DUELO SOBRE A MESA
Um dos peritos, impressionado
pelo fulgor do embate, chegou a citar, textualmente, “o
caótico rio de pedras”, narrado pelo
escritor Umberto Eco*. E não sem razão;
há de se acreditar, insistia o perito,
que no auge desse enfrentamento imperioso, o interior de ambos seguia em
contínua ebulição, revelando uma torrente furiosa, tal qual uma “correnteza de
grandes rochas informes, placas irregulares e cortantes como lâminas, e amplas
como pedras tumulares (...). Aos olhos do perito, fora assim o duelo entre Dona Branca e o Professor Pio. Quem os
conheceu no dia a dia informava que as
desavenças entre ambos, não raro, surgiam
após um silêncio profundo; nessas
horas o ar ficava pesado e fazia
brotar, às claras, um rancor íntimo desencavado.
Acredita-se, informam os peritos, que esse conflito pode ter sido
acentuado pelo toque de se recolherem ao
lar, uma vez que integravam o grupo de risco imposto pela Pandemia. Foram
encontrados, ali, sentados, frente a frente, na mesa da sala; cada qual em seu
canto com a cabeça curvada e apoiada
sobre o braço; o olhar de cada um deles parecia, certeiramente, dirigido ao outro. Lá estavam, inertes, até a descoberta. Cansado de ligar
para os pais, o filho informou ao Zelador do prédio, e este, pressentindo algo estranho, levou o caso à
polícia, que, instantes depois, solicitou a abertura do local e posterior autópsia. O casal vivia há muitos
anos naquele prédio do bairro. Ela, uma antiga professora de história;
ele, ex-chefe de laboratório de biologia
da faculdade, onde se conheceram ainda bem jovens. A perícia técnica apresentou anotações, laudos,
infográficos e fotos, destacando um
considerável número de Palavras Cruzadas abertas; um Volume sisudo de cor marrom; dois Dicionários que, pelas digitais, disseram os peritos, o Caldas Aulete seria o da Mulher, e o Aurélio, o do Homem. A perícia indicou que as sandálias da Mulher deixaram
rastros. Observou-se que teria se
deslocado até à cozinha, onde tomara café na térmica; depois, deteve-se
na estante da sala, de onde retirou o Volume marrom, que destacava na
página interna: “Instrumentos de Guerra
da Antiguidade”. Segundo a perícia, tratava-se de relatos sobre estratégias dos antigos exércitos, como
o “Apito da morte”, descrito, ali, como “um objeto sonoro criado pelos Astecas, que simulava estridentes
gritos de pessoas em sofrimento, induzindo os adversários a um estado de
transe desesperador.” Apanhado o
livro, Dona Branca se dirigira
à mesa do embate. Então, ali, o
duelo teve início para ambos. Cada qual
com os seus compêndios de Cruzadas. Segundo os peritos, era quase possível
“ver” a agilidade da Mulher no desafio das verticais e horizontais, sem tréguas
ao adversário; indicaram ainda, que, em determinado instante, os olhos da Mulher
foram ao encontro dos olhos do Homem. O abalo causado por esse olhar, disseram eles,
fragilizara o oponente. Na praça de guerra, o espalhamento das revistas acenava com que a
estratégia do Homem seguia rápida com rigorosa atenção nas armas de combate. Ao Homem, fortaleciam-lhe as publicações relativas a filmes, teatro, música, biologia
e literatura química. Novamente, “pressentia-se” a voz da
Mulher de forma explosiva no território da disputa. Podia se ler, com
clareza, uma das perguntas: “Animal
mitológico associado à virgindade, tem a
forma de um cavalo com um único chifre frontal?”. Bingo.
“Unicórnio”. Assim assinalara a Mulher. Ao Homem,
restava-lhe o sofrimento frente à pergunta quase sussurrada: “- O
nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo?”. Segundo os
peritos, os sinais mostravam, vivamente, que o professor Pio estancara-se com a caneta no ar; pois sentia,
naquele embate infernal, a Mulher apontando-lhe as armas de Guerra. Aquelas tamanhas e
poderosas, como a Catapulta, arma de ataque capaz de quebrar barreiras dos
homens, especialmente, os encastelados e
protegidos em cidades muradas. Haveria de destruí-lo, caso ele persistisse.
Lançaria sobre seu adversário as mais potentes armas, que haveriam de liquidá-lo no interior do
palácio. Recuasse, portanto, ou então,
receberia o golpe mortal: haveria de lhe atirar a maldição das esposas incompreendidas!... Para os peritos, a mente do Homem dirigira-o para a área química. Ou ele a superaria agora
ou haveria de viver a maldição das
esposas abandonadas. O Homem sussurrava,
exalando suor frio. Ele sentira o baque. Doeu-lhe a força desse punho gigante
da Mulher à sua frente. Por isso,
olhava, agora, de dentro do seu próprio silêncio, para dona Branca, enquanto
lançava mão do seu Aurélio:
- O nome de uma das sete maravilhas do mundo antigo!... No entanto, as tentativas se mostraram infrutíferas e o silêncio fora
quebrado, apenas, pela retórica ascendente da Mulher.
“ - o Santo Graal também é chamado de.....?”. Neste ponto, os peritos adicionaram ao laudo: “ na
sala avolumada de silêncio, podia ser
percebido os contornos grandiosos dos olhos
do Homem e da Mulher, como
fossem eles, Dona Branca e o Professor Pio,
os guerreiros autênticos das antigas Cruzadas, os soldados de Cristo.”. Então, enquanto a Mulher já se debruçava
nos desafios da sua Coquetel Super, um certo
vazio se instalava no ambiente.
Agora, as horizontais da Passatempo do Homem pediam ajuda aos
deuses da sabedoria: “ - Trepadeira comum em muros - com quatro letras? - A
flor da idade, no sentido figurado - com
nove letras?”... Enquanto o Homem
entendia a necessidade urgente
dessas respostas, ela, a Mulher, garantem os peritos, ganhava
distância a olhos vistos. As palavras
cruzadas exigem mais que uma
brincadeira - ironizava em seu silêncio - como se mostrasse a ele, ao Homem, que as Cruzadas não brincam. Então, a Mulher preparou-lhe um
olhar fulminante repleto de força bruta sonora: “Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto, lutamos
mal rompe a manhã(**)”. E tomada pelo poder dessas palavras ditas,
eis que, então, sob suas mãos, elas, as palavras, ganharam formas definidas de ataques: primeiro
as pontiagudas, depois as cortantes,
e por fim, as explosivas... E assim, a
Mulher lançara, inapelavelmente, sobre Homem, os seus escudos especiais. Ao
Homem, restava-lhe manter a
distância adequada para não ser ferido de morte. Mas para sua festa surgiram os
filmes, teatro, música, artistas e afins.
O Homem sorriu largo, pois, se
sentia no páreo; E assim seguiu ele, devorando com gulodice as suas
anotações: - Em que cidade nasceu Yusuf Islam
( conhecido como Cat Stevans?) -
Qual série de TV tinha como protagonista o Ator Peter Falk? ... Como
previsto, o Homem avançou
três compêndios e cinco páginas,
mas ainda era pouco. No entanto, com o rabo-dos-olhos
ele percebeu que a incomodara. A Mulher,
ali, embatucara-se diante dos símbolos
químico....Ele ouviu, sim, a ênfase
retórica, insistente, carregada de
nervosismo: - Enxofre?....
Lítio?...A mente não lhe faltaria nessa hora – sorriu triunfante. A toxicidade das substâncias químicas dançava à sua frente,
como um gás mostarda, cloro,
ácido cianídrico... mas ele, ali, definira-se pelo Napalm - O gel
pegajoso e incendiário usado nas guerras
trágicas do Vietnã, Laos e Camboja...
porém, confessava a si mesmo que não viveria
a dor do engenheiro Jeff O. Stanford – Chefe do Laboratório Químico dos
USA, responsável pelo envio do Napalm às frentes americanas que, diante
do grito antibélico do mundo, e culpando
a si mesmo pelo
genocídio, suicidara. Assim, a Mulher, novamente, ganharia a dianteira:
- Península que abriga a Grécia e a
Croácia? - Nome de Deuses da Mitologia
Grega?... E então, decidida a trucidá-lo, sem perdão, tomou para si as armas decisivas. Com destreza e maestria, Dona Branca
apossara-se dos Estrepes e Culverins; segundo os peritos, “armas
medievais atiradas contra a cavalaria inimiga”. Desviando desse campo
minado, o Homem titubeava em seu
abecedário: - Substância encontrada em vegetais, de grande
importância para o funcionamento do
intestino?. Os passos seguintes
formariam a barreira implacável. O Homem sofria a cada pergunta que preferia não ouvir:
- O maior império do mundo (em duração)? - Rei
pagão denominado pelos judeus como o Messias?... As muralhas e
fortificações, postas ao chão naquela
guerra, levaram-no à rendição. O ar,
agora, lhe faltava – disseram os legistas. Portanto, febril, cansado e
ofegante, ele se acomodara sobre a mesa, com a cabeça inclinada no braço curvado,
e o olhar, certeiramente, dirigido às pupilas da Mulher. E então,
a Mulher, com sua respiração traumática naquela batalha sangrenta, em que vencera o homem encastelado, numa luta
silenciosamente inumana, reconhecera no antagonista, conforme a perícia, um guerreiro, alguém de valor e à
altura, o que a levara à rendição
definitiva. A ausência do ar, agora, sufocava
a ambos – disseram os exames. Portanto, também ela, Dona Branca, acomodara-se na mesa com a cabeça
inclinada e o olhar certeiramente dirigido
às retinas do professor Pio!... Fortalecendo a narrativa técnica, o perito
retomaria o “caótico rio de pedras”, criando,
aleatoriamente, um apoteótico
final: “nenhuma voz humana podia se fazer ouvir naquele instante fatal sobre o
duelo na mesa; embora ambos, ali, tivessem o desejo de falar, de se despedirem
de toda a carga de emoção que arrastavam consigo, não conseguiriam. O ‘rio de
pedras’ interior que os conduzia, enfurecia-se cada vez mais, levando tudo ao
redor para as invisíveis vísceras da
terra, pulverizando cascalhos, blocos e rochas para exprimir, talvez, a impotência maior do Homem e da Mulher frente ao embate do vírus vencedor.”
Nota: (*) Umberto Eco – Confissões de um jovem romancista.
Ed. Record/2018.
(**) Versos do poema “O Lutador” – Carlos Drummond de
Andrade.