domingo, 4 de dezembro de 2022

SONHO DE UMA TARDE DE VERÃO (Conto de Celso Lopes)

 

Prezado Celso, bom dia.  Entramos em contato para informar que o seu trabalho intitulado "Sonho de uma tarde de verão" foi premiado em 1º lugar no 9º Concurso Literário Vinícius de Moraes, que aconteceu durante a XXVII Semana de Tecnologia e XXIII Encontro Escola-Comunidade, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro - campus Nilópolis.


“SONHO DE UMA TARDE DE VERÃO”

Naquele dia, como fosse eu,  o personagem bíblico Pedro, ela me negou três vezes;  a primeira vez que  me negou, estávamos ainda  na concentração da Banda de Ipanema, no Rio de Janeiro “cidade maravilhosa,  cheia de encantos mil /  cidade maravilhosa, coração do meu Brasil...”. Ela dançava em rodopios à frente do seu companheiro. Porém, seus olhos, velozes como um carrossel,  dançavam saltitantes na minha direção. Eu, da minha parte, rodopiava com a   Márcia à minha frente. Embora aquela “princesa” me comesse com os olhos, e se fizesse em sorrisos, evitando se denunciar ao namorado,  fiz, da minha parte, a necessária  conferência:  ele, o acompanhante,  cabelos lisos,  pele queimada,  fazia um  tipo atlético, de bermudas brancas e uma camisa listrada, lembrando os velhos marinheiros. Atribuíssem-lhe uma música, por certo, seria esse, o refrão “ Deus, eu pensei que fosse Deus/ E que os mares fossem meus/como pensam os ingleses/ Mel, eu pensei que fosse mel/ E bebi da vida como bebe/ Um marinheiro de partida...”    Eu,  no entanto,  sempre fui um tipo franzino, de estatura média,  rosto meio rude, mais para o agressivo do que para o expansivo. Musicalizassem o meu perfil paulistano, os versos soariam traiçoeiros: “Meu, eu julguei que fosse meu/ O calor do corpo teu/ Que incendeia meu corpo há meses/ Ar, como eu precisava amar/ E antes mesmo do galo cantar/ eu te neguei três vezes...” .  Quem reparasse com mais  tempo, veria que ele era um tipo puro sorriso, um carioca da gema, ali diante de um paulista deslumbrado no  bloco de  Ipanema. A banda havia dado a largada:    “ Tanto riso, ó,  tanta alegria, mais de mil palhaços no salão,  Arlequim está chorando pelo amor da Colombina  no meio da multidão”...

Eu não me livrava dos olhos que me comiam, os dela. Embora, estivéssemos em sinal de empate: ela com o seu  homem do mar. Eu com a garota da praia, Márcia, mas  antes que da minha parte surgisse qualquer iniciativa, graças à minha surdez precoce aprimorei habilidades de  leitura labial,  assim, pude ler nos lábios de  uma das amigas dela, chamando-a para entrar na  roda: “ Betinha, vem! ... Vem, Betinha!...”  Mas ainda há algo que preciso revelar:  fui radioamador, oportunidade que aprendi  fonética internacional. Portanto, como num piscar de olhos, interpretei e gravei: Bravo Eko  Tango India  November Rôutel Alfa...ou seja, Betinha!  Acompanhando esse  raciocínio, o leitor verá que esse era mesmo  o nome da minha “Rainha do Rio”. E note-se que em  ‘BETINHA’,  a consoante “Bê”, segunda letra do nosso alfabeto, é oclusiva  sonora,  cujo som é pronunciado de forma bilabial, com o uso dos lábios inferior e superior... Assim,  o som me dava razão, o nome era esse:   - BÉ-TI-NHA!...  Soletrei-o com todo interesse. Ela, Betinha, sorriu confirmando o que eu disse. Mas negou-se,   veementemente,  a emitir qualquer  resposta ao meu sinal, meticulosamente elaborado com a ponta do indicador  rodopiando,  a indicar-lhe um encontro para depois.   Naquele momento, a banda explodia em  tons  fortes e ritmados:  “ Mamãe eu quero, mamá.... Mamãe eu quero, mamá!...”  Quando Betinha negou-me pela segunda vez, eu já estava sem companhia alguma. Um paulistano solitário  em meio a mais de dez mil pessoas, dançando pelas ruas do Rio.  Márcia livrara-se dos meus braços e abraços e seguira cortando a multidão...  Betinha , no entanto, eu a mantinha sob meus olhos e acenos.  Seu nome espocou-me, novamente, boca afora na minha linguagem particular:-  BRAVO-EKO-TANGO-INDIA- NOVEMBER- HÔTEL -ALFA...  

Ela, parecendo me entender, continuava enebriada e triunfal, envolvida que estava nos braços do seu marinheiro particular, sonhando, talvez,  com um mar calmo e esplendoroso. Instantes depois, um “grito” de silêncio!... Silêncio?... Algo  acontecera. Afinal, qual a  razão de  cessar o som, para logo a seguir emendar aquela triste melodia? “- Meu coração/ não sei por quê,  bate feliz,  quando te vê...” 

Logo depois  todos soubemos do ocorrido: o compositor Pixinguinha havia morrido naquele instante. A assim, a Banda tratou de mudar o ritmo carnavalesco para uma homenagem delicadíssima  ao talentoso músico e compositor brasileiro.  E sob os acordes grandiloquentes de  “Carinhoso”,   eu me vi  transformado num Mestre-Sala, tendo ao meu lado,  Betinha  como Porta-bandeira!... Rod0opiávamos em festa no leito asfáltico até alcançarmos  o bar  Veloso, na Montenegro,  em Ipanema.  Nossos olhos, impactados, pareciam nos perguntar como na bíblia, quem cometeria o maior pecado: se  Pedro ao negar Jesus por três vezes,   ou   Judas ao traí-lo com o beijo na face?...  Betinha ria,  ria muito,  ria solta nos braços do seu homem.  Parecia, ali,  ter também o  dom de ler os meus lábios que não silenciavam nunca,  porque queriam lhe dizer, assim  à queima roupa,  que tomasse uma  decisão, qualquer que fosse...   Era como se eu lhe dissesse: “Vai, Betinha  cometa seu pecado... Prometo - dizia-lhe eu-  prometo  não defini-la como uma mulher qualquer, pois como Jesus-  insisti – como Jesus, abstenho-me da classificação de pecados...”.   Naquela imaginação tardia,  Betinha e eu desfilávamos à frente da Verde-e-Rosa num sambódromo imaginário. Ali, éramos os  protetores e guardiões da escola, conduzindo o povo com leveza e  graça... Voltei-me para Betinha  em meio às amigas e ao amante carioca,  e perguntei-me, como se o fizesse a ela: quando negamos a Jesus? ...  Tendo o silêncio como resposta, entendi que ela me negara novamente. E ao negar-me pela terceira vez, não se dera conta do desastre. Eu, como Pedro em sua trajetória, não me igualaria a Judas, pois tinha um coração tratável. Assim, arrastei-me ao gesto final e arrebatador .  Não demorou para que em meu rosto,  eu sentisse as batidas que, cumprindo o ritual bíblico de oferecer a outra face, a parte  atingida cedia lugar ainda sem a dor. E como num sonho de uma tarde, em que se desperta  sem saber da cruel realidade, despertei-me, ali, jogado ao meio-fio, abatido como uma caça ordinária e desprezível. Márcia tentava pela enésima vez,  como me dissera,  colocar-me de pé, apoiar-me junto à porta do  bar Veloso.  E, pacientemente,   com ar desconfiado, relatou-me que  tive um castigo merecido, depois que  dirigi alguns “ataques e gracinhas, numa linguagem estranha e confusa para a namorada de um marinheiro”.  Meus olhos, ainda  paralisados,  atribuíram à Márcia,  as notas finais daquela composição  que me surgira, ali,  em plena tarde nas ruas de Ipanema: “ Cais, ficou tão pequeno o cais/ Te perdi  de vista para nunca mais/ Mais, mais que a vida em minha mão/ Mais que a jura de um cristão/ Mais que a pedra desse cais/ Eu te dei certeza/ Da certeza do meu coração/ Mas a natureza vira mesa da razão!”

 

Nota: texto inspirado, livremente, com referências na letra musical “ Embarcação” (Tom Jobim/Chico Buarque). 






quarta-feira, 20 de julho de 2022

BIENAL DO LIVRO SP 2022 Lançamento

 Estande da BIBLION - Lançamento do Livro ref. ao concurso de Contos ANNA MARIA MARTINS coordenado pela UBE (União Brasileira de Escritores) e Editora Laranja Original. Nas fotos  que seguem os organizados e escritores selecionados neste Concurso. 



LEIA O TEXTO SELECIONADO NO CONCURSO UBE ANNA MARIA MARTINS.
O ANJINHO DOS CATECISMOS -  Autor Celso Lopes. Ao final, confira a RESENHA
da autora Cristina Carvalho sobre o Conto. 


“O ANJINHO DOS CATECISMOS”.

Andrázio olha pela fresta do vitrô o polvoroso formigueiro da  Rio Branco. O galãzinho ensaia passos ariscos, quer fugir  porta afora e respirar o ar da rua. Mas não resiste a  si mesmo e ajeita os cachos encaracolados  no espelhinho  cor-de-abóbora -  um presentinho da Mãe,  que vive  jogado  no quarto-e-sala.. O Pai, o Pai  que o esqueça – resmunga o heroizinho, um tantinho amargurado.  Defunto que descansa,  o Velho.  Proibir a viola, pensava o quê?...   Então,  não  podia ser violeiro como  os outros?  O Velho nunca teve  paciência com eles:  - uns vadios!.. . E  pra quê lembrar isso? Desabafa: - A infância passei  assim-assim cortando um riscado. O diabo na cruz, o que eu  sofria olhando a surda-muda  dependurada.  As mãos, essas,  ainda hoje sentindo  a dor  da  gaze.  Dez anos com os dedos amarrados juntos, enfaixados,  pra não tomar  gosto  pelo instrumento. A viola que ficasse ali – insistia o Pai,  me amedrontando.  A Mãe, a Mãe  tinha que cumprir, senão... 

Depois que  se penteia, o heroizinho joga-se de quatro atrás do pisante de salto alto.  Cinco centímetros  de sola, o sapato que vendem na internet. Se o sujeito não cresce, devolvem o dinheiro.  Ô diacho de vida, só agora  é que descobri o Paco Rabanne – suspira o herói.  O difícil foi encontrar o perfume nas espeluncas da Rio Branco. O galãzinho experimenta um pinguinho, mas  controla-se, muquirana. Pensou  melhor  e liberou  um tequinho para o encaracolado  dos cachos.  As  madeixas  de um anjo, o Anjinho dos catecismos,  o narciso. 

Agora,  agora os dedos em cruz  pra  chamar  a  boa-sorte - sorri o galãzinho. Agora, agora as batidinhas na madeira  pra garantir  o primeiro-prêmio com as Zinhazinhas das Grandes Galerias.  Ai, quem dera eu resistisse aos ataques das sainhas curtas – insiste, o malandrinho.   Andrázio detém-se, outra vez,  diante do espelhinho  cor-de-abóbora. Impacienta-se com os traços de um risinho de lagarto – deixando ver a sua pele rugosa;  agora, agora guardar o Paco-Rabanne, e sentir a essência  ganhando  vida e se exalando lisérgica no quarto-e-sala, penetrando os espaços e as  frestas,  bem na hora exata. A hora exata!...

Luciene insiste na campainha. O herói  avalia os contornos da Zinhazinha  pelo olho-mágico: naturalmente linda e recém-chegada ao mundo dos homens; cabelos louros,  entremeado pelos olhinhos verdes  da ascendência  germânica. A blusinha rosa, de seda fina,  deixando ver os seios eretos.  As coxas?  Ah!... torneadas,  torneadíssimas -  suspira guloso e maquiavélico, o galãzinho.  Os botõezinhos de madrepérola, enviesados, sustentando o decote generoso de Luciene, que do outro lado, já ensaia  um discurso  de amorzinho-doce,  só pra atentar.  Só pra  me atentar  -  reage,  sem modéstia,  o petulante.  Antes que abra o refúgio,  o herói lembra a si mesmo: não esquecer nunca,  nunquinha, o  sapato de guerraTenho pés com defeito, não, mãe!  A  estatura é que manga comigo. Sou abaixo de menino. A vida inteira eu  usando cuequinha infantil!...   Um anjinho do bem, Luciene, protegendo o galãzinho da quina da mesa. Ao abrir o muquifo, Andrázio garantiu-se com o peito estufado, segurando a respiração, a todo custo.  A Branca-de-Neve desaba em sorrisos, inocentinha que só, a Chapeuzinho Vermelho:   “- No restaurante, quando você jogou o bilhetinho, Andrázio,  quase caiu no colinho  de mamãe. Se  pega, me mata.  Morri de medo... abusado que nunca vi,  você!...”

Um quarto-e-sala, o matadouro.  O sofazinho de canto, a armadilha. O assento largo sem o apoio dos braços, onde as Zinhazinhas  se  estiram liberando as sainhas curtas sensuais.  Veneninho de cobra criada que me endoidece, sorri o galãzinho convencido:  deixando meio-a-meio, prossigo pra todo e sempre! ...Luciene se derrete amorosa:  - Você que não me abuse... não venho mais, quer?...   Generosidade folgada, a sainha. Os seios explodindo... Vem, vem... pode me pegar que sou teu! -   propagandeia,  o demagogo. Luciene  provocando os arrepios:   “ – Sabe,  Andrázio...” A frase nem bem ecoa e  o heroizinho já treme. Puxa o escudo invisível  e se protege das sílabas  que o atordoam. Como pode? Uma molequinha dessas com essa cara de mulher! E tenho lá culpa de atrair essas Zinhazinhas? Tenho, hein? Ou é o mundo que vai virando e revirando desse jeito agridoce. Uns ares de menina, moça, mulher, que topete!...Viu coisa assim antes, Doutor?. Luciene adiantada, à espera do novo século:  “-   Sabe, Andrázio, um coroa,  ainda agorinha, me paquerando!... Não se enxerga, o velhote! Serve de meu Pai, o lazarento!...”

Andrázio experimenta o sufoco,  sentindo a autoestima desabar em queda livre. O herói sofre o tremor. Desespera-se.  Põe-se de prontidão atrás da cômoda. E se a danadinha perguntar-lhe a idade?  Aflige-se, o pobrezinho diante do espelhinho cor-de-abóbora, enxergando nas entrelinhas do rosto, os pedacinhos e as trincas que se estilhaçam formando rugas e  pés-de-galinha.   As  mãos ariscas e desobedientes  desandam o cálice ao sabor das palavras  de Luciene. Flechas certeiras,  as frases dessa Zinhazinha no quarto-e-sala.  Rabo-de-saia me atiçando, comove-se o herói, mantendo os olhos e ouvidos duplamente atentos na psicologia da endiabrada:- Imagine, Andrázio... o  bode-velho querendo me levar no  Motel!...

O heroizinho atordoa-se. Entre esquivo e sorrateiro,  recosta-se no sofá, com o rabinho dos olhos na escultura de Luciene.  O quarto-e-sala da Rio Branco, a armadilha. O sofazinho de canto sem o apoio dos braços, a estratégia.  O herói estanca a mãozinha boba, mas não resiste ao  gesto.   Luciene sem os sapatos, libertando  o tempo e o estilo. Estonteante primavera de dois dígitos.  Idade 19,  16 e meio, o corpinho.  O sofazinho da sala, um tantinho inclinado, a arquitetura do plano -  confirma o herói.  Um corpinho que se deixa, malemolente, ali, estirado e seminu. Ai quem me dera... os doze botõezinhos de madrepérola que meus dedinhos entreabrem – suspira o herói. A blusinha escorrega ladina, deixando ver a pele nua de um corpo danadinho.  A arte emoldurada -  garante o safadinho. Os botõezinhos de madrepérola revelam-se almas gêmeas  à espera de qualquer  mão boba que ande, avance, oriente, caminhe, percorra, ensine, alise, rodopie e faça cócegas.... O herói tremelica  só de lembrar. Agora,  agora deslizar o zíper, dente a dente, a engrenagem entrelaçada caminhando suave-suave sobre a pele nua de Luciene  – Um Deus que me acuda – sorri o convencido. O minhonzinho de coxas roliças no puro sorriso.  Um filé do Moraes, esse  manjar dos deuses – afirma o heroizinho.  Rã à milaneza do Parreirinha, o que aprecio por demais, reitera Andrázio,  já com  água na boca. Hoje, hoje com Luciene, matar a sede. Livrar-se dos botõezinhos de madrepérola: doze, onze, dez, nove, oito, sete, seis, cinco... ensaia o petulantezinho.  Luciene sorri,  tagarelando aos quatro ventos:

- Alicinha, minha amiga,  não vai me perdoar nunca...Eu, quase nua,   a  bem dizer,  nuazinha,  aqui contigo nesse sofazinho,  Andrázio! ...

Um quarto e sala na Rio Branco, o matadouro. O sofazinho da sala com o assento largo, sem o apoio dos braços,  o meu golpe – vocifera o ferino.   Hoje, se escapo dessa, sou Mariano, um marianinho de Igreja, benzedor de  pai-nosso e salve-rainhas. O galãzinho  recolhe os pedaços do cálice, atropelado pelas mãos trêmulas.  Acocorado sobre o tapete, ouve,  sem entender,  as palavras que lhe chegam carentes de sentido... ou talvez,  um tanto novas, ousadas e vigorosas. Andrázio engole as sílabas dessa ladainha, e sem se dar conta, transforma-se em lobo manso. Um cordeiro-de-Deus somando as contas de três dígitos, insatisfeito com  o patrimônio. A dorzinha  no peito beirando febre de 39, nenhum verso maior, nenhuma frase maior...  só os antibióticos!... Luciene engatilha a arma e aponta o  alvo: “ - O  velhote, quantos anos tinha?...  30, penso!...  Por que, Andrázio?1...”

O herói sente-se no fio da navalha.  Uma fera enjaulada junto  às esquinas,  entre o espanto e a cópia xérox. Os pés tropeçando  sobre os estilhaços de vidro.  Quem dera um demoniozinho  pra me  fazer a mea-culpa, mea-culpa, minha   máxima culpa. Agora, agora pegar os caquinhos com as mãozinhas ágeis - suspira o herói.  Andrázio suga o “veneninho” que lhe jorra do indicador ferido e  revolta-se de vez. transformado  numa besta emburrada. Um heroizinho mudo.  Um herói  em frangalhos, fora  do tempo e lugar. Bandeira a meio-pau,  o galãzinho sofrendo um dia-martelo que bate, bate, bate, sem nunca  atingir a poesia!...Quem dera o amor antigo, único, não esse, desconfiado, que trucida  em golpes de nocaute. Abatido, o heroizinho  sente o peso dos punhos de Luciene no seu queixo  de vidro. Ela, de pé, as mãos levantadas à espera do troféu, o cinturão do amor.  Ele, Andrázio, nocauteado, franzininho que dói. Um a menos na história. O número mil ao contrário – um Mil de tabaréu.  O herói debruçadinho sobre si  mesmo, os olhinhos parados  e suplicantes, teimando em ver os botõezinhos de madrepérola sorrateiros e displicentes ao entreaberto lento das suas  mãozinhas frágeis. Taradinho, o que sou - tenta se convencer, o pobrezinho. Um homenzinho abatido no matagal da memória, engolindo  seco os prantos de uma viagem sem volta. Leoa no cio, Luciene. Os olhos certeiros, guardando no odre mil verbos à espreita, milhares,  à espera de uma  paixão fulminante:   “ - Ora, Andrázio... você não é tão velho assim!...  me beija!... beija!...”  

Descaidinho, o herói. Um homenzinho surdo-mudo sem o dom de ler os lábios. Carente de linguagem, o infeliz. Um tantinho encabulado no quarto-e-sala.  O  galãzinho deitado em curva, como um feto,  apoiando-se  nas almofadinhas, garantindo os doces afagos da donzela. Luciene alisa os cachinhos do Anjo. Um Anjinho dos catecismos... Andrázio, sem se dar conta, choraminga baixinho, deixando ver no soluço quase imperceptível, uma lagriminha teimosa misturada à essência do seu Paco-Rabanne!...

 

 RESENHA DA POETA  " CRISTINA CARVALHO"

 A contemporaneidade e seu retrato literário

Basta ler “O anjinho dos catecismos” de Celso Lopes.

Na primeira linha do seu conto, já percebo seu registro “underground” como  roteirista de cinema brasileiro. Muito orgulho em poder reconhecer no primeiro instante. E melhor, estarmos contemporâneos na Literatura.

Muito instigante o texto ao traduzir uma sensualidade que se aproxima e

envolve, porém se contém naquele momento e o percebe em tanta riqueza

poética, nos detalhes que deixam brechas para o grotesco. Porém, o caminho não é esse, não se chega a um finalmente. É como se uma câmera aproximasse os detalhes e explorasse a cena no que tem de melhor.

Cada detalhe é o sutil que vai “carregando” o texto na sua melhor imagem,

como se fossem os ajustes de uma câmera para pegar a melhor luz e finalizar num “close”. “Os botõezinhos de madrepérola...à essência do seu PacoRabanne”.

 

Me perdoe, mas não dá pra ler sem se remeter ao Cinema, a sétima arte que

vem permeando o texto e se traduzindo como fazer poético-literário, transmutado em conto.  É incrível, quando tudo se transportaria em segundos numa cena, no  contexto literário o tempo permanece em “suspenso” e atinge um lugar onde o cronológico não existe. Há um momento em que o texto penetra na sétima arte,  se “recarrega” e volta.

Esta é a percepção que o conto nos traz. Atinge o ponto de junção, a intersecção das artes. E nos mostra que este momento está no nosso entorno,o tempo todo.  

 

Basta parar por um segundo na Av. Rio Branco.

 


CRISTINA CARVALHO / Julho 2022

sexta-feira, 15 de julho de 2022

DUELO SOBRE A MESA

 II CONCURSO LITERÁRIO – MARIANA CAZELLA MACIEL  - Promoção:  Projeto NEPLLI – Núcleo de Ensino e Pesquisa em Língua e Literatura  / Curso de Letras -  Instituto Federal do Paraná -  Campus Palmas  - Realização:   maio/junho 2020  Classificação:  1º. Lugar . 


                                              DUELO  SOBRE A MESA 


Um dos peritos, impressionado pelo fulgor do embate, chegou a citar, textualmente,  “o caótico rio de pedras”,  narrado pelo escritor  Umberto Eco*. E não sem razão; há de se acreditar, insistia o perito,  que no auge desse enfrentamento imperioso, o interior de ambos seguia em contínua ebulição, revelando uma torrente furiosa, tal qual uma “correnteza de grandes rochas informes, placas irregulares e cortantes como lâminas, e amplas como pedras tumulares (...). Aos olhos do perito, fora assim o duelo entre  Dona Branca e o Professor Pio. Quem os conheceu no dia a dia  informava que as desavenças entre ambos, não raro, surgiam  após um  silêncio profundo; nessas horas o ar ficava pesado e  fazia brotar,  às claras, um rancor íntimo desencavado. Acredita-se, informam os peritos, que esse conflito pode ter sido acentuado  pelo toque de se recolherem ao lar, uma vez que integravam o grupo de risco imposto pela Pandemia. Foram encontrados, ali, sentados, frente a frente, na mesa da sala; cada qual em seu canto  com a cabeça curvada e apoiada sobre o braço;  o olhar de cada  um deles parecia,  certeiramente,  dirigido ao outro. Lá estavam,  inertes, até a descoberta. Cansado de ligar para os pais, o filho informou ao Zelador do prédio, e este,  pressentindo algo estranho, levou o caso  à  polícia, que, instantes depois, solicitou a abertura do local e  posterior autópsia. O casal vivia há muitos anos naquele prédio do bairro. Ela, uma antiga professora de história; ele,  ex-chefe de laboratório de biologia da faculdade, onde se conheceram ainda bem jovens.  A perícia técnica apresentou anotações, laudos, infográficos  e fotos, destacando um considerável número de Palavras Cruzadas abertas; um Volume sisudo de cor marrom;  dois Dicionários que,   pelas digitais,  disseram os peritos,  o Caldas Aulete seria o  da Mulher, e o Aurélio, o do Homem.  A perícia indicou que as sandálias da Mulher deixaram rastros. Observou-se  que teria se deslocado até à cozinha, onde tomara café na térmica;  depois,  deteve-se  na estante da sala, de onde retirou o Volume marrom, que destacava na página interna: “Instrumentos de Guerra da Antiguidade”. Segundo a perícia,  tratava-se  de relatos sobre   estratégias dos antigos exércitos, como o  “Apito da morte”, descrito, ali, como “um objeto sonoro criado pelos Astecas, que simulava  estridentes gritos  de pessoas em sofrimento,  induzindo os adversários a um estado de transe desesperador.”  Apanhado o livro,  Dona Branca  se dirigira  à mesa do embate.  Então, ali, o duelo teve início para ambos.  Cada qual com os seus compêndios de Cruzadas. Segundo os peritos, era quase possível “ver” a agilidade da Mulher no desafio das verticais e horizontais, sem tréguas ao adversário;  indicaram ainda, que, em  determinado instante, os olhos da Mulher foram  ao encontro dos olhos  do Homem.  O abalo causado por esse olhar, disseram eles, fragilizara o  oponente.  Na praça de guerra,  o espalhamento das revistas acenava com que a estratégia do Homem seguia rápida com rigorosa atenção nas armas de combate.  Ao Homem, fortaleciam-lhe as  publicações relativas a  filmes, teatro, música,  biologia  e literatura química. Novamente, “pressentia-se”  a voz  da Mulher de forma  explosiva  no território da disputa. Podia se ler, com clareza, uma das perguntas: “Animal mitológico associado à virgindade, tem a  forma de um cavalo com um único chifre frontal?”.   Bingo.  “Unicórnio”. Assim assinalara a Mulher.  Ao Homem,  restava-lhe o sofrimento frente à  pergunta quase sussurrada: “- O  nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo?”. Segundo os peritos, os sinais mostravam, vivamente, que o professor Pio  estancara-se com a caneta no ar; pois sentia, naquele embate infernal, a Mulher apontando-lhe as  armas de Guerra. Aquelas tamanhas e poderosas, como a Catapulta, arma de ataque capaz de quebrar barreiras dos homens, especialmente, os encastelados  e protegidos em  cidades muradas.  Haveria de destruí-lo, caso ele persistisse. Lançaria sobre seu adversário as mais potentes armas,  que haveriam de liquidá-lo no interior do palácio.  Recuasse, portanto,  ou então,  receberia o golpe  mortal:  haveria de lhe atirar a maldição das  esposas incompreendidas!... Para os peritos,  a mente do Homem dirigira-o  para a área química. Ou ele a superaria agora ou haveria de viver  a maldição das esposas  abandonadas. O Homem sussurrava, exalando suor frio. Ele sentira o baque. Doeu-lhe a força desse punho gigante da Mulher à sua frente.  Por isso, olhava, agora, de dentro do seu próprio silêncio, para dona Branca,  enquanto  lançava  mão do seu  Aurélio:  - O nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo!...   No entanto, as tentativas se mostraram  infrutíferas e o  silêncio fora  quebrado, apenas,  pela  retórica ascendente  da Mulher.   “ - o  Santo Graal também é chamado de.....?”.  Neste ponto,  os peritos adicionaram ao laudo:  “ na sala avolumada de  silêncio, podia ser percebido os contornos grandiosos dos olhos  do Homem e da Mulher,   como fossem eles, Dona Branca e o Professor Pio,  os guerreiros autênticos  das   antigas Cruzadas, os  soldados de Cristo.”.  Então, enquanto a Mulher já se  debruçava  nos desafios da sua  Coquetel Super,  um certo  vazio  se instalava  no ambiente.  Agora,  as horizontais da Passatempo do Homem pediam ajuda aos deuses da sabedoria:  “ - Trepadeira comum em muros -  com quatro letras?  - A flor da idade, no sentido figurado -  com nove letras?”... Enquanto o Homem  entendia a  necessidade urgente dessas  respostas,  ela, a Mulher, garantem os peritos, ganhava distância  a olhos vistos. As palavras cruzadas exigem mais que  uma brincadeira - ironizava em seu silêncio -  como se mostrasse a ele, ao Homem,  que as Cruzadas não brincam.  Então, a Mulher preparou-lhe  um  olhar fulminante repleto de força bruta sonora:   “Lutar com palavras  é a luta mais vã.  Entanto,  lutamos  mal rompe a manhã(**)”. E tomada pelo poder dessas palavras ditas,   eis que, então, sob suas mãos, elas, as palavras,  ganharam formas definidas de ataques:  primeiro  as pontiagudas,  depois as  cortantes,   e por fim,  as explosivas... E assim, a Mulher  lançara, inapelavelmente,  sobre Homem, os seus escudos especiais. Ao Homem,  restava-lhe manter a distância adequada para não ser ferido de morte. Mas para sua festa surgiram os filmes, teatro, música,  artistas  e afins.  O Homem sorriu largo,  pois, se sentia no páreo; E assim seguiu ele, devorando com gulodice as suas anotações:  - Em que cidade nasceu Yusuf Islam  ( conhecido como Cat Stevans?)   - Qual série de TV tinha como protagonista o Ator Peter Falk?  ... Como  previsto, o Homem avançou  três  compêndios e cinco páginas, mas ainda era pouco. No entanto, com o rabo-dos-olhos ele percebeu que a incomodara.  A Mulher, ali, embatucara-se diante dos  símbolos químico....Ele ouviu, sim,  a ênfase retórica,  insistente, carregada  de  nervosismo:  - Enxofre?.... Lítio?...A mente não lhe faltaria nessa hora – sorriu triunfante.   A  toxicidade das substâncias químicas dançava  à sua frente,  como um gás mostarda, cloro,  ácido cianídrico...  mas ele, ali,  definira-se pelo Napalm -   O  gel pegajoso e incendiário  usado nas guerras trágicas do  Vietnã, Laos e Camboja... porém,  confessava a si mesmo que não viveria a dor do engenheiro Jeff O. Stanford – Chefe do Laboratório Químico dos USA,  responsável pelo envio do Napalm às frentes americanas que, diante do grito antibélico do mundo, e culpando a  si mesmo  pelo genocídio,  suicidara.  Assim, a Mulher, novamente, ganharia a dianteira: - Península que abriga a Grécia e a Croácia?  - Nome de Deuses da Mitologia Grega?... E então,  decidida  a trucidá-lo, sem perdão,  tomou para si as armas decisivas.  Com destreza e maestria, Dona Branca apossara-se dos Estrepes e Culverins; segundo os peritos,  “armas medievais atiradas  contra a  cavalaria inimiga”. Desviando desse campo minado,  o Homem titubeava em seu abecedário: - Substância encontrada em vegetais, de grande importância  para o funcionamento do intestino?. Os passos  seguintes formariam a barreira implacável. O Homem sofria a cada pergunta que preferia  não ouvir:   - O maior império do mundo (em duração)? - Rei pagão denominado pelos judeus como o Messias?... As muralhas e fortificações,  postas ao chão naquela guerra,  levaram-no à rendição. O ar, agora, lhe faltava – disseram os legistas. Portanto, febril, cansado e ofegante, ele se acomodara sobre a mesa, com a cabeça inclinada no braço curvado, e o olhar, certeiramente, dirigido às  pupilas da Mulher.  E então,  a Mulher, com sua respiração traumática naquela batalha sangrenta,  em que vencera  o homem encastelado, numa luta silenciosamente inumana, reconhecera no antagonista, conforme a perícia,  um guerreiro, alguém de valor  e  à altura, o que a  levara à rendição definitiva.  A ausência do ar, agora, sufocava a ambos – disseram os exames. Portanto, também ela, Dona Branca,  acomodara-se na mesa com a cabeça inclinada  e o olhar certeiramente dirigido às retinas do professor Pio!... Fortalecendo a narrativa técnica, o perito retomaria o “caótico rio de pedras”, criando, aleatoriamente, um  apoteótico final:  “nenhuma voz humana podia se fazer ouvir naquele instante fatal sobre o duelo na mesa;  embora ambos, ali,  tivessem o desejo de falar, de se despedirem de toda a carga de emoção que arrastavam consigo, não conseguiriam. O ‘rio de pedras’ interior que os conduzia, enfurecia-se cada vez mais, levando tudo ao redor  para as invisíveis vísceras da terra, pulverizando cascalhos, blocos e rochas para exprimir, talvez,  a impotência maior  do Homem e da Mulher frente ao embate  do vírus vencedor.”  

 

 

Nota:  (*) Umberto Eco – Confissões de um jovem romancista. Ed. Record/2018.

 (**)   Versos do poema    “O Lutador” – Carlos Drummond de Andrade. 

 

 

 

Texto:  Celso Lopes

 

II CONCURSO LITERÁRIO – MARIANA CAZELLA MACIEL Promoção:  Projeto NEPLLI – Núcleo de Ensino e Pesquisa em Língua e Literatura Curso de Letras -  Instituto Federal do Paraná -  Campus Palmas Realização:   maio/junho 2020  Classificação:  1º. Lugar  -  Conto:   DUELO SOBRE A MESA