II CONCURSO LITERÁRIO – MARIANA CAZELLA MACIEL - Promoção: Projeto NEPLLI – Núcleo de Ensino e Pesquisa em Língua e Literatura / Curso de Letras - Instituto Federal do Paraná - Campus Palmas - Realização: maio/junho 2020 Classificação: 1º. Lugar .
Um dos peritos, impressionado pelo fulgor do embate, chegou a citar, textualmente, “o caótico rio de pedras”, narrado pelo escritor Umberto Eco*. E não sem razão; há de se acreditar, insistia o perito, que no auge desse enfrentamento imperioso, o interior de ambos seguia em contínua ebulição, revelando uma torrente furiosa, tal qual uma “correnteza de grandes rochas informes, placas irregulares e cortantes como lâminas, e amplas como pedras tumulares (...). Aos olhos do perito, fora assim o duelo entre Dona Branca e o Professor Pio. Quem os conheceu no dia a dia informava que as desavenças entre ambos, não raro, surgiam após um silêncio profundo; nessas horas o ar ficava pesado e fazia brotar, às claras, um rancor íntimo desencavado. Acredita-se, informam os peritos, que esse conflito pode ter sido acentuado pelo toque de se recolherem ao lar, uma vez que integravam o grupo de risco imposto pela Pandemia. Foram encontrados, ali, sentados, frente a frente, na mesa da sala; cada qual em seu canto com a cabeça curvada e apoiada sobre o braço; o olhar de cada um deles parecia, certeiramente, dirigido ao outro. Lá estavam, inertes, até a descoberta. Cansado de ligar para os pais, o filho informou ao Zelador do prédio, e este, pressentindo algo estranho, levou o caso à polícia, que, instantes depois, solicitou a abertura do local e posterior autópsia. O casal vivia há muitos anos naquele prédio do bairro. Ela, uma antiga professora de história; ele, ex-chefe de laboratório de biologia da faculdade, onde se conheceram ainda bem jovens. A perícia técnica apresentou anotações, laudos, infográficos e fotos, destacando um considerável número de Palavras Cruzadas abertas; um Volume sisudo de cor marrom; dois Dicionários que, pelas digitais, disseram os peritos, o Caldas Aulete seria o da Mulher, e o Aurélio, o do Homem. A perícia indicou que as sandálias da Mulher deixaram rastros. Observou-se que teria se deslocado até à cozinha, onde tomara café na térmica; depois, deteve-se na estante da sala, de onde retirou o Volume marrom, que destacava na página interna: “Instrumentos de Guerra da Antiguidade”. Segundo a perícia, tratava-se de relatos sobre estratégias dos antigos exércitos, como o “Apito da morte”, descrito, ali, como “um objeto sonoro criado pelos Astecas, que simulava estridentes gritos de pessoas em sofrimento, induzindo os adversários a um estado de transe desesperador.” Apanhado o livro, Dona Branca se dirigira à mesa do embate. Então, ali, o duelo teve início para ambos. Cada qual com os seus compêndios de Cruzadas. Segundo os peritos, era quase possível “ver” a agilidade da Mulher no desafio das verticais e horizontais, sem tréguas ao adversário; indicaram ainda, que, em determinado instante, os olhos da Mulher foram ao encontro dos olhos do Homem. O abalo causado por esse olhar, disseram eles, fragilizara o oponente. Na praça de guerra, o espalhamento das revistas acenava com que a estratégia do Homem seguia rápida com rigorosa atenção nas armas de combate. Ao Homem, fortaleciam-lhe as publicações relativas a filmes, teatro, música, biologia e literatura química. Novamente, “pressentia-se” a voz da Mulher de forma explosiva no território da disputa. Podia se ler, com clareza, uma das perguntas: “Animal mitológico associado à virgindade, tem a forma de um cavalo com um único chifre frontal?”. Bingo. “Unicórnio”. Assim assinalara a Mulher. Ao Homem, restava-lhe o sofrimento frente à pergunta quase sussurrada: “- O nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo?”. Segundo os peritos, os sinais mostravam, vivamente, que o professor Pio estancara-se com a caneta no ar; pois sentia, naquele embate infernal, a Mulher apontando-lhe as armas de Guerra. Aquelas tamanhas e poderosas, como a Catapulta, arma de ataque capaz de quebrar barreiras dos homens, especialmente, os encastelados e protegidos em cidades muradas. Haveria de destruí-lo, caso ele persistisse. Lançaria sobre seu adversário as mais potentes armas, que haveriam de liquidá-lo no interior do palácio. Recuasse, portanto, ou então, receberia o golpe mortal: haveria de lhe atirar a maldição das esposas incompreendidas!... Para os peritos, a mente do Homem dirigira-o para a área química. Ou ele a superaria agora ou haveria de viver a maldição das esposas abandonadas. O Homem sussurrava, exalando suor frio. Ele sentira o baque. Doeu-lhe a força desse punho gigante da Mulher à sua frente. Por isso, olhava, agora, de dentro do seu próprio silêncio, para dona Branca, enquanto lançava mão do seu Aurélio: - O nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo!... No entanto, as tentativas se mostraram infrutíferas e o silêncio fora quebrado, apenas, pela retórica ascendente da Mulher. “ - o Santo Graal também é chamado de.....?”. Neste ponto, os peritos adicionaram ao laudo: “ na sala avolumada de silêncio, podia ser percebido os contornos grandiosos dos olhos do Homem e da Mulher, como fossem eles, Dona Branca e o Professor Pio, os guerreiros autênticos das antigas Cruzadas, os soldados de Cristo.”. Então, enquanto a Mulher já se debruçava nos desafios da sua Coquetel Super, um certo vazio se instalava no ambiente. Agora, as horizontais da Passatempo do Homem pediam ajuda aos deuses da sabedoria: “ - Trepadeira comum em muros - com quatro letras? - A flor da idade, no sentido figurado - com nove letras?”... Enquanto o Homem entendia a necessidade urgente dessas respostas, ela, a Mulher, garantem os peritos, ganhava distância a olhos vistos. As palavras cruzadas exigem mais que uma brincadeira - ironizava em seu silêncio - como se mostrasse a ele, ao Homem, que as Cruzadas não brincam. Então, a Mulher preparou-lhe um olhar fulminante repleto de força bruta sonora: “Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto, lutamos mal rompe a manhã(**)”. E tomada pelo poder dessas palavras ditas, eis que, então, sob suas mãos, elas, as palavras, ganharam formas definidas de ataques: primeiro as pontiagudas, depois as cortantes, e por fim, as explosivas... E assim, a Mulher lançara, inapelavelmente, sobre Homem, os seus escudos especiais. Ao Homem, restava-lhe manter a distância adequada para não ser ferido de morte. Mas para sua festa surgiram os filmes, teatro, música, artistas e afins. O Homem sorriu largo, pois, se sentia no páreo; E assim seguiu ele, devorando com gulodice as suas anotações: - Em que cidade nasceu Yusuf Islam ( conhecido como Cat Stevans?) - Qual série de TV tinha como protagonista o Ator Peter Falk? ... Como previsto, o Homem avançou três compêndios e cinco páginas, mas ainda era pouco. No entanto, com o rabo-dos-olhos ele percebeu que a incomodara. A Mulher, ali, embatucara-se diante dos símbolos químico....Ele ouviu, sim, a ênfase retórica, insistente, carregada de nervosismo: - Enxofre?.... Lítio?...A mente não lhe faltaria nessa hora – sorriu triunfante. A toxicidade das substâncias químicas dançava à sua frente, como um gás mostarda, cloro, ácido cianídrico... mas ele, ali, definira-se pelo Napalm - O gel pegajoso e incendiário usado nas guerras trágicas do Vietnã, Laos e Camboja... porém, confessava a si mesmo que não viveria a dor do engenheiro Jeff O. Stanford – Chefe do Laboratório Químico dos USA, responsável pelo envio do Napalm às frentes americanas que, diante do grito antibélico do mundo, e culpando a si mesmo pelo genocídio, suicidara. Assim, a Mulher, novamente, ganharia a dianteira: - Península que abriga a Grécia e a Croácia? - Nome de Deuses da Mitologia Grega?... E então, decidida a trucidá-lo, sem perdão, tomou para si as armas decisivas. Com destreza e maestria, Dona Branca apossara-se dos Estrepes e Culverins; segundo os peritos, “armas medievais atiradas contra a cavalaria inimiga”. Desviando desse campo minado, o Homem titubeava em seu abecedário: - Substância encontrada em vegetais, de grande importância para o funcionamento do intestino?. Os passos seguintes formariam a barreira implacável. O Homem sofria a cada pergunta que preferia não ouvir: - O maior império do mundo (em duração)? - Rei pagão denominado pelos judeus como o Messias?... As muralhas e fortificações, postas ao chão naquela guerra, levaram-no à rendição. O ar, agora, lhe faltava – disseram os legistas. Portanto, febril, cansado e ofegante, ele se acomodara sobre a mesa, com a cabeça inclinada no braço curvado, e o olhar, certeiramente, dirigido às pupilas da Mulher. E então, a Mulher, com sua respiração traumática naquela batalha sangrenta, em que vencera o homem encastelado, numa luta silenciosamente inumana, reconhecera no antagonista, conforme a perícia, um guerreiro, alguém de valor e à altura, o que a levara à rendição definitiva. A ausência do ar, agora, sufocava a ambos – disseram os exames. Portanto, também ela, Dona Branca, acomodara-se na mesa com a cabeça inclinada e o olhar certeiramente dirigido às retinas do professor Pio!... Fortalecendo a narrativa técnica, o perito retomaria o “caótico rio de pedras”, criando, aleatoriamente, um apoteótico final: “nenhuma voz humana podia se fazer ouvir naquele instante fatal sobre o duelo na mesa; embora ambos, ali, tivessem o desejo de falar, de se despedirem de toda a carga de emoção que arrastavam consigo, não conseguiriam. O ‘rio de pedras’ interior que os conduzia, enfurecia-se cada vez mais, levando tudo ao redor para as invisíveis vísceras da terra, pulverizando cascalhos, blocos e rochas para exprimir, talvez, a impotência maior do Homem e da Mulher frente ao embate do vírus vencedor.”
Nota: (*) Umberto Eco – Confissões de um jovem romancista.
Ed. Record/2018.
(**) Versos do poema “O Lutador” – Carlos Drummond de
Andrade.
Texto: Celso Lopes
II CONCURSO LITERÁRIO – MARIANA CAZELLA MACIEL Promoção: Projeto NEPLLI – Núcleo de Ensino e Pesquisa em Língua e Literatura Curso de Letras - Instituto Federal do Paraná - Campus Palmas Realização: maio/junho 2020 Classificação: 1º. Lugar - Conto: DUELO SOBRE A MESA
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