Estande da BIBLION - Lançamento do Livro ref. ao concurso de Contos ANNA MARIA MARTINS coordenado pela UBE (União Brasileira de Escritores) e Editora Laranja Original. Nas fotos que seguem os organizados e escritores selecionados neste Concurso.
Andrázio olha pela fresta do vitrô o polvoroso formigueiro da Rio Branco. O galãzinho ensaia passos ariscos, quer fugir porta afora e respirar o ar da rua. Mas não resiste a si mesmo e ajeita os cachos encaracolados no espelhinho cor-de-abóbora - um presentinho da Mãe, que vive jogado no quarto-e-sala.. O Pai, o Pai que o esqueça – resmunga o heroizinho, um tantinho amargurado. Defunto que descansa, o Velho. Proibir a viola, pensava o quê?... Então, não podia ser violeiro como os outros? O Velho nunca teve paciência com eles: - uns vadios!.. . E pra quê lembrar isso? Desabafa: - A infância passei assim-assim cortando um riscado. O diabo na cruz, o que eu sofria olhando a surda-muda dependurada. As mãos, essas, ainda hoje sentindo a dor da gaze. Dez anos com os dedos amarrados juntos, enfaixados, pra não tomar gosto pelo instrumento. A viola que ficasse ali – insistia o Pai, me amedrontando. A Mãe, a Mãe tinha que cumprir, senão...
Depois que
se penteia, o heroizinho joga-se
de quatro atrás do pisante de salto alto.
Cinco centímetros de sola, o sapato
que vendem na internet. Se o sujeito não cresce, devolvem o dinheiro. Ô
diacho de vida, só agora é que descobri
o Paco
Rabanne – suspira o herói. O
difícil foi encontrar o perfume nas espeluncas da Rio Branco. O galãzinho
experimenta um pinguinho, mas controla-se,
muquirana. Pensou melhor e liberou
um tequinho para o
encaracolado dos cachos. As
madeixas de um anjo, o Anjinho
dos catecismos, o narciso.
Agora, agora
os dedos em cruz pra chamar
a boa-sorte - sorri o galãzinho.
Agora, agora as batidinhas na madeira
pra garantir o primeiro-prêmio
com as Zinhazinhas das Grandes
Galerias. Ai, quem dera eu resistisse aos ataques das sainhas curtas –
insiste, o malandrinho. Andrázio
detém-se, outra vez, diante do
espelhinho cor-de-abóbora. Impacienta-se com os traços de um risinho
de lagarto – deixando ver a sua pele rugosa; agora, agora guardar o Paco-Rabanne, e
sentir a essência ganhando vida e se exalando lisérgica no
quarto-e-sala, penetrando os espaços e as frestas, bem na hora exata. A hora exata!...
Luciene insiste na campainha. O herói avalia os contornos
da Zinhazinha pelo olho-mágico: naturalmente linda e
recém-chegada ao mundo dos homens; cabelos louros, entremeado pelos olhinhos verdes da ascendência germânica. A blusinha rosa, de seda fina, deixando ver os seios eretos. As coxas?
Ah!... torneadas, torneadíssimas - suspira guloso e maquiavélico, o galãzinho. Os
botõezinhos de madrepérola, enviesados, sustentando o decote generoso de
Luciene, que do outro lado, já ensaia um
discurso de amorzinho-doce, só pra atentar. Só
pra me atentar - reage, sem modéstia,
o petulante. Antes que abra o refúgio, o
herói lembra a si mesmo: não esquecer
nunca, nunquinha, o sapato de guerra. Tenho
pés com defeito, não, mãe! A
estatura é que manga comigo.
Sou abaixo de menino. A vida inteira eu
usando cuequinha infantil!...
Um anjinho do bem, Luciene, protegendo o galãzinho da quina da mesa. Ao
abrir o muquifo, Andrázio garantiu-se
com o peito estufado, segurando a respiração, a todo custo. A Branca-de-Neve desaba em sorrisos,
inocentinha que só, a Chapeuzinho Vermelho:
“- No restaurante, quando você
jogou o bilhetinho, Andrázio, quase caiu
no colinho de mamãe. Se pega, me mata. Morri de medo... abusado que nunca vi, você!...”
Um quarto-e-sala, o matadouro. O sofazinho de canto, a armadilha. O assento
largo sem o apoio dos braços, onde as Zinhazinhas
se
estiram liberando as sainhas curtas sensuais. Veneninho de cobra criada que me endoidece,
sorri o galãzinho convencido: deixando meio-a-meio, prossigo pra todo e
sempre! ...Luciene se derrete amorosa:
- Você que não me abuse...
não venho mais, quer?... Generosidade folgada, a sainha. Os
seios explodindo... Vem, vem... pode me
pegar que sou teu! - propagandeia,
o demagogo. Luciene provocando os
arrepios: “ – Sabe, Andrázio...” A frase nem bem ecoa e o heroizinho já treme. Puxa o escudo invisível e se protege das sílabas que o atordoam. Como pode? Uma molequinha
dessas com essa cara de mulher! E tenho lá culpa de atrair essas Zinhazinhas?
Tenho, hein? Ou é o mundo que vai virando e revirando desse jeito agridoce. Uns
ares de menina, moça, mulher, que topete!...Viu coisa assim antes, Doutor?.
Luciene adiantada, à espera do novo século:
“- Sabe, Andrázio, um coroa, ainda agorinha, me paquerando!... Não se enxerga,
o velhote! Serve de meu Pai, o lazarento!...”
Andrázio experimenta o sufoco, sentindo a autoestima desabar em queda livre.
O herói sofre o tremor. Desespera-se.
Põe-se de prontidão atrás da cômoda. E se a danadinha perguntar-lhe a
idade? Aflige-se, o pobrezinho diante do
espelhinho cor-de-abóbora, enxergando nas entrelinhas do rosto, os pedacinhos e
as trincas que se estilhaçam formando rugas e
pés-de-galinha. As mãos ariscas e desobedientes desandam o cálice ao sabor das palavras de Luciene. Flechas certeiras, as frases dessa Zinhazinha no quarto-e-sala.
Rabo-de-saia me atiçando, comove-se o herói, mantendo os olhos e ouvidos
duplamente atentos na psicologia da endiabrada: “- Imagine, Andrázio... o bode-velho
querendo me levar no Motel!...
O heroizinho atordoa-se. Entre esquivo e
sorrateiro, recosta-se no sofá, com o
rabinho dos olhos na escultura de Luciene.
O quarto-e-sala da Rio Branco, a armadilha. O sofazinho de canto sem o
apoio dos braços, a estratégia. O herói
estanca a mãozinha boba, mas não resiste ao
gesto. Luciene sem os sapatos,
libertando o tempo e o estilo.
Estonteante primavera de dois dígitos.
Idade 19, 16 e meio, o
corpinho. O sofazinho da sala, um
tantinho inclinado, a arquitetura do plano -
confirma o herói. Um corpinho que
se deixa, malemolente, ali, estirado e seminu. Ai quem me dera... os doze botõezinhos de madrepérola que meus dedinhos
entreabrem – suspira o herói. A
blusinha escorrega ladina, deixando ver a pele nua de um corpo danadinho. A arte emoldurada - garante o safadinho. Os botõezinhos de
madrepérola revelam-se almas gêmeas à
espera de qualquer mão boba que ande,
avance, oriente, caminhe, percorra, ensine, alise, rodopie e faça cócegas.... O
herói tremelica só de lembrar.
Agora, agora deslizar o zíper, dente a
dente, a engrenagem entrelaçada caminhando suave-suave sobre a pele nua de
Luciene – Um Deus que me acuda – sorri o convencido. O minhonzinho de
coxas roliças no puro sorriso. Um filé do Moraes, esse manjar dos deuses – afirma o heroizinho. Rã à
milaneza do Parreirinha, o que
aprecio por demais, reitera Andrázio, já
com água na boca. Hoje, hoje com
Luciene, matar a sede. Livrar-se dos botõezinhos de madrepérola: doze, onze, dez, nove, oito, sete, seis,
cinco... ensaia o petulantezinho.
Luciene sorri, tagarelando aos
quatro ventos:
“- Alicinha,
minha amiga, não vai me perdoar
nunca...Eu, quase nua, a bem dizer,
nuazinha, aqui contigo nesse sofazinho, Andrázio! ...
Um quarto e sala na Rio Branco, o matadouro. O
sofazinho da sala com o assento largo, sem o apoio dos braços, o meu golpe – vocifera o ferino. Hoje, se escapo dessa, sou Mariano, um
marianinho de Igreja, benzedor de
pai-nosso e salve-rainhas. O galãzinho
recolhe os pedaços do cálice, atropelado pelas mãos trêmulas. Acocorado sobre o tapete, ouve, sem entender,
as palavras que lhe chegam carentes de sentido... ou talvez, um tanto novas, ousadas e vigorosas. Andrázio
engole as sílabas dessa ladainha, e sem se dar conta, transforma-se em lobo
manso. Um cordeiro-de-Deus somando as
contas de três dígitos, insatisfeito com
o patrimônio. A dorzinha no peito
beirando febre de 39, nenhum verso maior, nenhuma frase maior... só os antibióticos!... Luciene engatilha a
arma e aponta o alvo: “ - O
velhote, quantos anos tinha?... 30,
penso!... Por que, Andrázio?1...”
O herói sente-se no fio da navalha. Uma fera enjaulada junto às esquinas,
entre o espanto e a cópia xérox. Os pés tropeçando sobre os estilhaços de vidro. Quem dera um demoniozinho pra me fazer a mea-culpa,
mea-culpa, minha máxima culpa. Agora, agora pegar os
caquinhos com as mãozinhas ágeis - suspira o herói. Andrázio suga o “veneninho” que lhe jorra do indicador ferido e revolta-se de vez. transformado numa besta emburrada. Um heroizinho
mudo. Um herói em frangalhos, fora do tempo e lugar. Bandeira a meio-pau, o
galãzinho sofrendo um dia-martelo que
bate, bate, bate, sem nunca atingir a
poesia!...Quem dera o amor antigo, único, não esse, desconfiado, que
trucida em golpes de nocaute. Abatido, o
heroizinho sente o peso dos punhos de
Luciene no seu queixo de vidro. Ela, de
pé, as mãos levantadas à espera do troféu, o cinturão do amor. Ele, Andrázio, nocauteado, franzininho que
dói. Um a menos na história. O número mil ao contrário – um Mil de tabaréu. O herói debruçadinho sobre si mesmo, os olhinhos parados e suplicantes, teimando em ver os botõezinhos
de madrepérola sorrateiros e displicentes ao entreaberto lento das suas mãozinhas frágeis. Taradinho, o que sou - tenta se convencer, o pobrezinho. Um
homenzinho abatido no matagal da memória, engolindo seco os prantos de uma viagem sem volta. Leoa
no cio, Luciene. Os olhos certeiros, guardando no odre mil verbos à espreita,
milhares, à espera de uma paixão fulminante: “ -
Ora, Andrázio... você não é tão velho assim!...
me beija!... beija!...”
Descaidinho, o herói. Um homenzinho surdo-mudo sem
o dom de ler os lábios. Carente de linguagem, o infeliz. Um tantinho encabulado
no quarto-e-sala. O galãzinho deitado em curva, como um feto, apoiando-se
nas almofadinhas, garantindo os doces afagos da donzela. Luciene alisa
os cachinhos do Anjo. Um Anjinho dos
catecismos... Andrázio, sem se dar conta, choraminga baixinho, deixando ver
no soluço quase imperceptível, uma
lagriminha teimosa misturada à essência do seu Paco-Rabanne!...
RESENHA DA POETA " CRISTINA CARVALHO"
A contemporaneidade e seu retrato
literário
Basta ler “O anjinho dos catecismos” de Celso Lopes.
Na primeira linha do seu conto, já percebo seu registro “underground”
como roteirista de cinema brasileiro.
Muito orgulho em poder reconhecer no primeiro instante. E melhor, estarmos
contemporâneos na Literatura.
Muito instigante o texto ao traduzir uma sensualidade que se aproxima e
envolve, porém se contém naquele momento e o percebe em tanta riqueza
poética, nos detalhes
que deixam brechas para o grotesco. Porém, o caminho não é esse, não se chega a
um finalmente. É como se uma câmera aproximasse os detalhes e explorasse a cena
no que tem de melhor.
Cada detalhe é o sutil que vai “carregando” o texto na sua melhor
imagem,
como se fossem os ajustes de uma câmera para pegar a melhor luz e
finalizar num “close”. “Os botõezinhos de madrepérola...à essência do seu
PacoRabanne”.
Me perdoe, mas não dá pra ler sem se remeter ao Cinema, a sétima arte
que
vem permeando o texto e se traduzindo como fazer poético-literário, transmutado
em conto. É incrível, quando tudo se
transportaria em segundos numa cena, no contexto
literário o tempo permanece em “suspenso” e atinge um lugar onde o cronológico
não existe. Há um momento em que o texto penetra na sétima arte, se “recarrega” e volta.
Esta é a percepção que o conto nos traz. Atinge o ponto de junção, a intersecção
das artes. E nos mostra que este momento está no nosso entorno,o tempo todo.
Basta parar por um segundo na Av. Rio Branco.