quarta-feira, 20 de julho de 2022

BIENAL DO LIVRO SP 2022 Lançamento

 Estande da BIBLION - Lançamento do Livro ref. ao concurso de Contos ANNA MARIA MARTINS coordenado pela UBE (União Brasileira de Escritores) e Editora Laranja Original. Nas fotos  que seguem os organizados e escritores selecionados neste Concurso. 



LEIA O TEXTO SELECIONADO NO CONCURSO UBE ANNA MARIA MARTINS.
O ANJINHO DOS CATECISMOS -  Autor Celso Lopes. Ao final, confira a RESENHA
da autora Cristina Carvalho sobre o Conto. 


“O ANJINHO DOS CATECISMOS”.

Andrázio olha pela fresta do vitrô o polvoroso formigueiro da  Rio Branco. O galãzinho ensaia passos ariscos, quer fugir  porta afora e respirar o ar da rua. Mas não resiste a  si mesmo e ajeita os cachos encaracolados  no espelhinho  cor-de-abóbora -  um presentinho da Mãe,  que vive  jogado  no quarto-e-sala.. O Pai, o Pai  que o esqueça – resmunga o heroizinho, um tantinho amargurado.  Defunto que descansa,  o Velho.  Proibir a viola, pensava o quê?...   Então,  não  podia ser violeiro como  os outros?  O Velho nunca teve  paciência com eles:  - uns vadios!.. . E  pra quê lembrar isso? Desabafa: - A infância passei  assim-assim cortando um riscado. O diabo na cruz, o que eu  sofria olhando a surda-muda  dependurada.  As mãos, essas,  ainda hoje sentindo  a dor  da  gaze.  Dez anos com os dedos amarrados juntos, enfaixados,  pra não tomar  gosto  pelo instrumento. A viola que ficasse ali – insistia o Pai,  me amedrontando.  A Mãe, a Mãe  tinha que cumprir, senão... 

Depois que  se penteia, o heroizinho joga-se de quatro atrás do pisante de salto alto.  Cinco centímetros  de sola, o sapato que vendem na internet. Se o sujeito não cresce, devolvem o dinheiro.  Ô diacho de vida, só agora  é que descobri o Paco Rabanne – suspira o herói.  O difícil foi encontrar o perfume nas espeluncas da Rio Branco. O galãzinho experimenta um pinguinho, mas  controla-se, muquirana. Pensou  melhor  e liberou  um tequinho para o encaracolado  dos cachos.  As  madeixas  de um anjo, o Anjinho dos catecismos,  o narciso. 

Agora,  agora os dedos em cruz  pra  chamar  a  boa-sorte - sorri o galãzinho. Agora, agora as batidinhas na madeira  pra garantir  o primeiro-prêmio com as Zinhazinhas das Grandes Galerias.  Ai, quem dera eu resistisse aos ataques das sainhas curtas – insiste, o malandrinho.   Andrázio detém-se, outra vez,  diante do espelhinho  cor-de-abóbora. Impacienta-se com os traços de um risinho de lagarto – deixando ver a sua pele rugosa;  agora, agora guardar o Paco-Rabanne, e sentir a essência  ganhando  vida e se exalando lisérgica no quarto-e-sala, penetrando os espaços e as  frestas,  bem na hora exata. A hora exata!...

Luciene insiste na campainha. O herói  avalia os contornos da Zinhazinha  pelo olho-mágico: naturalmente linda e recém-chegada ao mundo dos homens; cabelos louros,  entremeado pelos olhinhos verdes  da ascendência  germânica. A blusinha rosa, de seda fina,  deixando ver os seios eretos.  As coxas?  Ah!... torneadas,  torneadíssimas -  suspira guloso e maquiavélico, o galãzinho.  Os botõezinhos de madrepérola, enviesados, sustentando o decote generoso de Luciene, que do outro lado, já ensaia  um discurso  de amorzinho-doce,  só pra atentar.  Só pra  me atentar  -  reage,  sem modéstia,  o petulante.  Antes que abra o refúgio,  o herói lembra a si mesmo: não esquecer nunca,  nunquinha, o  sapato de guerraTenho pés com defeito, não, mãe!  A  estatura é que manga comigo. Sou abaixo de menino. A vida inteira eu  usando cuequinha infantil!...   Um anjinho do bem, Luciene, protegendo o galãzinho da quina da mesa. Ao abrir o muquifo, Andrázio garantiu-se com o peito estufado, segurando a respiração, a todo custo.  A Branca-de-Neve desaba em sorrisos, inocentinha que só, a Chapeuzinho Vermelho:   “- No restaurante, quando você jogou o bilhetinho, Andrázio,  quase caiu no colinho  de mamãe. Se  pega, me mata.  Morri de medo... abusado que nunca vi,  você!...”

Um quarto-e-sala, o matadouro.  O sofazinho de canto, a armadilha. O assento largo sem o apoio dos braços, onde as Zinhazinhas  se  estiram liberando as sainhas curtas sensuais.  Veneninho de cobra criada que me endoidece, sorri o galãzinho convencido:  deixando meio-a-meio, prossigo pra todo e sempre! ...Luciene se derrete amorosa:  - Você que não me abuse... não venho mais, quer?...   Generosidade folgada, a sainha. Os seios explodindo... Vem, vem... pode me pegar que sou teu! -   propagandeia,  o demagogo. Luciene  provocando os arrepios:   “ – Sabe,  Andrázio...” A frase nem bem ecoa e  o heroizinho já treme. Puxa o escudo invisível  e se protege das sílabas  que o atordoam. Como pode? Uma molequinha dessas com essa cara de mulher! E tenho lá culpa de atrair essas Zinhazinhas? Tenho, hein? Ou é o mundo que vai virando e revirando desse jeito agridoce. Uns ares de menina, moça, mulher, que topete!...Viu coisa assim antes, Doutor?. Luciene adiantada, à espera do novo século:  “-   Sabe, Andrázio, um coroa,  ainda agorinha, me paquerando!... Não se enxerga, o velhote! Serve de meu Pai, o lazarento!...”

Andrázio experimenta o sufoco,  sentindo a autoestima desabar em queda livre. O herói sofre o tremor. Desespera-se.  Põe-se de prontidão atrás da cômoda. E se a danadinha perguntar-lhe a idade?  Aflige-se, o pobrezinho diante do espelhinho cor-de-abóbora, enxergando nas entrelinhas do rosto, os pedacinhos e as trincas que se estilhaçam formando rugas e  pés-de-galinha.   As  mãos ariscas e desobedientes  desandam o cálice ao sabor das palavras  de Luciene. Flechas certeiras,  as frases dessa Zinhazinha no quarto-e-sala.  Rabo-de-saia me atiçando, comove-se o herói, mantendo os olhos e ouvidos duplamente atentos na psicologia da endiabrada:- Imagine, Andrázio... o  bode-velho querendo me levar no  Motel!...

O heroizinho atordoa-se. Entre esquivo e sorrateiro,  recosta-se no sofá, com o rabinho dos olhos na escultura de Luciene.  O quarto-e-sala da Rio Branco, a armadilha. O sofazinho de canto sem o apoio dos braços, a estratégia.  O herói estanca a mãozinha boba, mas não resiste ao  gesto.   Luciene sem os sapatos, libertando  o tempo e o estilo. Estonteante primavera de dois dígitos.  Idade 19,  16 e meio, o corpinho.  O sofazinho da sala, um tantinho inclinado, a arquitetura do plano -  confirma o herói.  Um corpinho que se deixa, malemolente, ali, estirado e seminu. Ai quem me dera... os doze botõezinhos de madrepérola que meus dedinhos entreabrem – suspira o herói. A blusinha escorrega ladina, deixando ver a pele nua de um corpo danadinho.  A arte emoldurada -  garante o safadinho. Os botõezinhos de madrepérola revelam-se almas gêmeas  à espera de qualquer  mão boba que ande, avance, oriente, caminhe, percorra, ensine, alise, rodopie e faça cócegas.... O herói tremelica  só de lembrar. Agora,  agora deslizar o zíper, dente a dente, a engrenagem entrelaçada caminhando suave-suave sobre a pele nua de Luciene  – Um Deus que me acuda – sorri o convencido. O minhonzinho de coxas roliças no puro sorriso.  Um filé do Moraes, esse  manjar dos deuses – afirma o heroizinho.  Rã à milaneza do Parreirinha, o que aprecio por demais, reitera Andrázio,  já com  água na boca. Hoje, hoje com Luciene, matar a sede. Livrar-se dos botõezinhos de madrepérola: doze, onze, dez, nove, oito, sete, seis, cinco... ensaia o petulantezinho.  Luciene sorri,  tagarelando aos quatro ventos:

- Alicinha, minha amiga,  não vai me perdoar nunca...Eu, quase nua,   a  bem dizer,  nuazinha,  aqui contigo nesse sofazinho,  Andrázio! ...

Um quarto e sala na Rio Branco, o matadouro. O sofazinho da sala com o assento largo, sem o apoio dos braços,  o meu golpe – vocifera o ferino.   Hoje, se escapo dessa, sou Mariano, um marianinho de Igreja, benzedor de  pai-nosso e salve-rainhas. O galãzinho  recolhe os pedaços do cálice, atropelado pelas mãos trêmulas.  Acocorado sobre o tapete, ouve,  sem entender,  as palavras que lhe chegam carentes de sentido... ou talvez,  um tanto novas, ousadas e vigorosas. Andrázio engole as sílabas dessa ladainha, e sem se dar conta, transforma-se em lobo manso. Um cordeiro-de-Deus somando as contas de três dígitos, insatisfeito com  o patrimônio. A dorzinha  no peito beirando febre de 39, nenhum verso maior, nenhuma frase maior...  só os antibióticos!... Luciene engatilha a arma e aponta o  alvo: “ - O  velhote, quantos anos tinha?...  30, penso!...  Por que, Andrázio?1...”

O herói sente-se no fio da navalha.  Uma fera enjaulada junto  às esquinas,  entre o espanto e a cópia xérox. Os pés tropeçando  sobre os estilhaços de vidro.  Quem dera um demoniozinho  pra me  fazer a mea-culpa, mea-culpa, minha   máxima culpa. Agora, agora pegar os caquinhos com as mãozinhas ágeis - suspira o herói.  Andrázio suga o “veneninho” que lhe jorra do indicador ferido e  revolta-se de vez. transformado  numa besta emburrada. Um heroizinho mudo.  Um herói  em frangalhos, fora  do tempo e lugar. Bandeira a meio-pau,  o galãzinho sofrendo um dia-martelo que bate, bate, bate, sem nunca  atingir a poesia!...Quem dera o amor antigo, único, não esse, desconfiado, que trucida  em golpes de nocaute. Abatido, o heroizinho  sente o peso dos punhos de Luciene no seu queixo  de vidro. Ela, de pé, as mãos levantadas à espera do troféu, o cinturão do amor.  Ele, Andrázio, nocauteado, franzininho que dói. Um a menos na história. O número mil ao contrário – um Mil de tabaréu.  O herói debruçadinho sobre si  mesmo, os olhinhos parados  e suplicantes, teimando em ver os botõezinhos de madrepérola sorrateiros e displicentes ao entreaberto lento das suas  mãozinhas frágeis. Taradinho, o que sou - tenta se convencer, o pobrezinho. Um homenzinho abatido no matagal da memória, engolindo  seco os prantos de uma viagem sem volta. Leoa no cio, Luciene. Os olhos certeiros, guardando no odre mil verbos à espreita, milhares,  à espera de uma  paixão fulminante:   “ - Ora, Andrázio... você não é tão velho assim!...  me beija!... beija!...”  

Descaidinho, o herói. Um homenzinho surdo-mudo sem o dom de ler os lábios. Carente de linguagem, o infeliz. Um tantinho encabulado no quarto-e-sala.  O  galãzinho deitado em curva, como um feto,  apoiando-se  nas almofadinhas, garantindo os doces afagos da donzela. Luciene alisa os cachinhos do Anjo. Um Anjinho dos catecismos... Andrázio, sem se dar conta, choraminga baixinho, deixando ver no soluço quase imperceptível, uma lagriminha teimosa misturada à essência do seu Paco-Rabanne!...

 

 RESENHA DA POETA  " CRISTINA CARVALHO"

 A contemporaneidade e seu retrato literário

Basta ler “O anjinho dos catecismos” de Celso Lopes.

Na primeira linha do seu conto, já percebo seu registro “underground” como  roteirista de cinema brasileiro. Muito orgulho em poder reconhecer no primeiro instante. E melhor, estarmos contemporâneos na Literatura.

Muito instigante o texto ao traduzir uma sensualidade que se aproxima e

envolve, porém se contém naquele momento e o percebe em tanta riqueza

poética, nos detalhes que deixam brechas para o grotesco. Porém, o caminho não é esse, não se chega a um finalmente. É como se uma câmera aproximasse os detalhes e explorasse a cena no que tem de melhor.

Cada detalhe é o sutil que vai “carregando” o texto na sua melhor imagem,

como se fossem os ajustes de uma câmera para pegar a melhor luz e finalizar num “close”. “Os botõezinhos de madrepérola...à essência do seu PacoRabanne”.

 

Me perdoe, mas não dá pra ler sem se remeter ao Cinema, a sétima arte que

vem permeando o texto e se traduzindo como fazer poético-literário, transmutado em conto.  É incrível, quando tudo se transportaria em segundos numa cena, no  contexto literário o tempo permanece em “suspenso” e atinge um lugar onde o cronológico não existe. Há um momento em que o texto penetra na sétima arte,  se “recarrega” e volta.

Esta é a percepção que o conto nos traz. Atinge o ponto de junção, a intersecção das artes. E nos mostra que este momento está no nosso entorno,o tempo todo.  

 

Basta parar por um segundo na Av. Rio Branco.

 


CRISTINA CARVALHO / Julho 2022

Nenhum comentário:

Postar um comentário