sexta-feira, 31 de julho de 2020

O mergulho corajoso da poeta DALVA ALTOBELLI


Dalva Altobelli se revela em sua poesia. Em seu eu poético  expõe-se de corpo e alma. Entra de cabeça pelas  águas turvas onde quer porque quer  o porvir e/ou se redescobrir diante de si mesma. Para tanto, mantém-se atenta ao tempo, tentando segurar a ampulheta, sua companheira inseparável nesta jornada,  e ao mesmo tempo, o  algoz de seus sonhos... 

A poeta  reafirma  em versos finais:  “Meu grito é inútil. Ninguém ouve a minha voz”.  E é essa coragem reveladora que a sua poesia alcança, e que nos leva a habitar essa morada.  Há mesmo esse despojamento revelador de perdas, às quais, a poeta  busca e tenta incessantemente  resgatar para dar a volta por cima; e é assim que  canta em seus versos, a   sua energia   rigorosa  para  viver o seu  tempo.  Nessa submersão que faz para  as regiões profundas desse mar a ser descoberto e desvendado,  seguimos sentindo a sua ânsia através das   palavras que nos engolem por inteiro na  missão da sua  poesia:  

 “... deixei meu rastro, mastro de minhas naves naufragadas (...) deixei meu sangue, rubro veneno que mata a mim mesma (...)”

 Arrisco dizer que a poesia de Dalva Altobelli, seguramente, trilha expoentes importantes da nossa literatura poética.  A seguir nessa trilha, a autora fará confirmar a intenção e o gesto.  A pessoalidade dela própria na poesia, que por instantes, poderia nos levar à simplicidade  do fazer poético, já no mesmo instante, agiganta-se, pela amplitude com que redesenha a sua e a nossa  viagem através dos versos:

 “Por mares singrados, deixei tempestades, brado insolente em busca do nada. Por outras vidas, deixei meu soluço, dor lancinante das minhas feridas.  Por você me afastei da luz, e hoje ardo sozinha nas trevas do meu próprio inferno”.

 Os versos de Dalva Altobelli, por vezes, flertam com rimas, no entanto, é a liberdade da sua escrita poética que transcende a sua verdade escondida,  e que faz  submergir ao leitor,  em imagens sutis e  inusitadas: 

 “ O ar rarefeito já sufoca. Nem mesmo meu grito sai da garganta estrangulada. Não sei  se tenho forças para chegar à beira da estrada . Não encontro cordas para sair do precipício.  E se as tivesse, meus braços estão inertes. O ar é vidro moído, o soluço é baixo”.  

 Em um paralelo oportuno, ainda que deva ser melhor aferido,  lembro aqui versos do poema “O Mergulhador”, de Vinicius de Moraes, em uma estrofe primorosa que realça a busca e o descobrimento do poeta:  

 “(...) Amo-te os grandes olhos sobre-humanos/ Nos quais, mergulhador, sondo a escura voragem/ Na ânsia de descobrir, nos mais fundos arcanos/ Sob o oceano, oceanos;  e além, a minha imagem (...)”

 O ar rarefeito, quase inexistente, e brutamente feito de “vidro moído”, bem como, o sofrimento silencioso de Altobelli, revelado para si mesma em  “soluço baixo”, também, como ao “poetinha maior”,  nos indica e reforça a sua busca e o desvendamento do seu mundo.  Essa é  a trilha poética de Dalva Altobelli. Enxergamos nela, a poesia sem freios para o pensamento, pois como acentua e informa:  “o pensamento alcança mar aberto e sem fronteiras, aporta no infinito”

A poesia de Dalva Altobelli é assim, um  alter ego de si mesma... uma marinheira que sofre feliz porque  tem o mar infinito como estrada. A nós, leitores, cabe seguir-lhe os passos, e aproveitar ao máximo esse  caminho. 

 

 

 

Texto:  Celso Lopes     elipse84@terra.com.br    Julho/2020


quinta-feira, 16 de julho de 2020

Escritos da Pandemia "Baile de Máscaras" - Poesia







Cai a máscara, o vírus nos escancara cara a cara, 
o perigo invisível que afoga o que antes alegrara;
e  aflora,  engolindo o que o futuro nos reservara.

Cai a máscara, e nada, ninguém que nos prepara
o front de enfrentamento, nessa guerrilha  rara;
guerreando, de mera ameaça à  dor que arrastara.

Cai a máscara, põe a nu todas as “pestes” por que passara
o mundo, a humanidade que em sua escalada enfrentara;
e de joelhos segue, rogando aos céus o que tanto clamara.

Cai a máscara, um Pierrô trama o que outrora relegara;
uma Colombina chora, suplica o baile que tanto esperara;
e atira confetes, serpentinas e as lágrimas que derramara.

Cai a máscara, e  a fantasia pura que a mente sonhara
sob  ritmos de sons excitantes, penitencia-se. Calara
o riso da história que condenara. Nada disse, não falara.

Cai a máscara, e ansiamos a aurora  que tantos arrastara,
ergueremos  bailes,  salões sem muros, celebrações  preclaras...
buscando rostos,  o beijo antigo  e o abraço que nos acalentara.


Texto:  Celso Lopes

quinta-feira, 2 de julho de 2020

PORÕES - Livro do autor Celso Lopes 2020


Livro do autor Celso Lopes 
Leia um dos Contos da Coletânea


A armadilha do Miranda já estava preparada. 

Fora somente o tempo de rodopiar a chave no cadeado da porta e os policiais à paisana surgiram fechando o cerco. Enquanto os agentes o algemavam em alvoroço de comemoração, Miranda, num silêncio constrangedor, mantinha-se acocorado no estreito cômodo,  com um olhar cabisbaixo e desolado, acompanhando os chutes fortes e certeiros  que derrubavam seus cavaletes, latas de tintas, pincéis,  tecidos, a mesinha, uma  banqueta e diversos outros apetrechos do seu local de trabalho.  Aos gritos e pontapés,  os agentes intimavam o pintor de faixas:
 
- Vamos, seu merda,  me dá um nome!... Vamos, me dá um nome, anda!!!...

 Lá fora, quase uma dezena de carros policiais, que mais pareciam infernizar o trânsito  com suas sirenes ligadas, aguardavam a saída do pintor,  ainda bem assustado e  temeroso dos novos e futuros acontecimentos.  Era visível que se fosse um Dom Quixote nessa hora, Miranda transformaria seus pincéis em lanças pontiagudas e espadas implacáveis;  dos seus lápis inocentes, que antes  se acomodavam no porta-trecos sobre a mesinha, Miranda  faria  zarabatanas com setas envenenadas pelo curare, ou transformava-os em atiradeiras de miras precisas...... Quem sabe ainda, dali, do seu ‘ateliê de pintura’,  um cubículo com paredes descascadas, com a estreiteza de dois metros  por quatro e pouco, onde  mal  cabiam as suas  faixas estendidas, quem sabe dali,  do seu minúsculo cômodo sublocado no centro da cidade, Miranda,  com seus pincéis ágeis, criaria  os vestígios de um campo de relvas, feito uma clareira aberta em meio à floresta, para que pudesse como o Cavaleiro Andante, combater o  bom combate e  escorraçar de vez e para sempre os  seus  opressores;   enfrentaria  os agentes, seus algozes, em campo aberto,  mas  antes  anunciaria  a façanha  ao som de trombetas e clarins, como uma aventura necessária à sua  vida tão carente de novas dimensões até aquele maldito dia...   Miranda, por certo, usaria  para si,  da mesma descrição  que o “Manco de Lepanto” dirigira a si mesmo:  “este que aqui vês, de rosto pontiagudo, de cabelo castanho, testa lisa e desembaraçada, de olhos alegres e nariz curvo (...)  os bigodes grandes, a boca pequena, os dentes nem miúdos nem grandes, porque não tem senão seis, e estes mal acondicionados e pior postos, porque não têm correspondência uns com os outros... Aprisionado entre as paredes daquele estreito corredor, em meio a seus objetos  de trabalho espalhados pelo chão, Miranda, depois de atirado ao solo várias vezes pelos  Agentes, e  já cansado da pancadaria vinda das mãos fortes daquele grupo, agora prestava-se a ouvir os apelos insistentes para que ele, Miranda, abrisse o bico; Os Agentes insistiam para que ele, Miranda, desse com a língua nos dentes;  entregasse a eles,  os Agentes, alguém de cima: o seu Chefe, o seu Líder, o Mandante, o Mandão, o Déspota!...  Os Agentes pressionavam para que ele, Miranda,  caguetasse um nome;   se preciso, agisse sem pena, sem piedade, sem dó nenhum... Ali, como um bicho enjaulado, Miranda, quase em comoção, completaria para si mesmo de uma maneira ‘nada exemplar’:  “ Este que aqui está,  digo, este que aqui vês, trôpego, arruinado,  exposto hoje ao vexame público, desenganado, um miserável  traste em mãos alheias,  um cachorro morto que continua a ser chutado, sem que qualquer culpa tenha nesta vida... este,  este sou eu,  Miranda Martins, cujo primeiro emprego foi o de ‘Estafeta’ na Gráfica Moderna de São Paulo. Quase uma vida como  impressor gráfico. Eu, o Miranda, a quem sempre diziam:  Anda, Miranda, anda!...”  Miranda lembrou-se que ao compor os textos na bancada da Gráfica Moderna, na maioria das vezes sozinho, sentia  um medo danado da morte, pois temia que um dia morresse ali solitário e esquecido,  sob o som alto e continuado da Impressora Minerva.  Entretanto, nada disso acontecera, mas o receio da morte rondava-o novamente,  diante daqueles carrascos à sua frente.  Então, como quem quisesse ganhar tempo, Miranda esclarecia aos Agentes que na Moderna aprendera,  por exemplo,  que Ottmar Mergenthaler, o Otto, dizia o Miranda, fora  o inventor da ‘Linotipo’, nome aportuguesado de uma máquina de composição, que fundia em chumbo, linhas inteiras de ‘tipos’ em um único bloco. Na verdade, insistia Miranda, havia quem  a chamasse de “A oitava maravilha do mundo!”... Diante da insistência de um Agente, Miranda explicou-lhe  que ‘tipo’  se referia às letras do alfabeto, aos sinais gráficos  e a todos os outros caracteres usados  para criar palavras, sentenças, blocos de texto, etcetera e tal.   Afirmou também para os Agentes que a sua função, antes da Linotipo,  era organizar  as letras para o bloco de impressão nas maquinas tipográficas. E assim que as antigas impressoras perderam lugar para as modernas offsets, ele, Miranda,  perdera também, o  emprego na Gráfica Moderna de São Paulo... Miranda reiterava para os  homens da lei,  que hoje era apenas um  pintorzinho de faixas, quer dizer, fazia também  alguns banners,  algumas placas, além de cartazes e painéis...  E, ali,  na frente de todos eles, jurava  por Deus nosso Senhor e  pela Santíssima Nossa Senhora Aparecida  que no dia de ontem fizera, sim, fizera aquela faixa inocente a que eles se referiam.   Uma faixa com uma  mensagem de amor.  Miranda esclareceu que fez  o serviço a pedido de um Motoqueiro que nem mesmo o capacete havia tirado da cabeça, por isso, ele, Miranda, não vira sequer o rosto do homem, que nem era  muito baixo nem era muito alto.  A moto, aquela sim, ficara ali parada, ali onde agora estão as viaturas; uma moto verde oliva, ali mesmo  junto ao meio-fio da rua.   Mas os Agentes, de imediato,  retrucaram que tudo bem, Seo Miranda, entretanto, a mensagem, saiba o senhor,  era um  “SALVE GERAL” para uma contra-ofensiva comandada pelos presos  diante da proibição de visitas intimas no presídio. Havia quem dissesse também, Seo Miranda,   que era uma represália à linha dura do governo, que impedira a  saída  do Dia das Mães para os  detentos do semiaberto.  Portanto, ele, Miranda Martins, a pessoa jurídica, fora entregue aos policiais como o local onde se produziu  o “SALVE ”, quer dizer,  a faixa solicitada pelo homem da  moto.  Agora, ele, ‘Seo Miranda’, a pessoa física, dava pinta de não querer facilitar as coisas.  Dificultava até.  Custasse o que custasse, mas tinha de ter um nome.   Assim, disseram os Agentes,  tudo ficaria  muito mais  simples, não é mesmo, Seo Miranda?  Afinal,  algo não estava se encaixando bem, disseram os Agentes.  Faltavam peças neste quebra-cabeças. Faltavam letras  nesse texto. A frase completa não fazia sentido, diziam. Estava sem coerência. Toda oração merecia  sujeito e predicado,  Seo Miranda de merda!... Algo está em falta nesse seu discurso,  seja uma crase, um  acento grave,  ou  uma linha a mais que realce os contornos dessa historiazinha mal contada, Seo Miranda imprestável. Por isso, Mano, abre o bico!... Caguete, alguém, vamos!... Vomite uma oração com início, meio e fim,  seu bosta!...   Aponte  o caminho dessa narrativa;  Diz aí, Seo Miranda, quem é o protagonista, o herói, o mocinho?;  onde anda o sujeito, Seo Miranda?   Não faça nós, os Agentes, perdermos a nossa compostura. Vamos, seu merda, vomite um nome,  me dá um nome, um nome!...Anda, Seo Miranda, anda!... O verso livre, Seo Miranda, incisivo, direto... A nota de rodapé que tudo esclarece, o parágrafo inteiro, completo, vamos, Seo Miranda, não temos aqui uma  vida inteira!... E outra coisa, Seo Miranda – prosseguiram os Agentes -  Sabemos que  o senhor começou a trabalhar como Estafeta,  uma espécie de office-boy, já que Estafeta era o nome que se dava pros meninos lá  em Portugal, para aqueles  que trabalhavam em escritórios ou empresas fazendo serviços  sem muito valor, de pouca importância e complexidade... serviços  sem muito prestígio, coisa assim como ir ao banco fazer um pagamento de contas ou andar para fazer  entrega de documentos, essas coisas. Era uma tarefa  de jovens que ainda não tinham lá seus estudos completados e precisavam de dinheiro para ele mesmo ou pra ajudar a família;  havia quem passasse uma vida inteira nesses empregos... Os  office-boys, que hoje os tempos se encarregaram de modificar, são os atuais Motoqueiros e Motoboys,  que agora já não são mais garotos, mas ao contrário,  são praticamente homens formados ou jovens com idade mais avançada, acima dos dezoito, e às vezes ultrapassando os vinte e tantos; nas grandes cidades, eles formam, hoje, um exército motorizado a ziguezaguear pelas ruas ...Enquanto ouvia, Miranda era empurrado para dentro do camburão,  sentindo-se reduzido  a um homenzinho  infeliz e desastrado.  Miranda contemplava pela porta semiaberta,  os sinais da destruição no seu  estreito corredor de  dois por quase cinco; sentia-se triste vendo espalhados pelo chão, atirados a esmo pelos estabanados Agentes, o seu armário, a sua mesinha, os cavaletes, os pincéis, os lápis,  as latas de tinta e de querosene, os tecidos, a sua banquetinha quadrada, com as laterais mais altas pra  facilitar-lhe  o apoio dos apetrechos... Miranda lembrou-se que  ficara lá, também, o  peso de papel, um pedaço de madeira com uma chapa de  metal fixada, em que se  via o desenho invertido de uma Águia... Um ‘clichê’ que Miranda guardara desde os tempos  da Moderna. Bastava que algum cliente apenas olhasse pro objeto, e Miranda discorria contente,  sem titubear  “Ah. isso é um clichê. Uma chapa  para impressão em relevo, usada nas antigas tipografias. Olha só, aqui a tinta não entra. Aqui entra. Quando a chapa pressiona o papel, pronto, a Águia surge soberana no claro-escuro, a cortar o céu!
 As veraneios  dos agentes, agora, já davam sinais de manobra, e Miranda revia o filme daquela manhã  terrível de setembro.  Lembrou-se que  chegara ao terminal de ônibus e ali, como todos,  dera se  conta do tamanho do estrago. A cidade estava mesmo de joelhos diante do  crime organizado.  Ainda nem raiara o dia e o saldo já estava contabilizado: incêndios em garagens públicas,  carros metralhados,  coquetéis molotov  explodindo em delegacias,  bombas caseiras estourando vidros, ataques relâmpagos nas bases móveis,  carros em chamas jogados contra agências bancárias,  caixas eletrônicos carbonizados,   ônibus incendiados nos terminais,  gritos, correrias, tiros e bombas na madrugada inteira... Sob um som cortante de sirenes indo e vindo, ambulâncias e carros policiais cruzando as longas avenidas ou mesmo subindo em canteiros de pedestres, ninguém poderia deixar de ver os estragos consideráveis que exalavam da temperatura quente daquela madrugada. Diante da paralisação geral do transporte público na região, todos seguiam andando avenida acima em direção ao centro da cidade.  Vez ou outra, nos bares e botecos, já se ouvia os plantões da televisão com os  primeiros informes e comentários:  agentes policiais mortos, ônibus queimados, gente ferida e em estado grave, prédios públicos metralhados, vidros estilhaçados pelo chão...A ação comandada pelos internos aprisionados fora mesmo  uma represália contra o sistema carcerário, garantiam!  As escutas  telefônicas, grampeadas pela polícia, apontavam para um  “SALVE GERAL”. A referência, comentada pela jornalista da tevê, fez com que Miranda desviasse os olhos para o bar.  - Uma frase de amor!... – insistia a  repórter. Miranda, de forma automática,  repetiu o texto para si. E se pudesse olhar com mais atenção, teria percebido que a frase que espocou na tevê,  acentuou-lhe  uma sonoridade carregada de culpa. Pelo menos era assim que seus batimentos cardíacos se manifestaram. Os sinais de impaciência tornavam-se agora bem mais visíveis. Sem conseguir explicar para si mesmo, o como e o porquê, Miranda sentia-se cúmplice do que enxergava e ouvia. O seu olhar, ao longo do caminho, parecia  denunciá-lo às centenas de trabalhadores que ali caminhavam.  Talvez por essa razão, seus  passos ganharam outro ritmo, continuado, acelerado, uma corrida contra o tempo;  e o que  lhe vinha à cabeça naquele momento, era somente o  texto escrito no papel-rascunho que havia  deixado sobre a sua bancada, seguro pelo peso do clichê tipográfico.. Entretanto, sem que soubesse como, os Agentes se anteciparam à sua chegada e lhe prepararam o flagrante. Fora apenas o tempo de rodopiar a chave no cadeado e eles surgiram sabe-se lá de onde!  Agora, quebrado e alquebrado, com hematomas visíveis pelo corpo, surrado e torturado física e psicologicamente,  Miranda, longe de saber para onde o levariam naquele passeio sem fim,  viu surgir-lhe na mente as  páginas de uma  antiga brochura que  imprimira na gráfica Moderna: Dom Quixote!  Lembrou-se melhor: Dom Quixote de La Mancha, o romance de Miguel de Cervantes! Miranda recordou-se de uma prova de página que lera para revisão. Lembrava-se ainda da fonte utilizada: maiúsculas e minúsculas em garamond, corpo 12,  romano.  E   sem que se desse conta saiu lhe da boca um sussurro alto:   Dom Quixote!... Voltou a repetir aos brados: -  Dom Quixote de La Mancha!... Enquanto Miranda regurgitava  o nome do imortal cavaleiro,  os Agentes policiais,  atônitos e boquiabertos, em uníssono, cumpriram as ordens de se reunirem  em confraria, numa espécie de assembleia de avaliação;  algo como uma banca examinadora que fixasse pontuação para a adequação ao tema,  para o desenvolvimento do texto, encadeamento das ideias, coesão, coerência, ortografia e dificuldades gramaticais. E assim, os Agentes chegaram imediatamente  a um veredicto: foram unânimes em afirmar que  avançaram.  Sabiam que o caminho era esse.  Miranda não era mesmo um reles  pintorzinho de faixas como previram,  nem sequer  um inocentezinho pra inglês ver... Não!... Hoje, Miranda estava ali entregando o ouro sobre a  mais recente e  perigosa facção surgida no interior do sistema prisional:  Dom Quixote!  Sim, diziam os Agentes,  agora estavam prontos  para uma nova investida.  Agora, agora tinham um nome. Agora, agora era escancarar as portas para a imprensa.  Afinal, não basta só botar o ovo. É preciso cacarejar: Dom Quixote! ...Operação Dom Quixote!!! – diziam sorridentes e aos brados, sob o som das sirenes e buzinas, comemorando a descoberta da  facção que, ou já existia ou estava sendo plantada nos corredores do presídio. Sim, estava claro, o ataque fora encomendado por uma nova e recente força:  Dom Quixote!... Algo como uma luta dos amotinados contra os gigantes controladores do cárcere;  algo como  uma proposta de implosão do sistema prisional; ou ainda, quem sabe,  um combate sem trégua para ridicularizar os promotores e os agentes da lei. E tudo isso regado a muita ironia e blasfêmia. Sim, concluíram os Agentes: naquele dia 12 havia surgido  um novo modelo de célula,  inclusive com uso de amigos, parentes,  pilotos e celulares... Operação Dom Quixote!...  Tivesse olhos pra todas as coisas, Miranda veria que  os Agentes naquele momento  sequer  lhe davam atenção, quando, insistentemente,  repetia as palavras que ouvira do Motoqueiro:  “ quero as  letras bem grandes, Seo Pintor...Assinar não é preciso, não! O Anjo me conhece, Seo Pintor.  Deixo o pagamento adiantado e  retiro à tardinha... E motoboy tem folga, Seo Pintor? Folga nenhuma. O dia inteiro no vai e vem dessa cidade. Entrega e busca. Leva e traz!...Tivesse  mais atento ao entusiasmo que causara aos  Agentes,  que riam e riam em sinal de vitória sob os sons desconcertantes das sirenes,  Miranda perceberia  que a conversa que ouvira do falso motoboy pouco lhes interessava naquele momento, entretanto, Miranda continuava contando: “Porcelana fina, Seo pintor!... Uma Diana, essa mulher!...  Deusa Grega, essa Vênus platinada... Pois quero fazer-lhe uma surpresa, Seo Pintor. Quero ver a faixa  estendida bem lá  na  esquina,  bem ali no cruzamento da avenida por  onde ela passa todo dia”   Miranda registrara as lembranças com nitidez e precisão. E por essa razão empolgava-se com sua memória. A ele, Miranda, parecia-lhe que cada palavra, cada frase que dizia, transformava-se em testemunha ocular para a  sua própria liberdade. Sua memória, portanto, poderia  servir-lhe de álibi infalível pra escapar dessa bruta  enrascada em que se metera. Naquele instante,  era como se ele, Miranda, tivesse se transformado no próprio Motoqueiro em pessoa, tal a empolgação dirigida aos Agentes: “ Essa mulher é como uma princesa, Seo Pintor.  Preciosa como um objeto raro que se guarda na Cristaleira. Fosse de vidro, Seo Pintor, seria  um ‘Murano’, translúcido e colorido,  com traços feito à mão, coisa de artesão  que se consagra soprando belezas raras com a cana de vidreiro.  Fosse uma paisagem,  Seo Pintor, habitaria os campos resplandecentes de um amanhecer esplendoroso...  Cuido que nunca se  quebre esse vaso Chinês, Seo Pintor. Nunca!.. Essa mulher,  eu carrego aqui  no meu  coração...Pois escreve  aí  nessa faixa com as letras  grandes, Seo Pintor, bem grandes,   assim ó:  BIBELÔ, EU TE AMO!” Ainda que os Agentes não lhe  dessem a mínima,  Miranda esclarecia a eles que até rira de si mesmo diante do trabalho que fizera, e confessou que  “ para um tipógrafo-minervista até que se saíra muito bem como um pintor de faixas!”.  Miranda explicou ainda, que desenhara  as letras sobre o tecido branco. A mensagem, esta destacara em vermelho-vivo,  cor quente, a cor da paixão. As letras ganharam assim um jeitão bold, pesadas,  com um ligeiro filete em preto, que era  pra saltar aos olhos da musa do Motoqueiro.  Pois não fora assim, o pedido?  Então, o Motoqueiro não lhe implorara o máximo empenho pra lhe atender a um desejo do coração? Alheios e indiferentes, os Agentes todos, como fosse um pacto, um sinal de aviso,  uma combinação prévia,  uma estratégia armada para dar inicio à Operação Dom Quixote, cruzavam com seus veículos em marcha moderada, depois de muitas  idas e vindas rodando com as possantes viaturas.  Agora, chegavam ao destino em silêncio gradual e profundo.  Uma a uma, simultaneamente, as portas escancaram-se para a saída dos Agentes que, calados todos, diante daquele cenário de relvas, num campo aberto tal qual uma clareira à espera de  acontecimentos,  a um só tempo, e juntos,  pareciam remoer aquela maldita frase reiterativa: Dom Quixote!...Operação Dom Quixote!. Todos, ali, pareciam sentir na própria carne aquele  golpe fulminante que sofreram diante da frase estampada numa faixa de rua: BIBELÔ, EU TE AMO!... Por isso, o revide. Por isso, o revide a quem ameaçara colocar  a cidade em pé-de-guerra naquela  fatídica manhã de 12 de setembro, era, pois, inevitável. O fato  exigia dos Agentes  um olhar para o  avesso do avesso do avesso.  Por isso,  de olhos vendados pelos seus algozes, e desatento às urdiduras todas no demorado passeio daquela manhã,  Miranda descera do camburão amaldiçoando o seu dia,   sentindo um  suor frio  percorrer-lhe a espinha ao compreender  que ali,  bem próximo dele,  os grupos  se dividiram:  de um lado,  alguns  Agentes marcando um ritmo cadenciado na palma das mãos, chamando-o  aos gritos, de  forma alternada e incessante: anda, Miranda, anda!... anda, Miranda, anda!...e de outro, os demais ensaiavam uma seqüência ruidosa  de sons metálicos, tal qual gatilhos em preparativos pipocando na sua frente, martelando seu ouvidos, ferindo seus tímpanos continuadamente...