quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O preZente de Natal - conto de Celso Lopes

 


O preZente de Natal

Muita gente não acredita que exista o “reino das palavras”, e bem mais perto do que se imagina. Basta olharmos para uma estante e se  ali estiver  ali um dicionário... pronto!... É nesse lugar mesmo que elas moram.  Lá  dentro, que parece tudo muito quietinho, quietinho,  é onde acontecem as estripulias do abecedário.  Por isso mesmo, pode se dizer que  as letras, todas elas, são  como crianças quando ficam sozinhas num quarto ou numa sala... muitas vezes viram um Deus nos acuda!.... 

Alegres. Serelepes. Bagunceiras. Irritadas...  As letras também são assim. São como crianças. Às vezes, até se parecem com  a gente.  Veja a letra    “A”, por exemplo,  quem não conhece um menino ou uma menina,  um amiguinho, um primo, ou até mesmo um tio mais velho, alto e  comprido, de pernas longas feito o “A” maiúsculo?  Ou então, alguém com um rosto redondinho com uma  franjinha, feito a letra “a”minúscula?  A  letra  “B”  se parece com uma criança rechonchudinha, seja  pequena na forma minúscula, seja grande na forma maiúscula. E  assim vai seguindo. Cada letra  com o seu jeito. Igualzinho uma criança. E que melhor momento para ver a alegria das crianças senão na época do Natal?   Cada criança,  à sua maneira, não vê a hora de escrever uma cartinha para o Papai Noel... e no dia exato correr para  encontrar presentinho trazido pelo  “bom Velhinho”.

No reino das letras é a mesma coisa.  Papai Noel chega na casa de uma letra,   entra pela chaminé ou pela janela entreaberta, olha para  a arvorezinha enfeitada, pega a  lista dos presentes, avalia como foi a “criança”, quer dizer, a letra, durante o ano, e pronto. Coloca ali o tanto certo de brinquedos  para cada criança, digo, para cada letra  que  habita o “reino das palavras”. E assim elas vivem  felizes para sempre?  

Nada disso. Sempre pode existir uma pedra, quer dizer, uma palavra torta no meio do caminho, e neste caso, atente  pelo nome de Zê!...  A letra  Zê, a última letra do alfabeto,  sempre foi uma espécie de criança zangada. Tão zangada como o personagem Zangado  na história da Branca de Neve e os Sete Anões. Mais que  enfezado,  o  Zê não se conformava  em   ser o último de todos  na ganhar o seu presente de Natal.  O Papai-Noel não tinha culpa, pois  a recomendação era seguir a ordem alfabética:  a, b, c, d, e , f, g, h, i, j....     E era isso que  mais  irritava esse menino zangadinho chamado  Zê.

Por isso, ele vivia choramingando  pelos cantos, chutando latas de tão nervoso, e tentando conseguir apoio dos seus vizinhos. O que ele queria mesmo era inverter a ordem  da entrega dos presentes. Dessa forma, claro, seria o primeirão a ganhar o presentinho.  Bem que o Zê   tentou  trazer para o seu lado  a letra S, a letra T, a letra U,  o  W....  Como não conseguiu, ficava  trucidando  a letra  “A” com suas pernas longas ou  com sua  franjinha no corpo. O “A”, confortável que estava na sua posição,   nem ligava para o  Zê.  Sabia que da lavra dessa consoante é que  saiam “as mais belas palavras do Natal” . Por isso, dizia e recitava pra quem quisesse ouvir:   Amor... Alegria... Altivez.... Apreço.... Apoio.... Alma...    Claro que a letra  “Bê” não  deixava por menos:   “ E no Natal não tem  Beleza,  Bolas,   Beatitude, Brincadeiras, Bondade...  não tem?” – dizia o Bê, tentando ser melhor que o A.   Quem não perdia tempo também era a letra CÊ, que sempre se gabava  com o  seu jeito de meia-lua, das   possibilidades de  ser soletrado de várias formas, e  insistia:     “ Quando é preciso sou  Casa...  mas também sou Ceia,  e  sou até Criação,  e também sou Carinho  e Coração.... “

Quando ouvia  isso,  o “ZÊ”  esperneava.  Tentava buscar algumas palavras que pudessem competir com esses “espertinhos” – como dizia - , mas nada, nada vinha em sua ajuda. Da sua boca saiam apenas  frases   provocativas  e ofensivas : -  “Zagais”... “Zabumbada” ...  – Dizia o Zê  em tom alto, enquanto  manquitolava  tortuoso   no “reino das palavras”.  O dicionário não tinha culpa nenhuma.  Afinal, permanecia  ali na estante, fechado, como um livro qualquer que descansasse dos muitos manuseios e leituras. Mas foi assim mesmo, a páginas fechadas,  que se deu aquela balbúrdia, isto é, quase uma revolução nada silenciosa no mundo das letras. As vogais,  esparramadas que estavam ao longo das páginas, juntaram-se rapidamente, gritando palavras de ordem contra o zangadinho Zê :

- Urra, urra, urra... sozinha a  letra Zê   é burra!...

 Perfiladas e unidas no seu tradicional a-e-i-o-u, as vogais exigiam que tudo ficasse como estava.  Os presentes deveriam ser entregues pela ordem do abecedário tradicional: abcdefghijklmnopqrstuvx....e finalmente, o Zê!...

- Zaratrustras!!!...  respondia o “Zê”, no seu estilo ofensivo contra as vogais.

Letra tortuosa e explosiva, o “” sempre caminhava  dizendo adjetivos próprios (e até impróprios), além de alguns substantivos de difícil compreensão. Era chegar o Zê por ali, e lá vinham aqueles  nomes estranhos: 

- Zarolhos!...,  “Zagais!... Zabumbada!...  “Zambê!... 

O “Zê” dizia tudo isso e depois  ficava “zaranzando” pelas páginas, até seguir para longe, bem longe e  zeloso como um “Zepelim” voando...

Não se sabe como, mas essa balbúrdia no “reino das palavras” chegou ao ouvido do Papai Noel. O que fazer para tudo ficar em ordem como sempre fora? O bom Velhinho consultou todos os sábios do Universo e mandou o recado. A longa noite em que se comemora o Natal , quando todas as crianças dormem o seu sono  encantado, uma carruagem voadora, trazida pelas mais belas Renas do universo, corta os continentes para levar uma alegria sem igual  aos pequeninos do mundo. É bem verdade que não havia presentes para todos. Muitos e muitos ficam sem nada. Algumas crianças nunca, sequer, ganharam um presente de Natal. Mas poucas crianças ficavam sem o carinho nessa data que homenageia o nascimento do  Menino Jesus.  Sempre há uma alma boa e solidária para os  mais necessitados. Sendo assim, não importa por onde se começa, o que é necessário  é que todos ganhem um afeto.  Um carinho simples que seja, pode se transformar num belo presente de Natal. 

Papai Noel cumpria a sua parte. Ao amanhecer o dia, todos os presentes estavam entregues, portanto, sua  tarefa estava cumprida.  Dizendo isso, mandou logo um recado para o  “menino Zê:  Que ficasse  tranquilo, afinal,  o  presente dele também já estava na caixa para ser entregue, portanto  – disse Papai Noel -  não precisa ficar me mandando recado com indiretas  na grafia das letras,  para me lembrar do seu presente.  Papai Noel disse isso porque o Zê, espertamente,  trocava o S pelo Z,  achando que iria enganar o bom velhinho.  Olha só como o espertinho escrevia as suas cartinhas:

“ Papai Noel, minha caZa  é logo ali!...   Papai Noel,   traga meu preZente primeiro!...  Papai Noel, não querendo abuZar do Senhor... ” 

Papai Noel sabia que criança era criança, quer dizer,  letra era letra. Sendo assim,  cumpriu mais uma etapa na vida de quem não faz outra coisa a não ser  entregar as lembranças  para o mundo inteiro.  O sinos de Natal soaram com a beleza de sempre.  As crianças correram em busca dos presentes. Quanto ao  ZÊ -  inquieto como sempre -  continua dizendo que ainda vai  criar um  novo alfabeto, cujo nome será  – Alfabeto Zumbix -  uma sugestão  proposta pelo amigo  “Xis”, um indivíduo xereta e  xarope, dono de um xeque-mate exclusivo para   convencer a todos  Como segunda letra desse novo alfabeto, o esperto “Xis” tentava  algumas adesões importantes, por isso vivia dizendo: 

  -  K, W e Y merecem nosso Xodó!... Viva o Alfabeto ZUMBIX!... 

Mas a letra Xis, com  o  seu jeito  de jogar  xaveco no vazio,  percebeu logo  a  xaropada   que inventaram.  A essa altura, o  zombeteiro  ZÊ,  sem rumo,  ziguezagueando  entre os vocábulos,  zurrava  e zumbia a não mais poder.  Por fim, ambos, o  ZÊ e XIS, feito andarilhos  zumbis,  riram soltos da zoada e zombaria,  certos de que tudo não passava de  pura provocação ao tradicional abecedário.   A letra A  evitava, a seu modo, um confronto direto com os integrantes do ZUMBIX,  preferindo – sempre que possível – analisar com seus provérbios:

-  “Abnóxios, o que são!”... “Abominável” ZUMBIX!... “Abobrinhas”, o que falam!...

Ainda não sabemos como isso tudo  vai  terminar. O ZÊ continua tortuoso e inconformado, e sempre está  manquitolando com novas ideias pelo caminho. E o Xis, claro, segue o mestre,  está sempre do lado dele. Por enquanto, o Papai Noel está tranquilo quanto aos pedidos de todas as crianças do mundo, mas sabe que no meio do caminho sempre pode ter  uma pedra, quer dizer,  uma letra que atende pelo nome  de ZÊ, e que vive querendo mais e mais  “ PreZentes”,  e primeiro que todos as outra crianças.  “Vai que uma hora dessas ele consegue mudar  o alfabeto!...” – analisa o bom velhinho, com  toda a sua alegria de sempre: Ho...Ho...Ho!... Ho...Ho...Ho!...

 

Texto: Celso Lopes 



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