quinta-feira, 17 de setembro de 2020

ASSINA "GUIMARÃES" - Crônica de Celso Lopes

 



                                             Assina “Guimarães”


 

 

É no mínimo curioso e gratificante acompanhar alguns caminhos “coincidentes” da escritora  Ruth Guimarães em seu livro Água Funda,   e de seu colega Guimarães Rosa, no conto A terceira margem do rio.  O livro da autora é de 1946, o do autor, inserido em Primeiras Estórias, é de 1962.  Dezesseis anos separam ambos os textos, porém, ambos os autores, de fato, juntos, submergem e emergem à flor d’água, e a partir dali, tecem nas margens de um  rio, as suas próprias  narrativas.  

 

Se a narradora destila fluida:   A gente passa nesta vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada. E quando alguém mexe com varejão no lodo e turva a correnteza, isso também não tem importância. Água vem, água vai, fica tudo no mesmo outra vez “

 

Guimarães mergulha, aflora e revela nessas mesmas águas turvas:  “...Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais (...)”

 

Rosa destaca a história de um homem que abandona a família e a sociedade local, para viver à deriva numa canoa dentro do rio.  Entretanto, é de se notar que os caminhos do campo para  a cidade são visíveis.  Presos ao mundo rural, restam, apenas,  pai e filho.   Podemos aventar que, diante dessa “estória estranha”, enxergamos os sinais de um novo mundo que se entranha naquele sertão.

 

Água Funda tem como cenário a  fazenda Olhos D’Água, no  sul de Minas e região paulista do Vale do Paraíba,  e de acordo com o resenhista Carlos Carvalho, “o romance nos leva a conhecer os primeiros moradores da propriedade, ainda no século XIX, em pleno período escravocrata e, de repente, a história dá um salto no tempo, chegando ao começo do século XX”.  (...) Se na primeira parte a vida é pautada pela exploração da mão-de-obra escravizada, cujo status está ameaçado pela iminente mudança de modelo econômico e político, na segunda história, a ruptura se dá pelo choque com a modernidade e a chegada dos gringos que vão mudar o processo de produção do açúcar e do álcool na usina da fazenda (...)

 

Para o resenhista, ainda, há de se acrescentar que “ Toda essa dose de realidade econômica, social e política é contada em um registro fantástico, com um lirismo e um ritmo narrativo que antecipa muito do que se produziu na literatura mágica latino-americana.”

 É de se notar, portanto, que as assinaturas “Guimarães” dos respectivos textos, desabrocham os  sinais e as evidências de um  novo tempo; do antigo  país rural, agrário, apontam-se os desenhos de um Brasil industrializado, de consumo, com  mudanças no eixo de poder;  se há algum tipo resistente   em Rosa,  é expressado através da  demência e loucura, de pai e filho: 

 

“- Ninguém é doido. Ou então, todos”.

 Ruth Guimarães desembarca em São Paulo aos  18 anos no bojo desse Brasil que se constrói há instantes.  “Tempos difíceis” – relata a escritora -   Eu não conhecia ninguém, a não ser dos livros, lidos no silêncio da noite, no meu quartinho de dois passos de largura, sublocado nos fundos de uma casa de família.”  

A escritora  viu-se sozinha na grande cidade,  nem parentes nem amigos, entretanto, ainda que, ‘expulsa’ do meio rural, daquele outro Brasil, veio para os estudos em busca de cumprir a sua sina,  e  trouxe na sua  bagagem a memória viva e profícua relatada em seu romance Água Funda que,  conforme analisa  Fernanda Miranda:   “A ficção acentua o que ficou de uma fase na outra, isto é, elabora as permanências e resíduos do colonial na passagem do tempo” (...)

 Para Miranda, a verdadeira protagonista no romance é a figura mítica da Mãe de Ouro, que funciona como representação do Destino: “Onde mora? Mora no fundo da terra. Onde ela está o outro brota do chão, que nem mato. O fundo do rio onde se açoita é dourado e brilhante que é ver um céu. A areia se estrela de escamas, tudo ouro. Quando vai mudar de lugar, vira uma bola de ouro, tão bonita, que parece fogo, riscando o céu. A gente enxerga um minuto só aquilo, avermelhado no ar. Depois some. Eu já vi. Vi com estes olhos que a terra há de comer, a Mãe de Ouro se mudando de Olhos D’Água.”

 

Para a própria autora de Água Funda,  em sua preciosa síntese:  Água funda é um livro engraçado, livro da vida de todos os dias, é um livro de “acontecências”. Qualquer vida dá uma água funda, qualquer um de nós escreve um diário e conta aquelas coisas de todos os dias e vai sair uma água funda”.  Não há dúvida de que  Ruth Guimarães encontrou, sim,  o seu tempo. E nos deixa na amplitude das suas palavras, o foco do seu destino, a sua sina, ao pisar, segura e confiante na grande cidade, com a  tarefa de nos legar um incessante trabalho literário; e ainda,  também como o autor “Guimarães”,  deixar uma importante lição para todos nós sobre a literatura universal.     “Ao mesmo tempo, rica de certeza, de uma presciência, de uma esperança, que sei eu? sonhando os sonhos mais doidos. Viver, sempre aceitei como uma grande aventura.” -  relata-nos, com sinceridade, a autora de Água Funda.   

 

(*) Carlos Carvalho – escritor e jornalista

https://lombadaquadrada.com/2019/10/21/agua-funda-o-classico-fantastico-de-ruth-guimaraes/

(*)  Fernanda Miranda é doutoranda em Letras (USP)

https://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/2118-os-fluxos-cont%C3%ADnuos-de-ruth-guimar%C3%A3es-e-de-seu-livro-%C3%A1gua-funda.html

 










 

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