SALTO
SEM BARREIRAS
Em casa quando a situação ficava tensa, a Mãe
folheava as páginas de um livro do Machado de Assis e o Pai rondava pela
sala, silencioso; eu acelerava acordes do violão, criando
um som desigual pra atiçar aquele espaço chamado “lar”. O violão parecia dizer: “- Ei, Dona Nancy,
largue esse maldito livro e grite as suas mágoas para o seu marido, vamos!” A
Mãe tremia; era visível que resistia em tocar
fogo no seu lar-doce-lar. O romance com
o Pai, nasceu de uma acirrada disputa com uma tal de “Mariana” e
lembrava o mestre da literatura.
Trocando os nomes, teríamos a história de ambos recontada pelo Bruxo
do Cosme Velho: “O ‘Pai’ quis sinceramente fugir, mas já não pode: ‘Dona Nancy’, como uma serpente, foi se acercando dele,
envolveu-o todo (...) Ele ficou atordoado e subjugado.(...) Para a Mãe, as ausências do Pai,
antes um sussurro, agora explodiam...Diante dessa situação, eu, sem saber o porquê, disparava farpas
contra o Pai. Nascia em mim uma crueldade provocativa,
capaz de trucidá-lo até, se
preciso. Tantas vezes, tanto fiz, que naquele dia a Mãe soltou os seus
demônios . “Dona Nancy” aliou-se a mim disparando
estilhaços para o seu homem. “- O
Júnior tem razão... Pra você, somente os amigos e as competições!” A Mãe
falava e eu sorria vitorioso, insistindo que ele queria era fugir da gente, livrar-se da sua mulher e do seu filho!... Instigada pela infâmia, a Mãe
pegou o jeito, avivou as brasas e entornou a água fervente: “...Comigo?
...comigo apenas alguns minutos, sem uma
palavra de carinho, só cobranças ... Lavou meu uniforme? Viu minha chuteira? Cadê meu
tênis? Eu?... Eu que me lixasse nesse abandono ... Antes, eu juro, antes eu tivesse deixado você
com a espevitada da Mariana... À noite, quando
eu mais te queria, me via ali, sozinha. Eu no meu quarto, o Júnior no dele.
Sozinhos, os dois. Sem homem, sem pai, sem palavra amiga. E você? Você lá no bem-bom, comemorando vitórias... E você? Você ali, na cama, dormindo cansado...Pior,
um homem sem vida pra mim! Sem os desafios que eu queria!... E eu, a boba, a
boboca, a vida inteira na plateia, impotente, assistindo a essa sua epopéia olímpica
maldita. Maldito, você!”. Naquela tarde, enquanto a Mãe espezinhava
o seu homem, o Pai fazia desabar ali na sala, todos os seus troféus
esportivos, as medalhas, as fotografias
emolduradas, os seus diplomas e certificados... Eu, sem lhe dar folga, acentuava o ritmo do violão e fulminava-o com palavras cruéis; Eu repetia até que me faltasse o fôlego, como numa competição em busca de recordes: “- Medalhas,
troféus, diplomas... Você nessas malditas
competições, eu aqui, sem pai, sem amigo....
Às favas, esse tal de Moses! E ganhou o
quê, me diga? Nada!...” Em meio à guerra que lhe fazíamos, os “louros”, agora,
acomodavam-se espremidos em caixas de
papelão. O Pai, aos poucos, livrava as paredes, as prateleiras
e as estantes, de tudo aquilo que o mundo esportivo lhe dera; e odiando a Mãe e
a mim, descia, furiosamente, pra
depositar as suas conquistas na lixeira da rua. Pouco vimos o Pai numa competição;
quem o conhecia, no entanto, admirava
o esportista polivalente, de excelente compleição física, um atleta determinado
e talentoso, nascido no mesmo dia, mês e ano da lenda-viva do atletismo
mundial, Edwin Moses; garantiam
que dele, o Pai absorvera a velocidade, a força
muscular e a capacidade de treinar ... Hoje, ali, no
parapeito do sétimo andar, o olhar do
Pai nos evitava, mas mantinha sob vigília todos os seus troféus. Uma visão de águia contemplando cada um dos objetos
lá na lixeira da rua. Abrisse a boca, o
Pai diria que a medalha de “natação” cromada
em ouro 18 fora conquistada na raia olímpica do Tênis Clube ... Abrisse a
boca, diria que lá estava também a medalha do “futebol”...A Mãe lia pela
décima vez “A Cartomante”, embevecida
com a tal “Nancy”. O Pai, por certo, também via entre suas “honrarias”, o troféu
Hélio Rubens, referência do basquete
brasileiro, agora, abandonado
lá na lixeira tal qual o do “handebol”... Vez ou outra, seus olhos aquilinos
rastreavam o vazio das paredes, a
limpidez das estantes, a profundidade das prateleiras... Por vezes, mirava olhos reticentes endereçados a mim e à Mãe,
mas em instantes deixava-nos ao abandono.
Apoiado no beiral da janela, pude ver quando os ruídos lá embaixo abriram-lhe
um sorriso. O menino não tinha mais de 12 anos. Primeiro, olhou para os lados, depois subiu os olhos
para o alto do edifício. O Pai, mais visível, esquivou-se para a cortina,
temeroso de algum confronto... E lá
estava o menino, ora puxando um troféu, ora uma fotografia, ora uma medalha...
Chegou até mesmo a apanhar o porta-retrato do Edwin Moses, mas abandonou-o rápido, por certo, desconhecia o atleta dos
Texto: Celso Lopes
/ elipse84@terra.com.br
Publicação
no site www.escritacafeina.com
https://www.escritacafeina.com/post/salto-sem-barreiras
Obs: publicado na seção Cappuccino Grande
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