segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Homenagem ao Dia da Árvore

                                               



                                A ÚLTIMA ÁRVORE DO UNIVERSO




Por um descuido, por não lhe ouvirmos a súplica,
à nossa frente sangra a última árvore do universo.

Por destratarmos a natureza da sua natureza,
induzimos severas fissuras à última arvore do universo.

Por um ato falho de relegarmos a sua ancestralidade,
queimamos viva, sem culpa, a última árvore do universo.

Por ignorarmos o seu silêncio milenar de significados,
abrimos uma fenda aos fungos na última árvore do universo.

Por lhe fecharmos o cerco e estancarmos a sua seiva,
à nossa frente morre de sede a última árvore do universo.

Por lhe impedirmos o ar e secarmos o seu fôlego de seguir,
abatemos o broto e a vida da última árvore do universo.

Por ela, pela última árvore do universo,
já não haverá crianças que a defendam...

Por ela, pela última árvore do universo,
já não haverá razões para tratados políticos...

Por ela, pela última árvore do universo,
todos os seres, todos os versos serão tristes...

Diante dela, o silêncio inútil, o gesto inútil, o grito inútil
serão cantigas de roda, surda e mudas: o poema em desespero
abraçando o planeta!...




Texto:  Celso Lopes

sábado, 19 de setembro de 2020

A LARANJA E O BEIJA FLOR (Resenha sobre "REFLEXÕES" - J.A.Palma)

 

                                       “A  LARANJA E O BEIJA-FLOR”



Tive o prazer de ler o livro “REFLEXÕES”, do escritor  João Augusto Palma,  nosso Maestro e Confrade na ALAGUARÁ. Dele também são “Coletânea” (escritos diversos) e “Publique no Face”.   

O título dessa pequena resenha, propõe-se a ilustrar, em parte, a trajetória de um  autor que, ainda precoce, foi identificado pelo Professor, através de uma  redação criativa, e por que não dizer,  digna de elogios, cujo título premia um item da  nossa flora: “O fim trágico de uma Laranja”; o texto, escrito pelo então aluno da 2ª. Série do  antigo ginasial, já impregnava os traços da sua inquietude diante da existência e do existir. Confira um trecho  da redação:   “(...) Depois de arrancar a minha pele, apertando-me com força, chupou todo o meu sangue e me jogou pela calçada quase morto.(...)  um garoto brincando pela rua, ao me ver corre em minha direção e me chuta para o bueiro da esquina, que quando caio  sou levado pelas águas a um riacho, do riacho ao rio, do rio ao mar, e do mar...”

Creditamos aqui, nosso reconhecimento ao Mestre e, claro, aos passos promissores e desafiadores do aluno João Palma.   O livro, já na introdução, sintetiza e aponta os caminhos escolhidos e inspirados pelo autor que, como uma prévia do que vamos ler, apresenta-nos  um olhar profundo sobre o “amor”, o “tempo”, a “natureza e o Criador”, além de outros tópicos entremeados às suas convicções evolutivas sobre e para o ser humano. E questionamentos não lhe faltam, seja em prosa ou poesia/letra de música, como neste caso: (...) poder ter uma pequena ideia / como deve ser o céu, ser o céu...”.

A título de sugestão para futuros leitores de “REFLEXÕES”, vale dizer que o autor pinça títulos, que por si só, retratam e nos direcionam para um desvendamento interior,  uma descoberta, e sem dúvida, perguntas profundas que João Palma se propõe a responder. Senão, vejamos:  “Limpar o coração”, “O mundo é um bom lugar?”, “ O Livro-caixa”, “Quem fala por mim?”, “Estado de Espírito”, “Irmãos”, “ A Fé (cérebro ou coração?)”, “Como poderemos obter a Paz?”, “O tripé da vida”, “Compaixão”, “Vibrações de Amor”, “ A voz que não ouvimos”, “O homem interior”. E há outros textos, incluindo uma “quase dedicatória” aos amigos. “Existe algum privilégio na vida que seria maior do que ter tido a oportunidade de ter alguns amigos extraordinários?” “Diz o ditado” - continua João Palma: “de amigos verdadeiros não conseguimos encher uma mão”, entretanto, acrescenta: “posso ter sido privilegiado (...) precisaria de mais mãos.”.

Soma-se aos textos, um Epílogo, em que o autor põe sobre a mesa “as grandes verdades por ele adotadas”, perpassando assim, ora pela grandeza do Criador, ora pela finitude do homem, o sentido da existência, a presença de Deus, a morte  e as leis da Natureza.

REFLEXÕES, do escritor João Palma, exige sim,  concentração, mas sem dúvida, o leitor é amparado pela sua  habilidade de condução sobre os temas vários, onde, por vezes, faz uso de  citações: – “Na casa do meu Pai existem várias moradas.” (João 14,2); e  para esclarecer ao leitor sobre a amplitude desse entendimento, assim exemplifica: “ A Terra é uma dessas inúmeras moradas onde a alma de Deus poderia habitar (...) o Ser Supremo criou um lugar com intenção de torná-lo abrigo e notou que isso era bom (...) a Terra é o palco onde se desenvolve uma peça teatral e que tem como enredo, a nossa vida (...) bem desenvolvida a história, o cenário  será grandioso (...)”.

No texto “Quem fala por mim?”, Palma utiliza-se dos sentidos físicos, como o tato,  visão,  audição,  paladar,  olfato, e também a fala/comunicação, para acrescentar (e aprofundar) seus questionamentos. Por isso, afirma que  os sentidos são importantes, mas não são os únicos, pois “quem fala por mim é o meu coração e a minha mente”. E aliando reforço, vem em nosso socorro para esclarecer  de pronto:  “Jesus disse que não devemos nos preocupar com o que entra pela boca, mas sim com o que dela sai.” (Mt.15,11).   As perguntas de João Palma em “Uma vida ideal” são aquelas que faríamos, como por exemplo: Qual é a paz que desejamos? Qual é a tranquilidade que buscamos? A convivência que queremos?, entretanto, são as respostas do autor que nos colocam  atentos, pois, como diz:  “ Nada cairá do céu. Tudo o que desejamos temos que buscar , usando a nossa força interior, embasada na qualidade da nossa índole.”

No texto “Irmãos”, mais que oportuno,  o autor se apropria do sonho eterno de Martin Luther King – “ aprendemos a voar, e a nadar como os peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos.”, e como ele, também clama  por valores imprescindíveis como  ‘tolerância’  e  ‘fraternidade universal’. Não é sem razão que em seu brado. João Palma exclame alto: “- Ah! meu querido Deus!...Quão nos poderíamos seres humanos se extasiar da tua magnitude (...)”

 Em “Estado de Espírito”, fazendo uso de posturas propositivas, como participação, atenção, alegria, responsabilidade, confiança, benevolência, etc.,   João Paulo escreve, por assim dizer, ‘lições’ que equivalem a um “epitáfio vivo” dele próprio, pois promete se tornar, continuadamente, ‘um ser cada vez melhor’.  E é o que ele referenda no texto “Relacionamento”, em que faz uso de um trecho do “Pequeno Príncipe”, detidamente, no  diálogo com a Raposa: “- Por favor, cativa-me – disse ela. (...) Se tu queres um amigo, cativa-me!...Que é preciso fazer? – perguntou o principezinho. “- É preciso ser paciente (...)  – respondeu a Raposa.”

Tão certo como as lições ‘Saint-Exupéry’, autor do Pequeno Príncipe, há ainda, um mundo a ser desvendado no universo das reflexões de João Augusto Palma. A resenha, no entanto, ao finalizar, buscou premiar um item em que o autor, agora, utiliza-se de um elemento da fauna para transcender os caminhos da sua  viagem reflexiva. A poucos passos de uma parábola, neste caso, contemporânea,  o texto “Beija-flor” é um instante apoteótico, afinal, nasce do pequeno tempo em que uma ave (beija-flor) permanece presa (sem saber como sair) dentro da casa, mais precisamente, na cozinha. O episódio, sem intenção, reúne parte da família – todos dispostos a livrar o beija-flor daquela estranha prisão. E libertá-lo, claro. E dessa simplicidade, dessa miudeza do cotidiano,  João Palma alcança a sua grandeza. Diz para o filho: “Olha o que é a natureza!...Ele (beija-flor)  está, instintivamente, buscando o alto (...) o seu único comando é subir, pois sempre foi assim em sua trajetória de vida (...).   A lição ali contida, revista pelo autor,  culmina numa excelente reflexão  e discernimento sobre a existência frágil e desorientada de tantos e tantos  seres humanos. Enfatiza, ainda, o autor: “ - Voltei às minhas rotineiras atividades quietas, serenas, pois era o primeiro domingo de um novo milênio”. E “novo milênio”, como sabemos, pode sim, conter novos sinais de inquietude com o porvir. 

 

Texto:  Celso Lopes   elipse84@terra.com.br   11 98487 1193

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

ASSINA "GUIMARÃES" - Crônica de Celso Lopes

 



                                             Assina “Guimarães”


 

 

É no mínimo curioso e gratificante acompanhar alguns caminhos “coincidentes” da escritora  Ruth Guimarães em seu livro Água Funda,   e de seu colega Guimarães Rosa, no conto A terceira margem do rio.  O livro da autora é de 1946, o do autor, inserido em Primeiras Estórias, é de 1962.  Dezesseis anos separam ambos os textos, porém, ambos os autores, de fato, juntos, submergem e emergem à flor d’água, e a partir dali, tecem nas margens de um  rio, as suas próprias  narrativas.  

 

Se a narradora destila fluida:   A gente passa nesta vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada. E quando alguém mexe com varejão no lodo e turva a correnteza, isso também não tem importância. Água vem, água vai, fica tudo no mesmo outra vez “

 

Guimarães mergulha, aflora e revela nessas mesmas águas turvas:  “...Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais (...)”

 

Rosa destaca a história de um homem que abandona a família e a sociedade local, para viver à deriva numa canoa dentro do rio.  Entretanto, é de se notar que os caminhos do campo para  a cidade são visíveis.  Presos ao mundo rural, restam, apenas,  pai e filho.   Podemos aventar que, diante dessa “estória estranha”, enxergamos os sinais de um novo mundo que se entranha naquele sertão.

 

Água Funda tem como cenário a  fazenda Olhos D’Água, no  sul de Minas e região paulista do Vale do Paraíba,  e de acordo com o resenhista Carlos Carvalho, “o romance nos leva a conhecer os primeiros moradores da propriedade, ainda no século XIX, em pleno período escravocrata e, de repente, a história dá um salto no tempo, chegando ao começo do século XX”.  (...) Se na primeira parte a vida é pautada pela exploração da mão-de-obra escravizada, cujo status está ameaçado pela iminente mudança de modelo econômico e político, na segunda história, a ruptura se dá pelo choque com a modernidade e a chegada dos gringos que vão mudar o processo de produção do açúcar e do álcool na usina da fazenda (...)

 

Para o resenhista, ainda, há de se acrescentar que “ Toda essa dose de realidade econômica, social e política é contada em um registro fantástico, com um lirismo e um ritmo narrativo que antecipa muito do que se produziu na literatura mágica latino-americana.”

 É de se notar, portanto, que as assinaturas “Guimarães” dos respectivos textos, desabrocham os  sinais e as evidências de um  novo tempo; do antigo  país rural, agrário, apontam-se os desenhos de um Brasil industrializado, de consumo, com  mudanças no eixo de poder;  se há algum tipo resistente   em Rosa,  é expressado através da  demência e loucura, de pai e filho: 

 

“- Ninguém é doido. Ou então, todos”.

 Ruth Guimarães desembarca em São Paulo aos  18 anos no bojo desse Brasil que se constrói há instantes.  “Tempos difíceis” – relata a escritora -   Eu não conhecia ninguém, a não ser dos livros, lidos no silêncio da noite, no meu quartinho de dois passos de largura, sublocado nos fundos de uma casa de família.”  

A escritora  viu-se sozinha na grande cidade,  nem parentes nem amigos, entretanto, ainda que, ‘expulsa’ do meio rural, daquele outro Brasil, veio para os estudos em busca de cumprir a sua sina,  e  trouxe na sua  bagagem a memória viva e profícua relatada em seu romance Água Funda que,  conforme analisa  Fernanda Miranda:   “A ficção acentua o que ficou de uma fase na outra, isto é, elabora as permanências e resíduos do colonial na passagem do tempo” (...)

 Para Miranda, a verdadeira protagonista no romance é a figura mítica da Mãe de Ouro, que funciona como representação do Destino: “Onde mora? Mora no fundo da terra. Onde ela está o outro brota do chão, que nem mato. O fundo do rio onde se açoita é dourado e brilhante que é ver um céu. A areia se estrela de escamas, tudo ouro. Quando vai mudar de lugar, vira uma bola de ouro, tão bonita, que parece fogo, riscando o céu. A gente enxerga um minuto só aquilo, avermelhado no ar. Depois some. Eu já vi. Vi com estes olhos que a terra há de comer, a Mãe de Ouro se mudando de Olhos D’Água.”

 

Para a própria autora de Água Funda,  em sua preciosa síntese:  Água funda é um livro engraçado, livro da vida de todos os dias, é um livro de “acontecências”. Qualquer vida dá uma água funda, qualquer um de nós escreve um diário e conta aquelas coisas de todos os dias e vai sair uma água funda”.  Não há dúvida de que  Ruth Guimarães encontrou, sim,  o seu tempo. E nos deixa na amplitude das suas palavras, o foco do seu destino, a sua sina, ao pisar, segura e confiante na grande cidade, com a  tarefa de nos legar um incessante trabalho literário; e ainda,  também como o autor “Guimarães”,  deixar uma importante lição para todos nós sobre a literatura universal.     “Ao mesmo tempo, rica de certeza, de uma presciência, de uma esperança, que sei eu? sonhando os sonhos mais doidos. Viver, sempre aceitei como uma grande aventura.” -  relata-nos, com sinceridade, a autora de Água Funda.   

 

(*) Carlos Carvalho – escritor e jornalista

https://lombadaquadrada.com/2019/10/21/agua-funda-o-classico-fantastico-de-ruth-guimaraes/

(*)  Fernanda Miranda é doutoranda em Letras (USP)

https://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/2118-os-fluxos-cont%C3%ADnuos-de-ruth-guimar%C3%A3es-e-de-seu-livro-%C3%A1gua-funda.html

 










 

DUELO SOBRE A MESA - Conto de Celso Lopes

 DUELO  SOBRE A MESA 

 

Um dos peritos, impressionado pelo fulgor do embate, chegou a citar, textualmente,  “o caótico rio de pedras”,  narrado pelo escritor  Umberto Eco*. E não sem razão; há de se acreditar, insistia o perito,  que no auge desse enfrentamento imperioso, o interior de ambos seguia em contínua ebulição, revelando uma torrente furiosa, tal qual uma “correnteza de grandes rochas informes, placas irregulares e cortantes como lâminas, e amplas como pedras tumulares (...). Aos olhos do perito, fora assim o duelo entre  Dona Branca e o Professor Pio. Quem os conheceu no dia a dia  informava que as desavenças entre ambos, não raro, surgiam  após um  silêncio profundo; nessas horas o ar ficava pesado e  fazia brotar,  às claras, um rancor íntimo desencavado. Acredita-se, informam os peritos, que esse conflito pode ter sido acentuado  pelo toque de se recolherem ao lar, uma vez que integravam o grupo de risco imposto pela Pandemia. Foram encontrados, ali, sentados, frente a frente, na mesa da sala; cada qual em seu canto  com a cabeça curvada e apoiada sobre o braço;  o olhar de cada  um deles parecia,  certeiramente,  dirigido ao outro. Lá estavam,  inertes, até a descoberta. Cansado de ligar para os pais, o filho informou ao Zelador do prédio, e este,  pressentindo algo estranho, levou o caso  à  polícia, que, instantes depois, solicitou a abertura do local e  posterior autópsia. O casal vivia há muitos anos naquele prédio do bairro. Ela, uma antiga professora de história; ele,  ex-chefe de laboratório de biologia da faculdade, onde se conheceram ainda bem jovens.  A perícia técnica apresentou anotações, laudos, infográficos  e fotos, destacando um considerável número de Palavras Cruzadas abertas; um Volume sisudo de cor marrom;  dois Dicionários que,   pelas digitais,  disseram os peritos,  o Caldas Aulete seria o  da Mulher, e o Aurélio, o do Homem.  A perícia indicou que as sandálias da Mulher deixaram rastros. Observou-se  que teria se deslocado até à cozinha, onde tomara café na térmica;  depois,  deteve-se  na estante da sala, de onde retirou o Volume marrom, que destacava na página interna: “Instrumentos de Guerra da Antiguidade”. Segundo a perícia,  tratava-se  de relatos sobre   estratégias dos antigos exércitos, como o  “Apito da morte”, descrito, ali, como “um objeto sonoro criado pelos Astecas, que simulava  estridentes gritos  de pessoas em sofrimento,  induzindo os adversários a um estado de transe desesperador.”  Apanhado o livro,  Dona Branca  se dirigira  à mesa do embate.  Então, ali, o duelo teve início para ambos.  Cada qual com os seus compêndios de Cruzadas. Segundo os peritos, era quase possível “ver” a agilidade da Mulher no desafio das verticais e horizontais, sem tréguas ao adversário;  indicaram ainda, que, em  determinado instante, os olhos da Mulher foram  ao encontro dos olhos  do Homem.  O abalo causado por esse olhar, disseram eles, fragilizara o  oponente.  Na praça de guerra,  o espalhamento das revistas acenava com que a estratégia do Homem seguia rápida com rigorosa atenção nas armas de combate.  Ao Homem, fortaleciam-lhe as  publicações relativas a  filmes, teatro, música,  biologia  e literatura química. Novamente, “pressentia-se”  a voz  da Mulher de forma  explosiva  no território da disputa. Podia se ler, com clareza, uma das perguntas: “Animal mitológico associado à virgindade, tem a  forma de um cavalo com um único chifre frontal?”.   Bingo.  “Unicórnio”. Assim assinalara a Mulher.  Ao Homem,  restava-lhe o sofrimento frente à  pergunta quase sussurrada: “- O  nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo?”. Segundo os peritos, os sinais mostravam, vivamente, que o professor Pio  estancara-se com a caneta no ar; pois sentia, naquele embate infernal, a Mulher apontando-lhe as  armas de Guerra. Aquelas tamanhas e poderosas, como a Catapulta, arma de ataque capaz de quebrar barreiras dos homens, especialmente, os encastelados  e protegidos em  cidades muradas.  Haveria de destruí-lo, caso ele persistisse. Lançaria sobre seu adversário as mais potentes armas,  que haveriam de liquidá-lo no interior do palácio.  Recuasse, portanto,  ou então,  receberia o golpe  mortal:  haveria de lhe atirar a maldição das  esposas incompreendidas!... Para os peritos,  a mente do Homem dirigira-o  para a área química. Ou ele a superaria agora ou haveria de viver  a maldição das esposas  abandonadas. O Homem sussurrava, exalando suor frio. Ele sentira o baque. Doeu-lhe a força desse punho gigante da Mulher à sua frente.  Por isso, olhava, agora, de dentro do seu próprio silêncio, para dona Branca,  enquanto  lançava  mão do seu  Aurélio:  - O nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo!...   No entanto, as tentativas se mostraram  infrutíferas e o  silêncio fora  quebrado, apenas,  pela  retórica ascendente  da Mulher.   “ - o  Santo Graal também é chamado de.....?”.  Neste ponto,  os peritos adicionaram ao laudo:  “ na sala avolumada de  silêncio, podia ser percebido os contornos grandiosos dos olhos  do Homem e da Mulher,   como fossem eles, Dona Branca e o Professor Pio,  os guerreiros autênticos  das   antigas Cruzadas, os  soldados de Cristo.”.  Então, enquanto a Mulher já se  debruçava  nos desafios da sua  Coquetel Super,  um certo  vazio  se instalava  no ambiente.  Agora,  as horizontais da Passatempo do Homem pediam ajuda aos deuses da sabedoria:  “ - Trepadeira comum em muros -  com quatro letras?  - A flor da idade, no sentido figurado -  com nove letras?”... Enquanto o Homem  entendia a  necessidade urgente dessas  respostas,  ela, a Mulher, garantem os peritos, ganhava distância  a olhos vistos. As palavras cruzadas exigem mais que  uma brincadeira - ironizava em seu silêncio -  como se mostrasse a ele, ao Homem,  que as Cruzadas não brincam.  Então, a Mulher preparou-lhe  um  olhar fulminante repleto de força bruta sonora:   “Lutar com palavras  é a luta mais vã.  Entanto,  lutamos  mal rompe a manhã(**)”. E tomada pelo poder dessas palavras ditas,   eis que, então, sob suas mãos, elas, as palavras,  ganharam formas definidas de ataques:  primeiro  as pontiagudas,  depois as  cortantes,   e por fim,  as explosivas... E assim, a Mulher  lançara, inapelavelmente,  sobre Homem, os seus escudos especiais. Ao Homem,  restava-lhe manter a distância adequada para não ser ferido de morte. Mas para sua festa surgiram os filmes, teatro, música,  artistas  e afins.  O Homem sorriu largo,  pois, se sentia no páreo; E assim seguiu ele, devorando com gulodice as suas anotações:  - Em que cidade nasceu Yusuf Islam  ( conhecido como Cat Stevans?)   - Qual série de TV tinha como protagonista o Ator Peter Falk?  ... Como  previsto, o Homem avançou  três  compêndios e cinco páginas, mas ainda era pouco. No entanto, com o rabo-dos-olhos ele percebeu que a incomodara.  A Mulher, ali, embatucara-se diante dos  símbolos químico....Ele ouviu, sim,  a ênfase retórica,  insistente, carregada  de  nervosismo:  - Enxofre?.... Lítio?...A mente não lhe faltaria nessa hora – sorriu triunfante.   A  toxicidade das substâncias químicas dançava  à sua frente,  como um gás mostarda, cloro,  ácido cianídrico...  mas ele, ali,  definira-se pelo Napalm -   O  gel pegajoso e incendiário  usado nas guerras trágicas do  Vietnã, Laos e Camboja... porém,  confessava a si mesmo que não viveria a dor do engenheiro Jeff O. Stanford – Chefe do Laboratório Químico dos USA,  responsável pelo envio do Napalm às frentes americanas que, diante do grito antibélico do mundo, e culpando a  si mesmo  pelo genocídio,  suicidara.  Assim, a Mulher, novamente, ganharia a dianteira: - Península que abriga a Grécia e a Croácia?  - Nome de Deuses da Mitologia Grega?... E então,  decidida  a trucidá-lo, sem perdão,  tomou para si as armas decisivas.  Com destreza e maestria, Dona Branca apossara-se dos Estrepes e Culverins; segundo os peritos,  “armas medievais atiradas  contra a  cavalaria inimiga”. Desviando desse campo minado,  o Homem titubeava em seu abecedário: - Substância encontrada em vegetais, de grande importância  para o funcionamento do intestino?. Os passos  seguintes formariam a barreira implacável. O Homem sofria a cada pergunta que preferia  não ouvir:   - O maior império do mundo (em duração)? - Rei pagão denominado pelos judeus como o Messias?... As muralhas e fortificações,  postas ao chão naquela guerra,  levaram-no à rendição. O ar, agora, lhe faltava – disseram os legistas. Portanto, febril, cansado e ofegante, ele se acomodara sobre a mesa, com a cabeça inclinada no braço curvado, e o olhar, certeiramente, dirigido às  pupilas da Mulher.  E então,  a Mulher, com sua respiração traumática naquela batalha sangrenta,  em que vencera  o homem encastelado, numa luta silenciosamente inumana, reconhecera no antagonista, conforme a perícia,  um guerreiro, alguém de valor  e  à altura, o que a  levara à rendição definitiva.  A ausência do ar, agora, sufocava a ambos – disseram os exames. Portanto, também ela, Dona Branca,  acomodara-se na mesa com a cabeça inclinada  e o olhar certeiramente dirigido às retinas do professor Pio!... Fortalecendo a narrativa técnica, o perito retomaria o “caótico rio de pedras”, criando, aleatoriamente, um  apoteótico final:  “nenhuma voz humana podia se fazer ouvir naquele instante fatal sobre o duelo na mesa;  embora ambos, ali,  tivessem o desejo de falar, de se despedirem de toda a carga de emoção que arrastavam consigo, não conseguiriam. O ‘rio de pedras’ interior que os conduzia, enfurecia-se cada vez mais, levando tudo ao redor  para as invisíveis vísceras da terra, pulverizando cascalhos, blocos e rochas para exprimir, talvez,  a impotência maior  do Homem e da Mulher frente ao embate  do vírus vencedor.”  

 Nota:  (*) Umberto Eco – Confissões de um jovem romancista. Ed. Record/2018.

 (**)   Versos do poema    “O Lutador” – Carlos Drummond de Andrade. 




II CONCURSO LITERÁRIO – MARIANA CAZELLA MACIEL

Promoção:  Projeto NEPLLI – Nucleo de Ensino e Pesquisa em Língua e Literatura

Curso de Letras -  Instituto Federal do Paraná -  Campus Palmas 

Realização:   maio/junho 2020  

Classificação:  1º. Lugar  -  Conto:   DUELO SOBRE A MESA

 

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

SALTO SEM BARREIRAS Conto de Celso Lopes

 

SALTO SEM BARREIRAS

 

Em casa quando a situação ficava tensa,  a Mãe  folheava as páginas de um livro do Machado de Assis e o Pai rondava pela sala,  silencioso;  eu acelerava acordes do violão,   criando  um som  desigual  pra  atiçar aquele espaço chamado “lar”.  O violão parecia dizer: “- Ei, Dona Nancy, largue esse maldito livro e grite as suas mágoas para o seu marido, vamos!” A Mãe tremia; era visível que resistia  em tocar fogo no seu lar-doce-lar.  O romance com o Pai,  nasceu de  uma acirrada disputa com uma tal de “Mariana” e lembrava o mestre da literatura.  Trocando os nomes, teríamos a história de ambos recontada pelo  Bruxo do Cosme Velho: O ‘Pai’ quis sinceramente fugir, mas já não pode: ‘Dona  Nancy’, como uma serpente, foi se acercando dele, envolveu-o todo (...) Ele ficou atordoado e subjugado.(...) Para a Mãe,  as ausências  do Pai,  antes um sussurro, agora explodiam...Diante dessa situação,  eu, sem saber o porquê, disparava farpas contra o Pai.  Nascia em mim uma crueldade  provocativa,  capaz de  trucidá-lo até, se preciso.  Tantas vezes, tanto fiz,  que naquele dia a Mãe soltou  os seus  demônios .   “Dona Nancy” aliou-se a mim disparando estilhaços  para o seu homem. “- O Júnior tem razão... Pra você, somente os amigos e as competições!” A Mãe falava e eu sorria vitorioso,   insistindo que ele queria  era fugir da gente,  livrar-se da sua mulher e do seu filho!...  Instigada pela infâmia,  a Mãe pegou o jeito,  avivou as brasas e  entornou a água fervente: “...Comigo? ...comigo apenas alguns minutos,  sem uma palavra de carinho, só cobranças ... Lavou  meu uniforme? Viu minha chuteira? Cadê meu tênis? Eu?... Eu que me lixasse nesse abandono ...  Antes, eu juro, antes eu tivesse deixado você com a espevitada da Mariana... À noite,  quando eu mais te queria, me via ali, sozinha. Eu no meu quarto, o Júnior no dele. Sozinhos, os dois. Sem homem, sem pai, sem palavra amiga.  E você? Você lá no bem-bom, comemorando vitórias...  E você? Você ali, na cama, dormindo cansado...Pior, um homem sem vida pra mim! Sem os desafios que eu queria!... E eu, a boba, a boboca, a vida inteira na plateia, impotente, assistindo a essa sua epopéia olímpica maldita. Maldito, você!”.   Naquela tarde, enquanto a Mãe espezinhava o seu homem,  o Pai fazia  desabar ali na sala, todos os seus troféus esportivos, as  medalhas, as fotografias emolduradas, os seus diplomas e certificados... Eu, sem lhe dar  folga, acentuava o ritmo do violão e  fulminava-o com palavras cruéis;  Eu repetia até que me faltasse o fôlego,  como numa competição em busca de recordes: “- Medalhas, troféus, diplomas... Você  nessas malditas competições, eu  aqui, sem pai, sem amigo.... Às favas, esse tal de Moses! E  ganhou o quê, me diga? Nada!...” Em meio à guerra que lhe fazíamos,  os  “louros”, agora, acomodavam-se espremidos em  caixas de papelão.  O Pai,  aos poucos, livrava as paredes, as prateleiras e as estantes, de tudo aquilo que o mundo esportivo lhe dera; e odiando a Mãe e a mim, descia, furiosamente,  pra depositar as suas conquistas na lixeira da rua.  Pouco vimos o Pai numa competição;  quem o conhecia, no entanto,  admirava o esportista polivalente, de excelente compleição física, um atleta determinado e talentoso, nascido no mesmo dia, mês e ano da lenda-viva do atletismo mundial, Edwin Moses;  garantiam que  dele, o Pai absorvera a  velocidade,  a  força muscular  e a capacidade de treinar ... Hoje,  ali,  no parapeito do sétimo andar,  o olhar do Pai nos evitava, mas mantinha sob vigília todos  os seus troféus. Uma  visão de águia contemplando cada um dos objetos lá na lixeira da rua.  Abrisse a boca, o Pai diria que a medalha de “natação” cromada em ouro 18 fora conquistada na raia olímpica do Tênis Clube ... Abrisse a boca,  diria que lá estava  também a medalha do “futebol”...A Mãe lia pela décima vez “A Cartomante”,  embevecida com a tal “Nancy”. O  Pai,  por certo, também via  entre   suas “honrarias”, o  troféu Hélio Rubens, referência do  basquete brasileiro,  agora,  abandonado  lá na lixeira tal qual o do “handebol”...  Vez ou outra,  seus  olhos  aquilinos rastreavam  o vazio das paredes, a limpidez das estantes, a profundidade das prateleiras... Por vezes,  mirava  olhos reticentes endereçados a mim e à Mãe, mas em  instantes deixava-nos ao abandono.  Apoiado no beiral da janela,  pude ver quando os ruídos lá embaixo abriram-lhe um sorriso. O menino não tinha mais de 12 anos. Primeiro,  olhou para os lados, depois subiu os olhos para o alto do edifício. O Pai, mais visível, esquivou-se para a cortina, temeroso de algum confronto...  E lá estava o menino, ora puxando um troféu, ora uma fotografia, ora uma medalha... Chegou até mesmo a apanhar o porta-retrato do Edwin Moses, mas abandonou-o rápido, por certo,  desconhecia o atleta dos 400 metros com barreiras... A lenda-viva!... O menino, agora, retirava da caixa um quadro emoldurado. O Pai, com a voz embargada, olhos marejados,   soletrava emocionado, acompanhando os lábios do garoto: “Conferimos o certificado de Honra ao Mérito ao atleta Jairo Santos Silva...” O olhar do garoto subiu para o alto do edifício. Prudente, o Pai recolheu-se  fora do beiral.  Mas, fora  a medalha  cromada em ouro 18,  que roubara o interesse do pequeno atleta. Num relance, como quem subisse a um pódio imaginário, vestiu-a sobre o pescoço e  seguiu feliz, rua afora, simulando braçadas numa raia olímpica invisível...  Respirando emoção e entretido até a medula, o Pai só voltou a si diante da minha  ofensiva, como a lhe dizer com o dedo em riste: “Vai ficar aí parado feito estátua? O estrago está feito, agora é consertar ou quebrar de vez! Esses prêmios estão no lugar merecido: sabe onde? No Lixo! Talvez, agora,  você arruma um tempo pro seu filho e pra sua mulher!... Um longo silêncio se interpôs entre nós ali na sala. Em gestos lentos,  o que o Pai fez foi nos amargar de uma  culpa pela vida inteira; o seu filho e a sua mulher carregariam para sempre essa ferida exposta, eternamente, como um revide de pura vingança contra a nossa indiferença.  E ali, bem ali diante do nosso nariz,  como quem fosse subir ao pódio sob flashes, aplausos e chuva de pétalas... O Pai, do alto de seus 1,80 metros, e com a jovialidade de cinco décadas, tentou em prantos, impedir que os garis brutalizassem suas conquistas, mas a voz soou-lhe frágil... E  ainda que a Mãe  tentasse  um grito  impeditivo: “ - Não, Jairo,  pelo amor de Deus, isso não!”, e eu, emudecendo o instrumento, eu lhe endereçasse  uma palavra clamando por tradução: “Calma, Pai!...Calma, Pai!..Calma!”; o Pai, como se preparasse para uma enterrada no garrafão, ou  chutar um pênalti sem chance de defesa, ou ainda, cortar em diagonal  uma bola suplicante na rede,  ou quem sabe,  num esforço sobre-humano, deixar à deriva todos os  competidores na pista com barreiras, à la Moses. O Pai, sem dizer uma palavra sequer, sem tréguas ao cronômetro da vida, num ímpeto de agilidade e impulso, lançou-se janela abaixo, silenciosamente,  em busca de si mesmo...


Texto:  Celso Lopes  /  elipse84@terra.com.br

Publicação no site  www.escritacafeina.com

https://www.escritacafeina.com/post/salto-sem-barreiras

Obs:   publicado na seção Cappuccino Grande