terça-feira, 10 de dezembro de 2019

NÃO HÁ MAIS TEMPO, GENERAL JUCE!... Conto policial de Celso Lopes


 Edição Final - Livro PROCURADOS -  Vol.I -  Contos Policiais 




Resultado da Seletiva para o Livro  "PROCURADOS - Melhores contos Policiais  nacionais e internacionais" com participações de autores renomados em Portugal e na Argentina.

Foram mais de 200 contos, um desafio escolher os 20 melhores, mas foi preciso escolher, então temos nossos nomes.  Será um livro ESPECIAL - 26 contos (contos dos organizadores e dos autores internacionais renomados) - com composição gráfica diferenciada, brindes personalizados e um lançamento de sucesso.
  Contos selecionados

1.       Torta Vegana – Julia Ramalho
2.       O Segundo Nascimento – Jorge Pontes
3.       Aderir ou Morrer – Pedro Franco
4.       Enredo – Adnelson Campos
5.       A Mosca Presa na Garrafa – Alexis Machine
6.       Setenta Vezes Sete – Wellington Fioruci
7.       Sobre Pipas e Pássaros – Bruce Torres
8.       Máscara Negra – Aline Moreira
9.       Desforra – Mario Feitosa
10.   Não Há Mais Tempo, General Juce – Celso Lopes
11.   Alma Penada – Vitor Gagliardo
12.   O Abominável Homem do Saco – Davi Gonzales
13.   Tudo, menos isso – André Leitão
14.   O Riso Escarninho – Joaquim Bispo
15.   Uma Noite Qualquer – Diego Escopelli
16.   Filho de Peixe – Calebe Lopes
17.   A Janela Indiscreta - Bárbara Lia
18.   O Artista – Day Celestino
19.   Vampiro Contemporâneo – Danilo Morales
20.   01100010 – Fabiano Soares

 (Leia o CONTO do autor Celso Lopes). 


“NÃO HÁ MAIS TEMPO, GENERAL JUCE...”    

                 
O telefonema do Juce me perturbou por dois motivos. Dona Nara, inocentemente, teria dado o meu número particular aqui na Segurança. Nessa hora só pude pensar – Ah! Dona Nara...sempre boazinha, não é, Mãezinha!? Por outro lado,  sei como ele é um  obstinado desde criança. Portanto, vinha chumbo grosso. Com a habilidade que eu tinha para desenhar, vi que ainda conseguia rascunhar na folha em branco, o semblante perfeito do  Marcelo. Mas, me dou conta que esses traços escondem um pouco das minhas preocupações.  Ainda que sem o acabamento, a falta do degradê, dos contornos esmaecentes, aqui está ele com o quepe, a farda, o coturno e o sorriso largo... Assim, em preto e branco,  o desenho  me lembra  a noite da  formatura dele, quando, eu  me senti atingido pelas  farpas doces da felicidade, pois, sob aplausos, Marcelo  receberia uma destacada homenagem na Academia de Polícia e o reconhecimento de  todo o corpo docente. Mas nem tudo ficou sob controle. Para o Marcelo a base móvel  dava-lhe o respeito e o compromisso de se fazer algo de bom para a comunidade.  Mas essa atitude dele virou um incômodo para mim. O mínimo que eu esperava  era que ficasse mais próximo ao poder,  assumisse  uma  Secretaria, uma  Diretoria... e de mais a mais, convenhamos, a  base móvel estava muito aquém do Marcelo. Cansei  de dizer isso a ele:  Filho, a base Joana  D’arc  é um alvo a céu aberto. No entanto, Marcelo quer se  fazer por si. Os amigos instigam:  “ - você é o herdeiro do homem mais forte da Polícia”... Ele insiste que vai subir  pelos   próprios méritos. Personalidade forte, a dele,  tenho que admitir.  Mas  a encrenca já está pronta. Juce, o cérebro do tráfico, não me dá tréguas. Por isso, o telefonema  e  o aviso:  “- Benhur, ou libera os meninos pro dia das Mães ou o seu moleque na Joana D’arc  vai passar dessa pra outra...eu não brinco, você sabe!...”
Somos exatamente da mesma idade. Nossos pais eram amigos e, coincidentemente,  nascemos  no  mesmo  onze  de agosto. O bom foi que eu e o Júlio Cesar, o Juce, comemoramos, juntos, por muito tempo os aniversários. E bota coincidência nisso: tivemos historias de vida como uma epopeia familiar. Mamãe, dona  Nara, e dona Laura, a mãe do Juce,   quando grávidas,  debruçaram-se em relatos  de  heróis medievais  à cata de nomes apropriados ao primeiro filho.  Isso, tão logo o ultrassom acabara de confirmar o nosso sexo!...  Dali à escolha, o tempo foi rápido.  Empolgada com a vida de um rico mercador Judeu, traído e escravizado , mas que se esforçara pela  liberdade,  dona Nara não vacilou:   - Benhur!...  – disse à amiga, contornando a barriga, delicadamente, com as mãos,  e reiterando, com amplo  sorriso nos lábios, o nome épico,  para que eu, ainda  bebê,  pudesse ouvi-la: “- Benhur!...  - Júlio César, mas sem o Caio  -  de Caio não gosto!...disse Dona  Laura,  colocando um ponto final à procura.  Júlio César!... E  segundo Dona Nara, ela disse de forma empolgadíssima, porque o  achado era excelente:  um  general importante do Império Romano... “- E que melhor coisa o “Juce”  iria querer, hein?  -  acentuara, alegre,   com a certeza de que o  apelido criado pela junção das primeiras sílabas, dava prestígio  ao seu rebento: JU-CE!...
E completaria:- Juce é tão bonito, você não acha,  Narinha?... Dona Laura, pouco a pouco, apresentava-se com  uma habilidade acentuada para “Mãe”. Feito  sob medida para a maternidade.  E ode-se dizer que me adotara para sempre  em seu lar, e falando, orgulhosamente:  “amo Benhur, gosto do jeito compenetrado desse  menino, e vejo para ele – mais que meu próprio filho – um brilhante futuro!...“. Dali pra frente  o mundo deu voltas e mais voltas. Surgiram invejas, brigas e desentendimentos. Mais tarde o  conflito ficou claro: Eu, o Major Benhur, assumi o   Comando Geral da Segurança; e ele,  Júlio César, o Juce,   tornou-se o  chefe da maior organização criminosa implantada no interior dos presídios.  Hoje vejo que tivemos por onde nessa rivalidade. Entrei na corporação e dei os primeiros passos no Presídio Disciplinar – a menina dos olhos da Segurança Pública -  Ali, ganhei um apelido que moldava minhas atitudes – Benhur... o Dá-Sem-Dó!...  Por sua vez,  Juce, detido no presídio,  apresentou-se à frente dos detentos com uma liderança ímpar, articulando fugas memoráveis,  o que deu origem ao  destemido Juce,, o general Juce, como o chamavam.  Ali, ficaríamos frente e frente pela primeira vez,  por força do sequestro da Assistente Social no  interior do pavilhão. Sob meu comando, a tropa fez  tombar a porta onde Juce e seu grupo mantinham a refém.   Entretanto, o general Juce desenhou um cenário  que exigia atenção, pois   mantinha a Assistente  junto  à mesa, deixando visível  faca ao  alcance da sua  mão. Ali, pude  ler nos olhos dele,  as  artimanhas de um golpe anunciado. Mantive-me  em silêncio, sinalizando  à  tropa o posicionamento em círculo. Estava claro que Juce  levaria  essa   infâmia até o  fim do mundo, pois tinha  a refém e inibia qualquer iniciativa precipitada.   A mim, restava-me  decifrar aquele cenário estratégico:  o episódio levado  às últimas consequências, transformaria o general Juce  de  bandido a herói, pois  os tiros sobrariam para  a   Assistente Social.   Refém do silêncio instalado,  aos poucos,  deixei que vissem os contornos de um sorriso cínico, que me transformava, paulatinamente, no antigo Dá-Sem-Dó.  Eu precisava agir  tal qual  aprendera no comando da Polícia.  A tropa interpretava o código  em ordens  de Atenção, Preparar, Fogo!.... Nesse instante, porém,   o que  ouvimos, a partir dali,  foi um  grito. Um grito de mulher que, instintivamente,  decifrara aquele sorriso enigmático e doava-se de corpo e alma aos detentos.  De braços abertos, como um  sinal da cruz a intimidar os fariseus,   a  Assistente  compreendeu que nenhum dos dois  cederia.  Cristãos todos,  Juce e eu recuamos, ambos, ligeiramente  intimidados. A  tropa baixou as armas. Juce afastou-se da faca.  E com a delicadeza de uma Mãe, coube à  refém indicar um caminho  seguro para todos.  Assumi o comando da tropa. Juce orientou a rendição dos seus. Superado o incidente, seguimos  cada qual o seu rumo. Agora, aqui na sala, sobre a mesa, também fiz surgir  no papel,  o rosto  duro e grotesco do  general  Júlio César!...   Na verdade, era sabido de todos,  que Juce, desde há muito, incomodava a Segurança Pública.  E o telefonema daquela manhã não desmentia.  - ...Você me conhece, Benhur.... - Ah! Benhur... Dona Laura manda lembranças, e parabéns pelo nosso aniversário!...”   Olhando o desenho, não pude deixar de ver na infância, o corajoso Juce, o estrategista Juce enganando  a todos na brincadeira de “Salva-Cadeia”...Já não havia mais a quem pegar, todos estavam presos na corrente indiana,  faltava apenas ele...e nada do Juce aparecer pra libertar os amigos. Na rua, próxima à praça,  apenas alguns boias-frias chegando do trabalho com apetrechos e enxadas às costas... Pois, exatamente quando passavam pela “cadeia”, surgiria o aguerrido Juce, disfarçado num desses trabalhadores e, tranquilamente, daria o salvo-conduto a todos naquela prisão inventada pelo imaginário infantil!...  E mais, sabe-se lá como, certo dia,  Juce alçara o alto  vitral da Igreja, já iluminado,  e ali, diante dos nosso olhos  desatentos,  postara-se como São Sebastião – como se ele, também, flechado, de cabeça inclinada, fosse um desenho do próprio vitral. Em instantes,  Juce desceu do alto do batente e, novamente, com seu gesto, salvaria todos  os amigos daquela  infame prisão infantil: -  liberdade para todos!.. - dizia eufórico.
Na reunião de cúpula dessa manhã, tentei esfriar os ânimos da linha mais dura, que pedia a  transferência de detentos para presídios de segurança máxima.  Minha insistência na liberação  dos  presos no Dia das Mães ficou evidente. Mesmo amaldiçoando Juce, tentei  ganhar tempo. Entretanto,  a referência às genitoras, foi tratada com  ironia pela turma da mesa oval,  e ganhou desdobramentos. Os gráficos indicavam  um número excessivo de presidiários com direito ao benefício; isso traria pânico e insegurança  à população, além de descrédito à Polícia. Depois de entreveros, a maioria venceu,  optando por  nenhuma liberação.  Degluti o resultado, porém, o  meu desconforto saltava aos olhos da  Corporação. O Capitão Jardim, por exemplo, chegou a me perguntar:  “ - Está tudo bem, Major?...”.    Entendi que me  restava, agora, correr contra o tempo e   acionar o celular do Marcelo com  a  autoridade de Comandante e Pai.  Antes, porém, segui até o  Controle Geral  para informar sobre  minha proposta de desativamento  da  base Joana D’Arc.  Eu corria riscos,    porém,   estava claro  que  temia  pela presença do Marcelo no local. Justifiquei a iniciativa como um estudo experimental, mas  o tempo correu contra mim.  Antes que eu dissesse ao telefone, “espera, Juce” ,  a voz do  maldito general romano cresceu poderosa, soando como   um   rojão. Senti   no próprio corpo,  a pressão  incômoda  e dolorida de um  soco na boca do estômago:    -  Não brinco, Benhur!...” - finalizou Juce.
Atropelando  os meus  movimentos,  avancei  corredor adentro, enquanto  tentava, já, pela quinta vez,  acionar  o celular do Marcelo,  a essa hora,   sem qualquer resposta.  Na sala  do  Comando, pude confirmar o que  Juce  já havia me soprado ao telefone:  “ - A base da Joana D’Arc foi atacada, Comandante .. e temos vítimas!.. Lamento, Major, lamento...
Por certo, quem me visse de volta à  sala,  perceberia a arma e o silenciador, entretanto, não conseguiria  descrever  a minha fisionomia.  Sentia-me com  marcas fundas do rosto,  acentuando em mim,  o que se pode chamar de raiva, ódio e um  clamor impiedoso  de vingança; e ouviria um  nome   ser repetido de  forma insistente:  - Dona Laurinha!.. – Dona Laurinha!..
Manobrei o carro  pelas ruas estreitas do bairro e vi de perto o pé-de-amora na casa de  dona Rosa. Aspirei o quanto pude,  aquele aroma eterno da infância!... Em instantes, direcionei-me para  a antiga casa azul de portão amarelo. Acionei  a campainha, e sem demora, o gesto  colocava à minha frente, a já idosa  Dona Laura, Dona Laurinha   a doce mãe do general romano  Júlio César  - o Juce. A dois passos de distância, Dona Laura irradiava uma esfuziante recepção, capaz de inundar a própria rua:    
- Benhur...meu menino!... e Narinha, como vai? – Quanto tempo!... Que bom te ver  por aqui!... Parabéns pra você e pro Juce!...
Aquela  voz   melodiosa atingia-me  como uma punhalada na  alma.   Entretanto, militarmente circunspecto,  repeti  a mim mesmo, que  não haveria volta. Dona Laurinha que me perdoasse, mas não poderia transigir ao meu intento.  Recuar, agora,  seria  tão improvável  quanto a ordem de  Juce  contra  a base móvel do meu filho Marcelo.  Minha mão seguiu  ao encontro da arma colidindo com minha respiração ofegante; no entanto, isso não  me impedia de assentir a mim  mesmo,  que Dona Laurinha carregaria com ela, o vale-tudo dessa rivalidade entre  mim e Juce.  Entretanto, antes que eu levantasse o revólver à altura exata, ouvi o ruído no alpendre,  a  voz enfática  do general  romano Juce:   “ Mãe!...Mãe... está por aí?”    
Aquela presença inesperada colocava-nos,  mais uma vez,  frente a frente,  e entre nós, agora,  Dona Laurinha, a mãe de ambos, que, eufórica, quebraria o incômodo silêncio diante dos seus filhos queridos, no dia do aniversário.  À curta distância,  os olhos do general Juce me fulminavam:  - Dona Laurinha, Benhur?... você  ia atirar em Dona Laurinha... a Mãe que te acolheu!?...Meus olhos transformaram-se, ali,  em potentes explosivos:  - E o Marcelo, Juce, e o Marcelo? ...Você me tirou o  único filho!....   Nossos  olhares cruzados, faiscantes e estratégicos, buscavam a  certeza do primeiro gesto, e no entanto, recebia a indulgência de Dona Laurinha:  - O que houve, vocês  brigaram?...brigaram? - dissera ela, desorientada e incapaz de perceber que um dos seus filhos arriscaria a romper  aquele insuportável silêncio... E então, ali, em fração de segundos, disparei duas vezes,  antes mesmo que uma voz  dentro de mim,  dissesse: -  “ Não há mais tempo, general Juce!... Não há mais tempo!...”



Texto:  Celso Lopes




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