazinha, a Travessa Jacques Brel, no Jardim Cereja!...  Assim que nos viu, o Escritor acenou que o táxi encostasse; os outros,  sob ordens de Zóinho,  o Segundo,   olhavam silenciosos, porém, carregados de uma estranha  simpatia. O Escritor acenou a  mão em despedida. Zóinho, o Segundo,  e  os  demais,  corresponderam ao gesto.  Entramos no táxi e seguimos silenciosos até o final da  rua onde se alcança, rapidamente,  a grande avenida. “- Conta, conta tudo!...” – eu disse logo,  com os olhos pregados no Escritor. Sorridente,  ele se  mantinha estático, contemplando a paisagem que o taxista Walter fazia acelerar sob  nossas retinas  e, ato contínuo,  confortavelmente, recitava de cor, um trecho da  orelha do livro Glória partida ao meio, que,  circunstancialmente,  carregara com ele,  e que havia presenteado Come-cru, com dedicatória.   - Dedicatória?  - Como assim? – Perguntei-lhe, espantado.   E o escritor prosseguiu,  relembrando o seu texto:    “ (...) em meio à tensão da clandestinidade, nasce uma história de amor; uma paixão ameaçada pelas torturas e perseguições do tempo da ditadura...”.  O assunto, dissera Zóinho, o Segundo, o assunto  encantara o chefe Come-cru, que prometera ler até o final.  E o marcador de livro, na página 246, garantiu Zóinho, o Segundo,  destacava o parágrafo que   levara  o Chefe a   tomar aquela decisão.  O escritor, orgulhoso e emocionado,  resgatou a leitura, enfatizando o  trecho:   “ (...) Glória presenciou num silêncio forçado os dois companheiros tombarem (...)  Quando um dos homens lhe deu as costas (...)  ela mirou rapidamente o revólver e apertou o gatilho. O tiro saiu incrivelmente certeiro, e o projétil atingiu o crânio do policial, que tombou para a frente, morto. A resposta veio numa rapidez que não deu nem para sentir: o comparsa mais próximo disparou sua metralhadora como se cumprisse a missão de arrombar uma caixa-forte; só parou com sua fúria quando o pente se esgotou; e aí, há muito tempo Glória já havia sucumbido, partida ao meio.”   
Come-cru, por certo, também lera na segunda capa,  a referência à “Jacques Brel”,  disse o Escritor. Por isso,  Zóinho trouxera o recado amistoso: “- esquecessem o   dinheiro. Come-cru  ficaria com o livro e os dois poderiam seguir  em paz!”.  Dediquei-lhe, “uma boa leitura  e assinei -  finalizou o Escritor. Zóinho  e os outros, cada qual à sua maneira, registraram de memória,  o nome e o sobrenome de  quem  trafegou pelo teatro, cinema, vagueou pelo ar e navegou pelo mares  e  se lançou  ao cancioneiro popular francês  de forma viva e brilhante. A Travessa Jacques Brel,  no Cereja,   carregaria, para sempre, algumas linhas dessa emblemática  história.  



Textos incidentais: Glória partida ao meio   Paulo R.Martins -  Editora 7 Letras – RJ/2009

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