Edição Final - Livro PROCURADOS - Vol.I - Contos Policiais
Resultado da Seletiva para o Livro "PROCURADOS - Melhores contos Policiais nacionais e internacionais" com participações
de autores renomados em Portugal e na Argentina.
Foram mais de 200 contos, um desafio escolher os 20 melhores, mas foi preciso escolher,
então temos nossos nomes. Será um livro
ESPECIAL - 26 contos (contos dos organizadores e dos autores internacionais
renomados) - com composição gráfica diferenciada, brindes personalizados e um
lançamento de sucesso. Contos selecionados
1. Torta Vegana – Julia Ramalho
2. O Segundo Nascimento – Jorge Pontes
3. Aderir ou Morrer – Pedro Franco
4. Enredo – Adnelson Campos
5. A Mosca Presa na Garrafa – Alexis Machine
6. Setenta Vezes Sete – Wellington Fioruci
7. Sobre Pipas e Pássaros – Bruce Torres
8. Máscara Negra – Aline Moreira
9. Desforra – Mario Feitosa
10. Não Há Mais Tempo, General
Juce – Celso Lopes
11. Alma
Penada – Vitor Gagliardo
12. O
Abominável Homem do Saco – Davi Gonzales
13. Tudo,
menos isso – André Leitão
14. O Riso
Escarninho – Joaquim Bispo
15. Uma Noite
Qualquer – Diego Escopelli
16. Filho de
Peixe – Calebe Lopes
17. A Janela
Indiscreta - Bárbara Lia
18. O Artista
– Day Celestino
19. Vampiro
Contemporâneo – Danilo Morales
20. 01100010
– Fabiano Soares
(Leia
o CONTO do autor Celso Lopes).
“NÃO HÁ MAIS TEMPO, GENERAL JUCE...”
O telefonema
do Juce me perturbou por dois motivos. Dona Nara, inocentemente, teria dado o
meu número particular aqui na Segurança. Nessa hora só pude pensar – Ah! Dona Nara...sempre boazinha, não é, Mãezinha!?
Por outro lado, sei como ele é um obstinado desde criança. Portanto, vinha
chumbo grosso. Com a habilidade que eu tinha para desenhar, vi que ainda conseguia
rascunhar na folha em branco, o semblante perfeito do Marcelo. Mas, me dou conta que esses traços
escondem um pouco das minhas preocupações. Ainda que sem o acabamento, a falta do degradê, dos contornos esmaecentes, aqui
está ele com o quepe, a farda, o coturno e o sorriso largo... Assim, em preto e
branco, o desenho me lembra a noite da formatura dele, quando, eu me senti atingido pelas farpas doces da felicidade, pois, sob
aplausos, Marcelo receberia uma destacada
homenagem na Academia de Polícia e o reconhecimento de todo o corpo docente. Mas nem tudo ficou sob
controle. Para o Marcelo a base móvel dava-lhe
o respeito e o compromisso de se fazer algo de bom para a comunidade. Mas essa atitude dele virou um incômodo para
mim. O mínimo que eu esperava era que
ficasse mais próximo ao poder, assumisse
uma Secretaria, uma Diretoria... e de mais a mais, convenhamos,
a base móvel estava muito aquém do
Marcelo. Cansei de dizer isso a
ele: Filho,
a base Joana D’arc é um
alvo a céu aberto. No entanto, Marcelo quer se fazer por si. Os amigos instigam: “ - você
é o herdeiro do homem mais forte da Polícia”... Ele insiste que vai subir pelos próprios méritos. Personalidade forte, a
dele, tenho que admitir. Mas a
encrenca já está pronta. Juce, o cérebro do tráfico, não me dá tréguas. Por
isso, o telefonema e o aviso: “- Benhur,
ou libera os meninos pro dia das Mães ou o seu moleque na Joana D’arc vai passar dessa pra outra...eu não brinco,
você sabe!...”
Somos
exatamente da mesma idade. Nossos pais eram amigos e, coincidentemente, nascemos no
mesmo onze de agosto. O bom foi que eu e o Júlio Cesar,
o Juce, comemoramos, juntos, por muito tempo os aniversários. E bota
coincidência nisso: tivemos historias de vida como uma epopeia familiar. Mamãe,
dona Nara, e dona Laura, a mãe do
Juce, quando grávidas, debruçaram-se em relatos de
heróis medievais à cata de nomes
apropriados ao primeiro filho. Isso, tão
logo o ultrassom acabara de confirmar o nosso sexo!... Dali à escolha, o tempo foi rápido. Empolgada com a vida de um rico mercador Judeu,
traído e escravizado , mas que se esforçara pela liberdade,
dona Nara não vacilou: - Benhur!... – disse à amiga, contornando a barriga,
delicadamente, com as mãos, e
reiterando, com amplo sorriso nos
lábios, o nome épico, para que eu,
ainda bebê, pudesse ouvi-la: “- Benhur!... “- Júlio César, mas sem o Caio - de
Caio não gosto!...disse Dona Laura, colocando um ponto final à procura. Júlio
César!... E segundo Dona Nara, ela
disse de forma empolgadíssima, porque o
achado era excelente: um general importante do Império Romano... “- E que melhor coisa o “Juce” iria querer, hein? -
acentuara, alegre, com a certeza
de que o apelido criado pela junção das
primeiras sílabas, dava prestígio ao seu
rebento: JU-CE!...
E
completaria:- Juce é tão bonito, você não
acha, Narinha?... Dona Laura, pouco
a pouco, apresentava-se com uma
habilidade acentuada para “Mãe”. Feito sob medida para a maternidade. E ode-se dizer que me adotara para sempre em seu lar, e falando, orgulhosamente: “amo Benhur, gosto do jeito compenetrado
desse menino, e vejo para ele – mais que meu próprio filho – um
brilhante futuro!...“. Dali pra frente o
mundo deu voltas e mais voltas. Surgiram invejas, brigas e desentendimentos. Mais
tarde o conflito ficou claro: Eu, o Major
Benhur, assumi o Comando Geral da
Segurança; e ele, Júlio César, o Juce, tornou-se o
chefe da maior organização criminosa implantada no interior dos
presídios. Hoje vejo que tivemos por
onde nessa rivalidade. Entrei na corporação e dei os primeiros passos no
Presídio Disciplinar – a menina dos olhos
da Segurança Pública - Ali, ganhei
um apelido que moldava minhas atitudes – Benhur... o Dá-Sem-Dó!... Por sua
vez, Juce, detido no presídio, apresentou-se à frente dos detentos com uma liderança
ímpar, articulando fugas memoráveis, o
que deu origem ao destemido Juce,, o general Juce, como o chamavam. Ali,
ficaríamos frente e frente pela primeira vez, por força do sequestro da Assistente Social
no interior do pavilhão. Sob meu comando,
a tropa fez tombar a porta onde Juce e seu grupo mantinham
a refém. Entretanto, o general Juce desenhou um cenário que exigia atenção, pois mantinha a Assistente junto
à mesa, deixando visível faca ao alcance da sua mão. Ali, pude
ler nos olhos dele, as artimanhas de um golpe anunciado. Mantive-me em silêncio, sinalizando à
tropa o posicionamento em círculo.
Estava claro que Juce levaria essa
infâmia até o fim do mundo,
pois tinha a refém e inibia qualquer iniciativa
precipitada. A mim, restava-me decifrar
aquele cenário estratégico: o episódio
levado às últimas consequências,
transformaria o general Juce de
bandido a herói, pois os tiros
sobrariam para a Assistente Social. Refém
do silêncio instalado, aos poucos, deixei que vissem os contornos de um sorriso
cínico, que me transformava, paulatinamente, no antigo Dá-Sem-Dó. Eu precisava
agir tal qual aprendera no comando da Polícia. A tropa interpretava o código em ordens
de Atenção, Preparar, Fogo!....
Nesse instante, porém, o que ouvimos, a partir dali, foi um
grito. Um grito de mulher que, instintivamente, decifrara aquele sorriso enigmático e doava-se
de corpo e alma aos detentos. De braços
abertos, como um sinal da cruz a
intimidar os fariseus, a Assistente
compreendeu que nenhum dos dois
cederia. Cristãos todos, Juce e eu recuamos, ambos, ligeiramente intimidados. A tropa baixou as armas. Juce afastou-se da faca. E com a delicadeza de uma Mãe, coube à refém indicar um caminho seguro para todos. Assumi o comando da tropa. Juce orientou a
rendição dos seus. Superado o incidente, seguimos cada qual o seu rumo. Agora, aqui na sala, sobre
a mesa, também fiz surgir no papel, o rosto
duro e grotesco do general Júlio César!... Na verdade, era sabido de todos, que Juce,
desde há muito, incomodava a Segurança Pública.
E o telefonema daquela manhã não desmentia. “- ...Você
me conhece, Benhur.... - Ah! Benhur... Dona Laura manda lembranças, e parabéns
pelo nosso aniversário!...” Olhando o desenho, não pude deixar de ver na
infância, o corajoso Juce, o estrategista Juce enganando a todos na brincadeira de “Salva-Cadeia”...Já não havia mais a quem
pegar, todos estavam presos na corrente indiana, faltava apenas ele...e nada do Juce aparecer
pra libertar os amigos. Na rua, próxima à praça, apenas alguns boias-frias chegando do
trabalho com apetrechos e enxadas às costas... Pois, exatamente quando passavam
pela “cadeia”, surgiria o aguerrido Juce, disfarçado num desses
trabalhadores e, tranquilamente, daria o salvo-conduto a todos naquela prisão
inventada pelo imaginário infantil!... E
mais, sabe-se lá como, certo dia, Juce
alçara o alto vitral da Igreja, já
iluminado, e ali, diante dos nosso
olhos desatentos, postara-se como São Sebastião – como se ele,
também, flechado, de cabeça inclinada, fosse um desenho do próprio vitral. Em
instantes, Juce desceu do alto do
batente e, novamente, com seu gesto, salvaria todos os amigos daquela infame
prisão infantil: - liberdade para todos!.. - dizia
eufórico.
Na
reunião de cúpula dessa manhã, tentei
esfriar os ânimos da linha mais dura, que pedia a transferência de detentos para presídios de
segurança máxima. Minha insistência na
liberação dos presos no Dia
das Mães ficou evidente. Mesmo amaldiçoando Juce, tentei ganhar tempo. Entretanto, a referência às genitoras, foi tratada
com ironia pela turma da mesa oval, e ganhou desdobramentos. Os gráficos
indicavam um número excessivo de
presidiários com direito ao benefício; isso traria pânico e insegurança à população, além de descrédito à Polícia.
Depois de entreveros, a maioria venceu,
optando por nenhuma
liberação. Degluti o resultado, porém,
o meu desconforto saltava aos olhos da Corporação. O Capitão Jardim, por exemplo,
chegou a me perguntar: “ - Está tudo bem, Major?...”. Entendi que me restava, agora, correr contra o tempo e acionar
o celular do Marcelo com a autoridade de Comandante e Pai. Antes, porém, segui até o Controle Geral para informar sobre minha proposta de desativamento da base Joana D’Arc. Eu corria riscos, porém,
estava claro que temia
pela presença do Marcelo no local. Justifiquei a iniciativa como um
estudo experimental, mas o tempo correu
contra mim. Antes que eu dissesse ao
telefone, “espera, Juce” , a voz do
maldito general romano cresceu
poderosa, soando como um rojão. Senti no próprio corpo, a pressão
incômoda e dolorida de um soco na boca do estômago: “ - Não brinco, Benhur!...” - finalizou Juce.
Atropelando os meus movimentos,
avancei corredor adentro,
enquanto tentava, já, pela quinta
vez, acionar o celular do Marcelo, a essa hora, sem qualquer resposta. Na sala
do Comando, pude confirmar o que Juce já havia me soprado ao telefone: “ - A
base da Joana D’Arc foi atacada, Comandante .. e temos vítimas!.. Lamento,
Major, lamento...
Por
certo, quem me visse de volta à sala, perceberia a arma e o silenciador, entretanto,
não conseguiria descrever a minha fisionomia. Sentia-me com
marcas fundas do rosto, acentuando em mim, o que se pode chamar de raiva, ódio e um clamor impiedoso de vingança; e ouviria um nome
ser repetido de forma insistente: - Dona
Laurinha!.. – Dona Laurinha!..
Manobrei
o carro pelas ruas estreitas do bairro e
vi de perto o pé-de-amora na casa
de dona Rosa. Aspirei o quanto pude, aquele aroma eterno da infância!... Em instantes, direcionei-me para a antiga casa azul de portão amarelo. Acionei a campainha, e sem demora, o gesto colocava à minha frente, a já idosa Dona
Laura, Dona Laurinha – a doce mãe do general romano Júlio César
- o Juce. A dois passos de distância, Dona Laura irradiava uma
esfuziante recepção, capaz de inundar a própria rua:
- Benhur...meu menino!... e Narinha, como vai?
– Quanto tempo!... Que bom te ver por
aqui!... Parabéns pra você e pro Juce!...
Aquela
voz
melodiosa atingia-me como uma punhalada na alma.
Entretanto, militarmente circunspecto,
repeti a mim mesmo, que não haveria volta. Dona Laurinha que me
perdoasse, mas não poderia transigir ao meu intento. Recuar, agora,
seria tão improvável quanto a ordem de Juce
contra a base móvel do meu filho
Marcelo. Minha mão seguiu ao encontro da arma colidindo com minha
respiração ofegante; no entanto, isso não
me impedia de assentir a mim mesmo, que Dona Laurinha carregaria com ela, o vale-tudo
dessa rivalidade entre mim e Juce. Entretanto,
antes que eu levantasse o revólver à altura exata, ouvi o ruído no alpendre, a voz
enfática do general romano Juce: “
Mãe!...Mãe... está por aí?”
Aquela
presença inesperada colocava-nos, mais
uma vez, frente a frente, e entre
nós, agora, Dona Laurinha, a mãe de
ambos, que, eufórica, quebraria o incômodo silêncio diante dos seus filhos queridos, no dia do aniversário. À curta distância, os olhos do general Juce me fulminavam: - Dona Laurinha, Benhur?... você ia atirar em Dona Laurinha... a Mãe que te
acolheu!?...Meus olhos transformaram-se, ali, em potentes explosivos: - E o Marcelo,
Juce, e o Marcelo? ...Você me tirou o único filho!.... Nossos
olhares cruzados, faiscantes e
estratégicos, buscavam a certeza do
primeiro gesto, e no entanto, recebia a indulgência de Dona Laurinha: - O que
houve, vocês brigaram?...brigaram? - dissera ela, desorientada e incapaz de
perceber que um dos seus filhos arriscaria a romper
aquele insuportável silêncio... E então, ali, em fração de segundos,
disparei duas vezes, antes mesmo que uma
voz dentro de mim, dissesse: -
“ Não há mais tempo, general
Juce!... Não há mais tempo!...”
Texto: Celso Lopes