Assina “Guimarães”
É no mínimo curioso e gratificante acompanhar
alguns caminhos “coincidentes” da escritora
Ruth Guimarães em seu livro Água Funda,
e de seu colega Guimarães Rosa, no conto A terceira margem do rio. O livro da autora é de 1946, o do autor,
inserido em Primeiras Estórias, é de 1962.
Dezesseis anos separam ambos os textos, porém, ambos os autores, de
fato, juntos, submergem e emergem à flor d’água, e a partir dali, tecem nas
margens de um rio, as suas próprias narrativas.
Se a narradora destila fluida: “A gente passa nesta vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole
um pouco. E depois não fica mais nada. E quando alguém mexe com varejão no lodo
e turva a correnteza, isso também não tem importância. Água vem, água vai, fica
tudo no mesmo outra vez “
Guimarães mergulha, aflora e revela nessas mesmas águas turvas: “...Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma
parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de
meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais (...)”
Rosa destaca a história de um homem que abandona a
família e a sociedade local, para viver à deriva numa canoa dentro do rio. Entretanto, é de se notar que os caminhos do
campo para a cidade são visíveis. Presos ao mundo rural, restam, apenas, pai e filho.
Podemos aventar que, diante dessa “estória estranha”, enxergamos os
sinais de um novo mundo que se entranha naquele sertão.
Água Funda tem como cenário a fazenda Olhos D’Água, no sul de Minas e região paulista do Vale do
Paraíba, e de acordo com o resenhista
Carlos Carvalho, “o romance nos leva a conhecer os
primeiros moradores da propriedade, ainda no século XIX, em pleno período
escravocrata e, de repente, a história dá um salto no tempo, chegando ao começo
do século XX”. (...) Se na primeira parte a vida é pautada pela
exploração da mão-de-obra escravizada, cujo status está ameaçado pela iminente
mudança de modelo econômico e político, na segunda história, a ruptura se dá
pelo choque com a modernidade e a chegada dos gringos que vão mudar o processo
de produção do açúcar e do álcool na usina da fazenda (...)
Para o resenhista, ainda, há de se acrescentar que “ Toda essa dose de
realidade econômica, social e política é contada em um registro fantástico, com
um lirismo e um ritmo narrativo que antecipa muito do que se produziu na
literatura mágica latino-americana.”
“- Ninguém é doido. Ou então, todos”.
A escritora viu-se sozinha na grande cidade, nem parentes nem amigos, entretanto, ainda
que, ‘expulsa’ do meio rural, daquele outro Brasil, veio para os estudos em
busca de cumprir a sua sina, e trouxe na sua
bagagem a memória viva e profícua relatada em seu romance Água Funda
que, conforme analisa Fernanda Miranda: “A ficção acentua o que
ficou de uma fase na outra, isto é, elabora as permanências e resíduos do
colonial na passagem do tempo” (...)
Para a própria
autora de Água Funda, em sua preciosa
síntese: “ Água funda é
um livro engraçado, livro da vida de todos os dias, é um livro de
“acontecências”. Qualquer vida dá uma água funda, qualquer um de nós escreve um
diário e conta aquelas coisas de todos os dias e vai sair uma água funda”. Não há
dúvida de que Ruth Guimarães encontrou,
sim, o seu tempo. E nos deixa na
amplitude das suas palavras, o foco do seu destino, a sua sina, ao pisar,
segura e confiante na grande cidade, com a tarefa de nos legar um incessante trabalho
literário; e ainda, também como o autor “Guimarães”, deixar uma importante lição para todos nós
sobre a literatura universal. “Ao
mesmo tempo, rica de certeza, de uma presciência, de uma esperança, que sei eu?
sonhando os sonhos mais doidos. Viver, sempre aceitei como uma grande aventura.” - relata-nos, com sinceridade,
a autora de Água Funda.
(*) Carlos Carvalho –
escritor e jornalista
https://lombadaquadrada.com/2019/10/21/agua-funda-o-classico-fantastico-de-ruth-guimaraes/
(*) Fernanda
Miranda é doutoranda em Letras (USP)
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