sábado, 2 de maio de 2020

DIÁLOGOS À BEIRA DO 'COMA' - crônica Celso Lopes


Diálogos à beira do “coma” 




No filme, Fale com ela, (Hable con ella), do diretor Pedro Almodóvar, os personagens masculinos (enfermeiro e jornalista) e os femininos (bailarina e toureira), estabelecem uma relação intensa no hospital, onde ambas se encontram em coma.  Marco, o jornalista, acredita que elas estão mortas. Benigno, o enfermeiro, que cuida da bailarina (Lydia)  aposta num “milagre” e aconselha Marco: “Fale com ela”... “Fale com ela”... e é o que ele fará, de certa forma, dialogando com o longo silêncio de Leonor ( a toureira).
Esse, digamos,  monólogo, que no filme ganha  contornos de  diálogos, pode, apropriadamente, tornar-se uma “ferramenta essencial”, também  nesses tempos de pandemia.  Imagine-se como um paciente terminal. Você está internado, próximo ao fim, mas você ainda escuta. De repente, ao seu lado alguém diz:   “ - Farei o possível pela sua vida!...”
Até aí, alguns pontos a considerar:  primeiro, esse alguém, o médico ou  profissional  especializado,  poderia estar fisicamente ali, desde que fosse possível,  e com todos os cuidados de um não-contágio, especialmente, frente a um vírus pandêmico, como é o caso do recente coronavírus.   Segundo ponto, o médico ou esse atendente especializado, estaria  acompanhando você, via equipamentos de “Telemedicina” – com uso de som e  imagem de vídeo;  com a ressalva de que,  até pouco tempo, esse procedimento sofria certo viés contrário, uma vez que, culturalmente, exigíamos dos profissionais de saúde um estreito contato com o paciente. Digamos que, quanto mais  melhor, acredito que era assim que todos nós pensávamos.   Mas há uma outra consideração que salta com relevância neste enfoque.
E vem de uma experiente profissional no trato com Cuidados Paliativos; um enfrentamento habilidoso, entre médico-paciente  diante de doenças dolorosas e incuráveis. Tendo à frente,  doentes que não podem receber visitas, a médica  Ana Cláudia Quintana, tema desse texto, adianta que a importância do profissional de saúde nessa hora,  alcança uma conexão fundamental e de extrema confiança ao paciente.  Para a doutora -  no  momento da nossa maior fragilidade, em que estamos morrendo, e todas as medidas de sobrevivência já foram tomadas, não respondemos mais aos  estímulos, mas ouvimos de um  profissional ao nosso lado:   
“ - Farei o melhor que puder pela sua vida. Você é muito corajoso!...”
Para Ana Cláudia, esse gesto cuidadoso ganha proporções de reflexão sobre a nossa finitude, tornando, não-necessariamente,  a morte digna, mas sim, a vida digna.  Por isso, acrescenta:  “ Se  a última coisa que você ouvir na sua vida for isso, vai ter valido a pena.  Não é nem para salvar a sua vida, mas (fazer) o possível pela sua vida.”.  A abordagem da médica, entre outros pontos importantes, avança, com propriedade, para esse momento restritivo imposto pela  “pandemia” causada pelo Coronavírus,  em particular sobre o  impedimento presencial junto ao leito,  de familiares, ou  mesmo, de profissionais de Saúde,  numa fase delicada  da perda do ente querido. Em sua ótica, quando se vê o corpo, sepulta, chora, faz missa, faz rezas, esse ritual cria e garante uma estrutura de segurança a quem fica;  é como se fizéssemos uma  trilha sinalizada.  Sem essa ritualização, a emoção da perda é arrebatadora” – conclui.
Médica com grande reconhecimento na sua área, e autora de livros como “A morte é um dia que vale a pena viver” e “ Histórias lindas de morrer”, Ana Cláudia Quintana parece construir, e constrói,  cuidadosamente, aquele “milagre” da narrativa do filme, apostando todas as suas fichas, sabiamente e  humanamente,  nesse aparente e improvável “diálogo” entre os médicos e pacientes.




Texto:  Celso Lopes

Fonte: Mariana Alvim - @marianaalvimDa BBC News Brasil em São Paulo (12/abril/2020).

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