terça-feira, 5 de maio de 2020

Duelo sobre a mesa - Conto


DUELO  SOBRE A MESA 





Um dos peritos, impressionado pelo fulgor do embate, chegou a citar, textualmente,  o caótico rio de pedras”,  narrado pelo escritor  Umberto Eco*. E não sem razão; há de se acreditar, insistia o perito,  que no auge desse enfrentamento imperioso, o interior de ambos seguia em contínua ebulição, revelando uma torrente furiosa, tal qual uma “correnteza de grandes rochas informes, placas irregulares e cortantes como lâminas, e amplas como pedras tumulares (...). Aos olhos do perito, fora assim o duelo entre  Dona Branca e o Professor Pio. Quem os conheceu no dia a dia  informava que as desavenças entre ambos, não raro, surgiam  após um  silêncio profundo; nessas horas o ar ficava pesado e  fazia brotar,  às claras, um rancor íntimo desencavado. Acredita-se, informam os peritos, que esse conflito pode ter sido acentuado  pelo toque de se recolherem ao lar, uma vez que integravam o grupo de risco imposto pela Pandemia. Foram encontrados, ali, sentados, frente a frente, na mesa da sala; cada qual em seu canto  com a cabeça curvada e apoiada sobre o braço;  o olhar de cada  um deles parecia,  certeiramente,  dirigido ao outro. Lá estavam,  inertes, até a descoberta. Cansado de ligar para os pais, o filho informou ao Zelador do prédio, e este,  pressentindo algo estranho, levou o caso  à  polícia, que, instantes depois, solicitou a abertura do local e  posterior autópsia. O casal vivia há muitos anos naquele prédio do bairro. Ela, uma antiga professora de história; ele,  ex-chefe de laboratório de biologia da faculdade, onde se conheceram ainda bem jovens.  A perícia técnica apresentou anotações, laudos, infográficos  e fotos, destacando um considerável número de Palavras Cruzadas abertas; um Volume sisudo de cor marrom;  dois Dicionários que,   pelas digitais,  disseram os peritos,  o Caldas Aulete seria o  da Mulher, e o Aurélio, o do Homem.  A perícia indicou que as sandálias da Mulher deixaram rastros. Observou-se  que teria se deslocado até à cozinha, onde tomara café na térmica;  depois,  deteve-se  na estante da sala, de onde retirou o Volume marrom, que destacava na página interna: “Instrumentos de Guerra da Antiguidade”. Segundo a perícia,  tratava-se  de relatos sobre   estratégias dos antigos exércitos, como o  Apito da morte”, descrito, ali, como “um objeto sonoro criado pelos Astecas, que simulava  estridentes gritos  de pessoas em sofrimento,  induzindo os adversários a um estado de transe desesperador.  Apanhado o livro,  Dona Branca  se dirigira  à mesa do embate.  Então, ali, o duelo teve início para ambos.  Cada qual com os seus compêndios de Cruzadas. Segundo os peritos, era quase possível “ver” a agilidade da Mulher no desafio das verticais e horizontais, sem tréguas ao adversário;  indicaram ainda, que, em  determinado instante, os olhos da Mulher foram  ao encontro dos olhos  do Homem.  O abalo causado por esse olhar, disseram eles, fragilizara o  oponente.  Na praça de guerra,  o espalhamento das revistas acenava com que a estratégia do Homem seguia rápida com rigorosa atenção nas armas de combate.  Ao Homem, fortaleciam-lhe as  publicações relativas a  filmes, teatro, música,  biologia  e literatura química. Novamente, “pressentia-se”  a voz  da Mulher de forma  explosiva  no território da disputa. Podia se ler, com clareza, uma das perguntas: “Animal mitológico associado à virgindade, tem a  forma de um cavalo com um único chifre frontal?”.   Bingo.  “Unicórnio”. Assim assinalara a Mulher.  Ao Homem,  restava-lhe o sofrimento frente à  pergunta quase sussurrada: “- O  nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo?”. Segundo os peritos, os sinais mostravam, vivamente, que o professor Pio  estancara-se com a caneta no ar; pois sentia, naquele embate infernal, a Mulher apontando-lhe as  armas de Guerra. Aquelas tamanhas e poderosas, como a Catapulta, arma de ataque capaz de quebrar barreiras dos homens, especialmente, os encastelados  e protegidos em  cidades muradas.  Haveria de destruí-lo, caso ele persistisse. Lançaria sobre seu adversário as mais potentes armas,  que haveriam de liquidá-lo no interior do palácio.  Recuasse, portanto,  ou então,  receberia o golpe  mortal:  haveria de lhe atirar a maldição das  esposas incompreendidas!... Para os peritos,  a mente do Homem dirigira-o  para a área química. Ou ele a superaria agora ou haveria de viver  a maldição das esposas  abandonadas. O Homem sussurrava, exalando suor frio. Ele sentira o baque. Doeu-lhe a força desse punho gigante da Mulher à sua frente.  Por isso, olhava, agora, de dentro do seu próprio silêncio, para dona Branca,  enquanto  lançava  mão do seu  Aurélio:  - O nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo!...   No entanto, as tentativas se mostraram  infrutíferas e o  silêncio fora  quebrado, apenas,  pela  retórica ascendente  da Mulher.   - o  Santo Graal também é chamado de.....?”.  Neste ponto,  os peritos adicionaram ao laudo:  na sala avolumada de  silêncio, podia ser percebido os contornos grandiosos dos olhos  do Homem e da Mulher,   como fossem eles, Dona Branca e o Professor Pio,  os guerreiros autênticos  das   antigas Cruzadas, os  soldados de Cristo.”.  Então, enquanto a Mulher já se  debruçava  nos desafios da sua  Coquetel Super,  um certo  vazio  se instalava  no ambiente.  Agora,  as horizontais da Passatempo do Homem pediam ajuda aos deuses da sabedoria:  “ - Trepadeira comum em muros -  com quatro letras?  - A flor da idade, no sentido figurado -  com nove letras?”... Enquanto o Homem  entendia a  necessidade urgente dessas  respostas,  ela, a Mulher, garantem os peritos, ganhava distância  a olhos vistos. As palavras cruzadas exigem mais que  uma brincadeira - ironizava em seu silêncio -  como se mostrasse a ele, ao Homem,  que as Cruzadas não brincam.  Então, a Mulher preparou-lhe  um  olhar fulminante repleto de força bruta sonora:   “Lutar com palavras  é a luta mais vã.  Entanto,  lutamos  mal rompe a manhã(**)”. hghE tomada pelo poder dessas palavras ditas,   eis que, então, sob suas mãos, elas, as palavras,  ganharam formas definidas de ataques:  primeiro  as pontiagudas,  depois as  cortantes,   e por fim,  as explosivas... E assim, a Mulher  lançara, inapelavelmente,  sobre Homem, os seus escudos especiais. Ao Homem,  restava-lhe manter a distância adequada para não ser ferido de morte. Mas para sua festa surgiram os filmes, teatro, música,  artistas  e afins.  O Homem sorriu largo,  pois, se sentia no páreo; E assim seguiu ele, devorando com gulodice as suas anotações:  - Em que cidade nasceu Yusuf Islam  ( conhecido como Cat Stevans?)   - Qual série de TV tinha como protagonista o Ator Peter Falk?  ... Como  previsto, o Homem avançou  três  compêndios e cinco páginas, mas ainda era pouco. No entanto, com o rabo-dos-olhos ele percebeu que a incomodara.  A Mulher, ali, embatucara-se diante dos  símbolos químico....Ele ouviu, sim,  a ênfase retórica,  insistente, carregada  de  nervosismo:  - Enxofre?.... Lítio?...A mente não lhe faltaria nessa hora – sorriu triunfante.   A  toxicidade das substâncias químicas dançava  à sua frente,  como um gás mostarda, cloro,  ácido cianídrico...  mas ele, ali,  definira-se pelo Napalm -   O  gel pegajoso e incendiário  usado nas guerras trágicas do  Vietnã, Laos e Camboja... porém,  confessava a si mesmo que não viveria a dor do engenheiro Jeff O. Stanford – Chefe do Laboratório Químico dos USA,  responsável pelo envio do Napalm às frentes americanas que, diante do grito antibélico do mundo, e culpando a  si mesmo  pelo genocídio,  suicidara.  Assim, a Mulher, novamente, ganharia a dianteira: - Península que abriga a Grécia e a Croácia?  - Nome de Deuses da Mitologia Grega?... E então,  decidida  a trucidá-lo, sem perdão,  tomou para si as armas decisivas.  Com destreza e maestria, Dona Branca apossara-se dos Estrepes e Culverins; segundo os peritos,  “armas medievais atiradas  contra a  cavalaria inimiga”. Desviando desse campo minado,  o Homem titubeava em seu abecedário: - Substância encontrada em vegetais, de grande importância  para o funcionamento do intestino?. Os passos  seguintes formariam a barreira implacável. O Homem sofria a cada pergunta que preferia  não ouvir:   - O maior império do mundo (em duração)? - Rei pagão denominado pelos judeus como o Messias?... As muralhas e fortificações,  postas ao chão naquela guerra,  levaram-no à rendição. O ar, agora, lhe faltava – disseram os legistas. Portanto, febril, cansado e ofegante, ele se acomodara sobre a mesa, com a cabeça inclinada no braço curvado, e o olhar, certeiramente, dirigido às  pupilas da Mulher.  E então,  a Mulher, com sua respiração traumática naquela batalha sangrenta,  em que vencera  o homem encastelado, numa luta silenciosamente inumana, reconhecera no antagonista, conforme a perícia,  um guerreiro, alguém de valor  e  à altura, o que a  levara à rendição definitiva.  A ausência do ar, agora, sufocava a ambos – disseram os exames. Portanto, também ela, Dona Branca,  acomodara-se na mesa com a cabeça inclinada  e o olhar certeiramente dirigido às retinas do professor Pio!... Fortalecendo a narrativa técnica, o perito retomaria o “caótico rio de pedras”, criando, aleatoriamente, um  apoteótico final:  nenhuma voz humana podia se fazer ouvir naquele instante fatal sobre o duelo na mesa;  embora ambos, ali,  tivessem o desejo de falar, de se despedirem de toda a carga de emoção que arrastavam consigo, não conseguiriam. O ‘rio de pedras’ interior que os conduzia, enfurecia-se cada vez mais, levando tudo ao redor  para as invisíveis vísceras da terra, pulverizando cascalhos, blocos e rochas para exprimir, talvez,  a impotência maior  do Homem e da Mulher frente ao embate  do vírus vencedor.”  









Nota:  (*) Umberto Eco – Confissões de um jovem romancista. Ed. Record/2018.
 (**)   Versos do poema    “O Lutador” – Carlos Drummond de Andrade. 

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