terça-feira, 10 de novembro de 2015

NAPALM

Primeiro lugar no V Concurso de Contos Cidade de Lins/SP. 2015



“NAPALM”

Já no carro, em seu percurso de volta, uma profunda agonia tomou conta do Major. Vivenciara nesse onze de agosto um  dia em que a soma das perdas aniquila e derrota o mais resistente do mortais. E antes mesmo que chegasse ao Instituto Médico Legal – o IML,  onde faria o reconhecimento do corpo, o botão do rádio sentiu a pressão dos seus dedos, pois, ali, agora, ele necessitava  do silêncio como se fosse o próprio  ar que respirava.  E sob aquele vazio volumoso e  extremamente incômodo, o Major Benhur,  culpando a  si mesmo pela obediência cega  às  normas e às ordens da sua Corporação,  lembrara-se de  Jeff – o Chefe do Laboratório Químico nos USA,  responsável pela preparação e envio do napalm às frentes americanas no Vietnã. Também ele – recordava Benhur – também ele, Jeff, cumprira com rigor a  sua missão de apoio incondicional  às políticas  de  guerra, entretanto, experimentara  o grito antibélico na própria pele, na própria alma, diante das  enfermidades, mortes e do terror causados por sua presteza e competência!... Era assim que o Major se sentia à entrada do estacionamento: desacreditado, sem forças e desfalecido, e a um passo de tomar a mesma decisão de Jeff.    
Naquela manhã, quando o  Major  apertou fortemente o celular sob sua mão, já deixava  transparecer uma preocupação  incomum  para o início do  seu dia; era visível que se perturbara com o  telefonema,  e agora, ali, retrocedia o tempo,  avaliando  a conversa com o interlocutor.  Quem passasse à curta distância ouviria o Major se expressar  em tom de bronca ou de censura:  “ - Ah! Dona Nara!... Ah! Dona Nara!...”  O Major entendera de imediato que a mãe, dona Nara, ou talvez alguma amiga dela, inocentemente, teria  colaborado para que o general Juce tivesse acesso ao seu número particular... e da sua parte, o Major sabia que o general sempre fora um  obstinado, e  a conseqüência  disso é que se  transformara, hoje, no arqui-inimigo da Segurança Pública, o principal homem à frente do crime organizado que invadira todo o sistema prisional no estado.  Já na sala, ensaiando os preparativos para a reunião de cúpula, enquanto rodopiava o lápis entre os dedos, gesto que lhe servia para  estimular o pensamento, o Major Benhur  lembrou-se da sua habilidade para o desenho. Por essa razão,  faria surgir  sobre a folha em branco, o semblante perfeito do  filho Marcelo, revelando, ali,  para si mesmo, a preocupação  e o desconforto que vivenciava no seu íntimo, que em nada lembrava a noite em que se sentira atingido pelas  farpas doces da felicidade, quando, no  grande salão de eventos, sob  aplausos, o filho Marcelo  recebia uma destacada homenagem da Academia de Polícia, de onde saía  com o  reconhecimento de  todo o corpo docente. Nessa noite, o sorriso do Comandante Benhur   triunfou aos olhos de todos.   O que despertou Marcelo para o sentido da farda, foi a sua relação amistosa com  a  comunidade. A base móvel  dava-lhe o respeito  e  o compromisso de se fazer algo pelos moradores.  Era inegável, portanto,  que na Unidade Móvel da praça Joana D’Arc,  todos o enxergassem como  um amigo e excelente policial.   Para o  Comandante, no entanto,  sempre causara incômodo essa atitude do filho, pois imaginava para ele, um futuro mais próximo ao poder,  talvez uma Secretaria, a Diretoria de Operações, uma  Regional...  E mais – para o Comandante, a  base móvel estava aquém do filho e se revelava cada vez mais  perigosa.  “- Um alvo  a céu aberto!”  - afirmava.    O filho, porém,  sustentava a firme convicção de se fazer por si, de subir pelos seus próprios méritos,  ainda que todos os amigos o instigassem  - “mas você é o herdeiro do homem mais forte da Polícia”... Mesmo revelando uma  preocupação extrema pelo filho, no fundo, no fundo, o Major Benhur admirava aquela forte personalidade.  Entretanto, na manhã de hoje, o telefonema do general Juce fora claro:  incluía o policial Marcelo como moeda-de-troca nas exigências que fazia  para a saída de presos no Dia das Mães. Mesmo transtornado diante dessa morte anunciada, e sem saber como,  o Major, ainda  encontrou forças para reviver o  amigo  de infância,  ou melhor, a história da convivência de  ambos até à adolescência, quando tomaram rumos distintos.  Os pais de Juce e Benhur eram amigos, e  praticamente da mesma idade.  Quando se casaram, logo encomendaram os  filhos  que, coincidentemente,  nasceriam no  mesmo dia onze  de agosto.  Para alegria das famílias, os meninos  Benhur e Júlio César,  por  muito tempo, comemoraram juntos os festejos de  aniversário.  Vale dizer que ambos – Benhur e Juce,  tiveram  suas histórias de vida regidas por uma epopéia familiar. Dona  Nara, mãe de Benhur e Dona Laura, mãe de  Júlio César, quando grávidas,  debruçaram-se sobre  relatos  de  heróis medievais,  à cata de nomes que mais se fizessem apropriados ao primeiro filho.  Isso, tão logo o ultrassom acabara de confirmar o sexo das crianças!...  Dali à escolha dos nomes, o tempo fora rápido.  Empolgada com a vida de um rico mercador Judeu, traído e escravizado pelo antigo amigo romano, mas que se esforçara pela conquista da  liberdade,  Narinha não vacilou:   - Benhur!...  – disse à amiga, contornando a barriga, delicadamente, com as mãos,  e reiterando, inúmeras vezes, com amplo  sorriso nos lábios, o nome épico,  para que o próprio bebê  pudesse ouvi-la   - Benhur!... Benhur!...
- Júlio César, mas sem o Caio  -  de Caio não gosto!... Fica Júlio César!... dissera Laurinha,  colocando um ponto final à sua procura.  Júlio César!... E dissera de forma empolgadíssima, especialmente, porque o  achado era excelente:  um  general importante do Império Romano, um homem audacioso ... enfim,  um homem aguerrido!     “- E que melhor coisa o “Juce”  iria querer, hein?  -  acentuava, alegremente,  Laurinha,  com a certeza de que o  apelido criado pela junção das primeiras sílabas emprestava  prestígio e simpatia ao seu  grande general romano:   JU-CE!... -  e completava:- Juce é tão bonito, você não acha,  Narinha?... Dona Laura, mais que dona Nara,  pouco a pouco, apresentava-se com  uma habilidade acentuada para “Mãe”.  Parecia ter sido feita sob medida para a maternidade.  E por isso, pode-se dizer que adotara o filho de Narinha em seu lar, e reiterava, orgulhosamente:  amava Benhur, gostava do jeito compenetrado daquele  menino, e via para ele – mais que no próprio filho – um brilhante futuro!...    Daí pra frente o mundo dera voltas e mais voltas.  E do desgaste na  relação entre as duas crianças surgiram as brigas e desavenças entre os  dois adolescentes.  E  do desentendimento crescente entre ambos, aparecera o conflito latente  dos homens feitos:  Benhur, o major Benhur, hoje estava no   Comando Geral da Segurança; e  Júlio César, o Juce, o general Juce, o amigo de infância, hoje, era o  homem forte do tráfico,  chefe da maior organização criminosa implantada nos presídios.  Mas tiveram  por onde serem rivais  – ponderou o Major Benhur,  ainda com o lápis em punho,  lembrando-se de um antigo  episódio, quando, cada qual a sua maneira,  ainda galgava o seu espaço; o major Benhur surgira na corporação dando os primeiros passos no Presídio Disciplinar – a menina dos olhos da Segurança Pública -  de gestos fortes e irascível em decisões, Benhur  logo ganharia, internamente, o apelido que lhe faria jus por muito tempo:  – Dá-Sem-Dó!...  Por sua vez, ainda conhecido como   “Fonte Luminosa”,  Juce  apresentara-se à frente dos detentos com uma liderança ímpar  e criativa, capaz de articular  uma fuga memorável; ainda que  tivesse acabado  de forma  trágica, o  episódio somou pontos no mundo do crime,  dando origem  ao destemido JUCE, o general JUCE, como o apelidaram, pois com a inteligência e a audácia dos aguerridos teria  dado   liberdade a mais de uma centena de internos, não fora  o desabamento  imponderável do túnel que soterrara  a maior parte dos fugitivos.  Juce escapara do  incidente, no entanto, líder nato,  e temendo a prisão e transferência, enfrentaria  pela primeira vez, o antigo amigo, o Major Benhur,   por força de uma  ação de seqüestro sob seu comando.   Antes que se pudesse contar até três na velocidade do som,  o Major Benhur e sua tropa fizeram tombar a porta da sala onde Juce mantinha a refém,   entretanto,  recuaram temerosos diante do que viram. O general Juce desenhara um cenário  que exigia atenção e cuidados;  mantinha a Assistente Social junto  à mesa, deixando visível a faca ao  alcance da mão.   O Major Benhur pode ler nos olhos de Juce as artimanhas de um golpe anunciado, por isso, manteve-se em silêncio, sinalizando  à  tropa o posicionamento em círculo. Estava claro que Juce   levaria  essa   infâmia ao fim do mundo, pois mantinha  a refém a uma distância precisa, inibindo qualquer iniciativa precipitada.  Enquanto o   silêncio se prolongava,  o Major Benhur  tentava decifrar aquele cenário estratégico:  o episódio levado  às últimas conseqüências seria capaz de transformar o general Juce,  de  bandido a herói, pois  os tiros sobrariam em maior  parte para a própria  Assistente Social.  Sobre a mesa,  a faca  reluzia diante  de todos,  parecendo dizer que estava à espera, que aguardava  ordens  para cumprir o seu destino, ou seja, furar bem fundo a  jugular da  Assistente. Refém do silêncio, aos poucos,  o Major Benhur deixaria   ver em sua face os contornos de um sorriso enigmático, transformando-se paulatinamente no impulsivo Dá-Sem-Dó.  Era evidente que precisava agir  tal qual aprendera no comando da Polícia.  Sintonizada,  a tropa de choque interpretava aquele  código  em ordens  de Atenção, Preparar, Fogo!.... Nesse instante, porém,   o que se ouviu a partir dali,  foi um  grito ímpar. Um grito de mulher que, instintivamente,  decifrava o enigma e doava-se de corpo e alma aos seus rebentos.  De braços abertos, como um  sinal da cruz a intimidar os Fariseus,  a  Assistente  compreendeu que nenhum dos dois  cederia à intenção e ao gesto.  Cristãos todos,  o general Juce e  Dá-Sem-Dó recuaram, ambos,  intimidados. A  tropa baixou as armas. Juce afastou-se da faca.  E com a delicadeza de uma mãe, coube à  refém indicar um caminho  seguro para todos.   Dá-Sem-Dó  e o general Juce  acenaram – antagônicos -  com uma certa reverência diante dessa Nossa Senhora da Salvação.
Superado o incidente, seguiram, ambos,  cada qual o seu caminho. E então, ali, agora, sobre a mesa,  sob as mãos hábeis do  exímio desenhista, Major Benhur,   surgiria   no papel  o rosto  duro e grotesco do  general  romano Júlio César – aliado às palavras do telefonema daquela manhã;   “- ...Você me conhece, Benhur,  ou facilita a saída dos meus meninos  ou ponho fim na carreira do seu  moleque ... o que acha?   E  sem   dar qualquer trégua,  Juce acentuaria a data comemorativa; - Ah! Benhur... Dona Laura manda lembranças,  nunca esquece do nosso aniversário, você sabe! ...e  de mais a mais,  você sempre foi o xodó da  Velha, não é!?...   
O Major Benhur,  com as mãos ágeis e uma destreza incomum,  pouco a pouco,   impregnava a imagem do general  romano, Juce,  com  traços  agressivos,  Entretanto,  por mais que o rejeitasse,   não poderia deixar de  vê-lo  também nas cores puras da   infância: o corajoso Juce,  de semblante  inteligente, ágil e esperto... o estrategista Juce enganando  a todos na brincadeira de “Salva-Cadeia”...Já não havia mais a quem pegar, todos os meninos estavam presos na corrente indiana,  faltando apenas o general romano Júlio César... e nada do Juce aparecer pra libertar os amigos. Houve até quem o chamasse de general traidor!... Ali  na rua, próxima à praça,  apenas alguns bóias-frias solitários chegando do trabalho com seus apetrechos e enxadas às costas... Pois, exatamente quando passavam pela “cadeia” surgiria o aguerrido Juce, disfarçado num desses trabalhadores e, tranquilamente, daria o salvo-conduto a todos os meninos  naquela prisão inventada pelo imaginário infantil!... 
“- Bandido também tem Mãe, não é,  Comandante!...”
Já na reunião de cúpula, o Major Benhur  tentara esfriar os ânimos dos seus pares de linha mais dura sobre a transferência de detentos para presídios de segurança máxima no interior do estado.  Mas a sua ênfase  recaía quase sempre sobre a proposta de liberação  de presos no Dia das Mães. Era evidente que, mesmo  amaldiçoando Juce,  o Major tentasse ganhar tempo para reelaborar o  projeto destinado aos detentos de alta periculosidade.  Entretido nessa tese,  a  referência às genitoras, sem que o Major  percebesse, fora motivo de ironia entre os homens da mesa oval. A liberação de presos  no feriado da Mães  ganhara desdobramentos. Os gráficos da ala mais conservadora apontavam para um número excessivo de presidiários  com acesso ao benefício; o que traria pânico e insegurança  à população, além de descrédito à própria esfera da Polícia. Depois de muitos entreveros,  decidiu-se  por nenhuma liberação.  Voto vencido,  o  Major Benhur  deglutia o resultado; e o seu desconforto saltava aos olhos mais atentos de alguns membros da Corporação, como o Capitão Jardim, que lhe indagara:  - Está tudo bem, Major!?...       Ao deixar a sala, o Major  entendera que lhe restava, agora,  somente correr contra o tempo; restava-lhe   acionar o celular do filho  com  a  autoridade de Comandante e Pai.  Por essa razão dirigia-se, pessoalmente, ao  Controle Geral  para informar sobre   o desativamento  da  base Joana D’Arc.  Arriscava-se,  é verdade. Corria riscos,    porém,   era visível que  temia  pela presença do filho naquele local, pois o  recado do general Juce fora claro.  Em seu álibi, o major Benhur justificaria a iniciativa como um estudo para futuros desativamentos  dessas unidades!...   Mas,  o tempo fora curto. Curtíssimo até.   Antes mesmo que o Comandante Benhur dissesse “espera, Juce”  na velocidade digital  do próprio  celular,   a voz do  aguerrido general romano crescia poderosa, atingindo contornos que desfaziam qualquer acordo,  deixando, inclusive, suspeitas sobre o  vazamento da  operação Dia das Mães.   A voz  seca de Juce soara como   um   rojão, sinalizando   um único caminho de entendimento. Emudecido, Benhur sentia  no próprio corpo,  a pressão de um  incômodo  e dolorido soco  que o levava a  nocaute  no chão de um ringue:   “   -  Não brinco, Benhur!... Não brinco!.”.- finalizou Juce.   Atropelando  os seus próprios movimentos,  o major Benhur  avançaria  corredor adentro  no suntuoso prédio da Secretaria, enquanto  tentava, já, pela quinta vez,  acionar  o celular do filho, a essa hora  sem qualquer resposta.   Benhur  seguiria atordoado, e  quase em transe,  direto às  salas  do  Comando, onde pode  confirmar o que  o general romano, Juce,  já havia lhe  soprado no telefonema:  “ - A base da Joana D’Arc foi atacada, Comandante .. e temos vítimas!.. Lamento, Major, lamento!...
As palavras do oficial de plantão soaram como um petardo arrasador,  por isso,   quem olhasse para o  Comandante  Benhur  de volta à  sala,  e o visse puxar a gaveta e desta retirar a arma e o silenciador,   conferindo  o seu carregamento, por certo não conseguiria descrever  aquela estranha fisionomia.  O que se via ali,  era  um rosto com  marcas que mais pareciam frinchas numa parede nua;  entretanto, eram visíveis no Major, os  traços fortes,  acentuando o que se pode chamar de raiva, ódio e um  clamor, impiedoso,  de vingança;   quem por ventura passasse ali bem próximo, ouviria um nome   reiterado de forma insistente  nos lábios do Major Benhur:  - Dona Laurinha!..   O carro do Major  Benhur fazia as manobras pelas ruas estreitas do bairro, onde observara  que,  praticamente, ainda  se mantinha a mesma geografia dos tempos idos. Benhur ladeava o veículo e, por vezes, parava-o para conferir o nome da rua,  ou ainda,  para ver de perto o pé-de-amora na casa de  dona Rosa,  fruta que fora objeto de desejo da sua infância... No entanto, hoje, ali,  Benhur direcionava o seu foco para a antiga casa azul de portão amarelo, quando se incomodara ao acionar a campainha, atendida, sem demora, e que colocaria  Dona Laura, Dona Laurinha,  já bem idosa   – a doce mãe do general romano  Júlio César  - o Juce -  bem  à sua frente,   a dois passos de distância, quando  muito, irradiando uma esfuziante recepção capaz de inundar a própria rua:     - Benhur...meu menino!... e Narinha, como vai? – Quanto tempo!... Que bom te ver ..Parabéns pra você e pro Juce!...
Por instantes, o Major sentiria  dentro de si,  a voz   melodiosa da mãe de Juce como uma punhalada que o perfurava até a  alma.   Entretanto, compenetrado e militarmente circunspecto,  diria para si mesmo, que  não haveria volta. Dona Laurinha que o perdoasse, mas não poderia transigir no seu intento.  Seu recuo  seria  tão improvável  quanto a ordem de  Juce  contra  a base móvel do seu filho  Marcelo. Enquanto a a imagem de Marcelo surgia  em sua mente pedindo-lhe   um  socorro intermitente até  se transformar  num sussurro que sumia dos próprios  lábios, a mão do Major Benhur seguia, deliberadamente  ao encontro da arma;  a sua  respiração crescia ofegante, mas não o impedia de assentir para si mesmo, que Dona Laurinha carregaria com ela, para sempre,  o vale-tudo entre os rivais,  o peso insuportável  da  retaliação  entre polícia e bandido;  entretanto, antes que o Major levantasse o revólver à altura exata para o disparo, ouviu-se um ruído no alpendre, marcadamente, a  voz enfática e reticente do general Juce:   “ Mãe!...Mãe... está por aí?”     Aquela presença inesperada, colocaria ali, mais uma vez,  frente a frente,  o general romano Julio César, o Juce, e  Benhur, o Major Benhur. Entre eles, agora,  Dona Laurinha.  A mãe de ambos, que, eufórica, quebraria o incômodo silêncio.  A visita  dos filhos queridos, no dia do aniversário,  empolgava-a como nunca;  entretanto, ali,  à curta distância,  os olhos do general Juce fulminavam como um punhal  o desafeto Benhur,   e por certo,  perfurando-o, impiedosamente, com aquelas palavras-lâminas:   Dona Laurinha, Benhur?... você  ia atirar em Dona Laurinha... a Mãe que sempre te acolheu?...   Os olhos do major Benhur, por sua vez, transformavam-se, ali,  em um potente explosivo, capaz de  esmigalhar quem se opusesse à sua frente:     - E Marcelo, Juce, e Marcelo? ...  você matou  o  meu único filho!....    Com os olhares cruzados, faiscantes e estratégicos, Benhur e Juce  definiam  a certeza do primeiro tiro, que, no entanto, fora   interrompido por Dona Laurinha: . - O que houve, brigaram?  - dissera ela, ainda  ligeiramente desorientada, porém,   capaz de perceber que nenhum dos filhos  arriscaria a romper  o insuportável silêncio... E então, ali, em fração de segundos, antes que as armas cumprissem o seu ritual... o  que se ouviu,   enquanto Benhur e Juce decifravam a estratégia  que os levaria a eliminação de um ou de outro... enquanto Benhur e Juce,  reféns da tragédia,  deixavam ver em suas faces os contornos  de um  final trágico e inadiável,...  enquanto  ambos interpretavam os códigos da vida como  ordens  de atenção, preparar, fogo! ....   nesse instante, nesse fatídico instante,   o que se ouviu foi o grito daquela Mãe.   Um grito de mulher que, instintivamente,  doava-se  de corpo e alma  às suas crias.   De braços abertos, como um  sinal da cruz a intimidar os  Fariseus  naquele templo, Dona Laurinha   fez valer a  experiência  de quem percebe como inevitáveis,   a intenção e o gesto.  Cristãos todos,  o general Juce e o Comandante Benhur recuaram  intimidados. Ambos com  o desconforto íntimo, abaixaram os olhos e as armas diante daquela Salve Rainha, Mãe da misericórdia.  Sem dizer qualquer palavra, mas  com a delicadeza de uma Santa, Dona Laurinha apontou-lhes o caminho seguro.  O Major Benhur com a respiração entrecortada e ofegante, deixava visível  a dor latente em sua alma carregada de ressentimentos: o pior deles, o pior de todos, ou seja, a decisão de  matar Dona Laurinha para se vingar do general Juce!... Cabisbaixo, e em silêncio sofrido, o Major Benhur afastou-se lentamente buscando a saída como uma fuga desesperada. O general Juce reteve o seu  ímpeto sob o comando de  dona Laura.   E então, ali, rapidamente, Benhur e Juce acenaram entre si,  como um pacto, uma trégua, um sinal de  reverência   diante daquela  redentora,  daquela  Nossa Senhora da Salvação.
As luzes do estacionamento do IML, onde reconheceria o corpo do filho, já  deixavam  marcas sobre a  noite, quando o Major Benhur - com gestos demorados, carregados de tensão daquele dia  onze de agosto,  e minado em suas últimas resistências, retirou  a  arma e o silenciador  do porta-luvas.  Instantes depois,  quem  olhasse para o  veículo de luzes apagadas -  sob um som abafado, quase em surdina - notaria o clarão, como o napalm incendiário, um risco de luz, aquele  brilho ágil e metálico de um tiro  ricocheteando no  interior do carro, tal qual fizera o Engenheiro Jeff O. Stanford no cumprimento do seu dever.



Texto:  Celso Lopes


terça-feira, 15 de setembro de 2015

BIG BANG  (A grande implosão)
  


Uma árvore...  Um filho... Um livro...

O que se há de dizer sobre isso?
Um compromisso que emana
(e do qual não me livro),
ou uma epifania da natureza
(numa explosão sagrada e profana),
anunciando a  criação da própria 
espécie humana!?...

Um livro...   Um filho... Uma árvore...

O que se há de dizer sobre isso?
Seria um signo  ou pura linguagem:
Sendo o livro – eis a forma de um  criador de mundos;
Sendo filho - o  ser mais simples e mais  profundo;
Sendo  árvore: raiz do universo, o nosso próprio mundo!...

Um filho... Uma árvore...Um livro...

O que se há de dizer sobre isso?
Pois que sigam... e sigam expressivos, livres e vivos,
sem que nada  rompa, dilua, quebre ou entre
nessa importante explosão de  frutos do nosso ventre.





Texto: Celso Lopes

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O VÔO-CEGO  E  O  CÉU-DE-BRIGADEIRO”



É provável que a expressão - vôo-cego -  estivesse presente na cabeça de grande parte dos integrantes da Comitiva Real,  deslocada às pressas de Portugal nos idos de 1807, para aportar, separadamente, em terras brasileiras. A história registra que a esquadra lusitana navegou à deriva, tendo muitas vezes pela frente,  além das águas turvas e revoltas, as calmarias com sol escaldante, os perigosos rochedos e, naturalmente,  o vazio sem fim e a falta de rumo!... Já a segunda expressão, aplica-se ao brasileiro Santos Dumont, que surge, aproximadamente, 35 anos depois;  e que, ao contrário de D. João VI que aqui desembarcava, o futuro “ás dos ares” partia do Brasil por volta de 1890, na esperança de encontrar – e por vezes, até encontrou – um céu de brigadeiro para mostrar ao mundo a sua mais importante invenção. (Obviamente, Santos Dumont também desejava os céus parisienses em dias sem nuvens,  de um azul brilhante e límpido, literalmente).

D.João VI teria sido o nosso ‘Santos Dumont’, que ao pousar numa colônia longínqua e desconhecida (e com tudo por fazer), dera fé às palavras do escritor britânico Christopher Lee, para quem  “as pessoas fazem a história, mas elas nem sempre se dão conta do que estão fazendo”.  Sendo assim,  a vinda da  Corte em  1808, teria permitido a ‘invenção do Brasil’.  E o ‘14-bis’ de D.João VI   eclodiria multiplicado em navios singrando as águas marinhas,  abrindo caminhos para o nosso intercâmbio com o novo mundo... Santos Dumont foi o nosso ‘Príncipe Regente’, benquisto pelo povo, elogiado por todos, e  que aportara nos rincões parisienses  à cata  de conhecimentos maiores, capaz de ajudá-lo a erguer  os seus dirigíveis e a manter sobre controle o seu  mais-pesado-que-o-ar...

Separados pelo tempo, cada qual distante do seu torrão natal  e  apreensivos a seu modo, em comum, lançaram-se, ambos, ao encontro do destino num  misto de realidade e aventura, fracassos e conquistas, créditos e descrença...A Comitiva real, há duzentos anos, lançava-se ao mar, às pressas,  tendo nos calcanhares  o genioso, intrépido e perigoso inimigo, Napoleão Bonaparte. Com o apoio da escolta inglesa, D.João VI, (ainda que em fuga), decidira colocar em prática um antigo plano da coroa portuguesa, para ocupar de vez aquelas terras distantes, ou seja, o Brasil; na verdade, um arremedo de país  sem  infraestrutura de transportes, construções, saneamento, saúde , educação, comunicações, comércio, indústria  e com um sem número de outras, muitas outras dificuldades.

O inquieto menino sonhador, Alberto Santos Dumont, nascido no interior do país, mas de ascendência francesa, alguns anos à frente do “Rei do Brasil”,   com sua insistência infinita, com tamanha generosidade, e às suas custas,   mantinha-se de pé, literalmente, diante das dezenas de  tombos e imprevistos, das quedas e dos  desastres que sempre o rondaram em cada desafio...  Enquanto D. João VI chegava à colônia pelas águas, tendo o seu  olhar voltado às matas, aos mares, à geografia, às artes e à música, aos aglomerados urbanos, e por que não dizer, às guloseimas que tanto lhe abriam o apetite (segundo os historiadores, em especial, a coxinha de frango,  que o Monarca sempre trazia nos bolsos do casaco)...  Santos Dumont, por sua vez  inquietava-se olhando os ares, os céus, a direção dos ventos,  as  pradarias, os galpões de construção, os motores,  as estruturas técnicas  e os novos  cânones da engenharia!...

D. João VI, somado aos quase quinze mil lusitanos que aqui chegaram,  encontraria um “país” por fazer, um reinado por construir e toda a sorte de dificuldades com a distante coroa portuguesa que abandonara...  Santos Dumont, ainda que próximo aos maiores centros tecnológicos do mundo, e com indiscutível perseverança, por vezes, parecia bater em ferro-frio para fazer avançar  os seus projetos. No entanto,  em tempo algum, recuaria:  “ ...O inventor não faz saltos: progride manso, evolui ” , diria ao apresentar para o mundo o seu mais-pesado-que-o-ar,  o projeto híbrido denominado 14-bis!... 

Se, originariamente, D.João VI envidara sua ‘fuga’ como um vôo-cego em direção à colônia, em verdade, uma vez aqui aportado, suas iniciativas elevaram o Brasil à categoria de um país emergente, permitindo aos brasileiros de então, a cunhagem gradativa da sua própria auto-estima. Não nos faltam razões para inferir que a abertura dos portos, a revogação de leis restritivas ao comércio e à industria, a criação de canais de decisão e soberania, a abertura de estradas, o  incentivo à imprensa,  os investimentos nos cenários de educação e saúde,  o impulso aos ambientes artístico-cultural, todos eles, juntos,  criaram  injeções de otimismo e euforia na pacata “Vila Brasil”  daqueles tempos.

O panorama do país, de norte a sul, nunca mais fora o mesmo. Por isso, realmente, há quem afirme que “ quando a família real portuguesa  aportou em Salvador, no dia 22 de janeiro de 1808, o Brasil começou a ser inventado”.  E de forma a fortalecer esse conceito, o escritor Laurentino Gomes acentua que “ num intervalo de apenas 13 anos, entre a chegada da corte e a volta do rei para Lisboa, uma colônia atrasada e ignorante ficou pronta para se tornar uma nação soberana”. Dessa forma, a nacionalidade do país estava criada. A vinda de D. João VI nos dera asas. Promovera o desenvolvimento do país. Unificara as regiões distantes. Fizera surgir aqui, uma identidade nacional.

O passo seguinte, portanto, seria inevitável: o Brasil aspirava por liberdade, ansiava  pela independência; o país, agora, seguiria para alcançar o vôo-livre,  e  para tal, precisaria, sozinho, fazer-se um bom piloto, tornar-se um bom comandante, aprender a dirigibilidade, manejar os instrumentos de bordo, enfim, rasgar os céus, conquistar os ares,  tal qual  Santos Dumont fizera quase cem anos depois, culminando com aquele vôo histórico do seu 14-bis em 12 de novembro de 1906, em Paris,  no Campo  de Bagatelle!... Quase cem anos antes, em 1808, D. João VI, ainda que carente da meticulosidade, da criatividade e do  árduo empenho do inventor,  legara-nos, aqui mesmo,  ao rés do chão,  uma diversificada benfeitoria, um arsenal estratégico e fundamental, capaz de promover  o surgimento da nossa brasilidade e da própria nação brasileira.



(*) Menção Honrosa no Concurso de Crônicas da Academia de Letras de Campos Gerais/  Ponta Grossa-PR. 2008

                                        

“A CANETA REAL”    -                                                



  

Há canetas simples, que se prestam unicamente para escrever, e outras, verdadeiras jóias, verdadeiras peças de arte, muito mais destinadas à ostentação do que ao ato da escrita.   Segundo se sabe, as primeiras canetas  que substituíram a pena de ave, eram  pedaços de madeira com uma ponta de metal, mas isso só viria a acontecer no século 18, quando começaram surgir as variações desse objeto.  Não nos faltam razões para inferir que a “caneta-tinteiro real” de D.João VI, já no século 19, a seu tempo, era moderna, atualizada e destinada às ações e aos fatos, afinal, parece-nos ter sido utilizada sem titubeios, servindo à abertura dos portos,  à revogação de leis restritivas ao comércio e à indústria, à criação de canais de decisão e soberania na colônia, à abertura de estradas, ao  incentivo à imprensa,  aos investimentos nos cenários de educação e saúde, aos impulsos importantes  nos ambientes artístico-cultural, entre outras medidas que,  juntas,  injetaram  doses de   muito otimismo e euforia na pacata “vila Brasil”  daquela época. 
Tampouco nos falta razão para admitir que a comitiva real, a despeito da fuga, apressada, diante da invasão Napoleônica, colocara em ação um antigo plano B, reservado, estratégica  e preventivamente,   para  se evitar um provável novo ataque ao território português.   Afinal, Portugal passara 60 anos sob o domínio da Espanha, e nada garantia que estivesse imune e protegido dessas “intempéries”.   Portanto, nesse caso, o “Brasil” poderia ser uma saída à altura.  Para se convencer disso, na opinião da Professora de história Francisca Nogueira Azevedo (UFRJ), basta que se atenha às palavras do diplomata português Luis da Cunha, ainda no começo do século 18, dirigidas à Sua Majestade D.João V, numa ‘carta quase profética’:  “ Considerei que S.M. se achava na idade de ver potentíssimo e bem povoado  aquele imenso continente do Brasil e nele tomasse o titulo de Imperador do Ocidente (...) Na minha opinião o lugar próprio de sua residência seria a cidade do Rio de Janeiro”. (grifo nosso). Segundo a historiadora, a idéia estendeu-se ao século 19,  e  encontrou em D.Rodrigo de Souza Coutinho, o chefe do Tesouro Real, um defensor ferrenho, como se pode avaliar nessas palavras “ Portugal não é a melhor parte da monarquia, nem a mais essencial. Depois de devastado por uma longa e sanguinolenta guerra, ainda resta ao seu Soberano, e aos seus povos, irem criar um poderoso império no Brasil”
Não nos faltam razões para inferir que a caneta- tinteiro real utilizada em 1808, mantinha-se embebida  dessa história, e por isso mesmo fora utilizada com uma certa maestria  por  D.João VI e sua equipe, quando, rapidamente, em solo brasileiro, não pouparam  tintas para traçar um novo colorido social, econômico e cultural nas terras brasileiras.  E por certo, os pigmentos dessa tinta    remontam  a quatro séculos, pois em  6 de fevereiro de 1608,  nascia em Portugal, o Padre Antônio Vieira que, ainda criança, emigraria para o Brasil onde se prepararia para uma atuação expressiva sob os auspícios da Companhia dos Jesuítas.  Os ecos da sua brilhante participação estão presentes  em, praticamente, todos os campos de exigência lúcida, seja como diplomata, profeta, pregador, missionário, literato, entre outros, e ainda permanecem sob atenção e estudos.  É de se supor, portanto,  que essa “voz”  capaz de reverberar nas terras do Brasil e da Europa, ora  nas  singelas aldeias indígenas, ora nos mais renomados  púlpitos de pregação religiosa, ou ainda, nos sofisticados recintos palacianos, tenha avançado o suficiente para garantir  brilho à tintura real, dois séculos à frente,  quando  a Corte portuguesa com aproximadamente 15 mil pessoas,   aqui aportou às pressas, fugindo  da iminente invasão francesa de Napoleão Bonaparte.

Do Padre Vieira, basta dizer,  para surpresa dos leitores  “que seus escritos de quase quatro séculos podem ser mais reveladores da atualidade do que as notícias do jornal do dia”,  como assinala o professor Francisco Maciel Silveira (USP), na coluna de Francisco Quinteiro Pires, da Agência Estado.   Duzentos anos depois de Vieira,   D.João VI e sua equipe,  ainda que sem a lucidez,  a visão holística do seu antecessor,  sem a  sua formação Jesuítica,  a erudição política e econômica, e até mesmo,  carentes  da habilidade do artista-escultor,  como pregava Vieira sobre o papel do Missionário,   ao que parece, o séqüito real deteve-se apenas no mundinho das possibilidades reais,  das necessidades primárias e prementes da colônia (o que não foi pouco, obviamente.)...  Mas, ao agir assim com a sua caneta-real, Sua Majestade  pareceu cumprir de uma só tacada dois aforismos que lhe caem como uma luva. Um deles, do escritor inglês, Christopher Lee, ao nos dizer que “ As pessoas fazem a história, mas elas nem sempre se dão conta do que estão fazendo”. O outro, do próprio Padre Antônio Vieira que, no campo das probabilidades, parece ter saído dos antigos tinteiros,  que o Pregador, por certo,  sempre deixava disponível para os seus momentos repletos de engenhosidade de raciocínio e clareza de estilo. Com sua “pena de ave”,  Vieira nos legaria um recado que, não custa reiterar, traz consigo um certificado de validade universal e atemporal:  “ Não tem de olhar para o céu, mas para as cegueiras do mundo”. O seu cumprimento, entretanto,  faz exigência de verdadeiras canetas reais, aquelas simples, práticas, sem rococós, destinadas unicamente a produzir  o  encantamento  e as idéias concretas,  passíveis de  serem  desdobradas ao infinito,  em todas as suas possibilidades,  para  se  atingir o  “bem-comum” dos súditos de todas as  gerações.


* Crônica classificada em 2o. Lugar no concurso da Academia de Letras dos Campos Gerais – Ponta Grossa/PR – Concurso “ 200 anos da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil ” (2008 )


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

“O BORBULHO DAS ÁGUAS”


Fatiar a água
e servi-la aos pedaços...
Agarrar o tempo sob os braços e adulá-lo
tão eternecido como se afagasse um filho
ao som de um  estribilho de ninar...

Fatiar a água
e servi-la em porções...
Celebrar o instante  em banho-maria:
reservar no mais sublime dos corações,
o calor  de dois corpos que se atraem
em frenética paixão...

Fatiar a água
e torná-la hóstia...
E então ser capaz da pura calma
ao comer o próprio corpo
e sorver-lhe a primazia da alma:
enxergar a revelação do fugaz,
a transitoriedade da vida,
o frágil e a sensibilidade
em seu ápice de concretude.

Fatiar a água
 e assentá-la, ainda incandescente,
por entre as labaredas do fogo.
Dominar na fervura, os desejos do corpo
e da alma:  traduzir  em gestos nus
a ansiedade candente no âmago 
da mais profunda calma.

Fatiar a água
e conduzi-la em carruagens-origami
pelas galáxias infindáveis  do universo...
tocar na razão e no existir de todas as formas de vida,
e  traduzi-la  sem meias palavras:
trincar o passado...ruir o presente
e reinventar o Avatar  do novo futuro.

Fatiar a água
e  esculpi-la como um barco-navegante
aos  mares de si mesmo:
rumo à terra dos homens dignos,
à espraiada da inocência e  compreensão,
rumo ao país de todos os amores.

ESTUPOR (mensagem intergaláctica)




Ando à míngua, 
trago comigo todas as  línguas-mortas
na ponta da minha língua.
Uma outra linguagem, o que sou:
surda-muda.
Ando à míngua...
à espera de um aceno no reino do universo,
e então serei farto em prosa e verso:
Vou me saciar a pleno pulmões,
e não há de estuporar essa íngua,
pois recusarei o banquete de Pélope
e  não viverei o suplício de Tântalo*...
Nunca mais a fome, nunca mais a sede...
Seguirei ímpar, multilíngüe, como sei, como sou,
 incansável decifrador de hierógrafos,
sou a nave-mãe levando o meu epitáfio para o futuro:
“saudações, quem quer que seja.
Trago boa vontade e paz através do espaço”**





(*) Tântalo, filho de Zeus, casado com Dione, teve três filhos.  Ousando testar  os deuses, serviu-lhes a carne do próprio filho Pélope. Lançado ao Tártaro, num vale com abundante vegetação e água,  foi castigado  a não poder saciar sua fome nem a sede. 
(**) Paráfrase à mensagem da Missão Espacial Européia em pesquisa sobre a origem do sistema solar e a vida na terra, cuja nave-mãe recebeu o nome de Rosetta.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

terça-feira, 4 de agosto de 2015

SALTO SEM BARREIRAS

Conto de Celso Lopes, Escritor


Em casa quando a situação ficava tensa era fácil de saber: a Mãe se recolhia num canto do sofá da sala folheando sem parar as mesmas páginas de um livro do Machado de Assis; o Pai, o Pai rondava de um lado pra outro, pensativo e silencioso; e eu, de violão em punho, acelerava as batidas, tremulando acordes desconexos e desafinados... enfim, criando um som alto e desigual, cujo objetivo era apenas atiçar o ambiente daquele espaço chamado “lar” com as minhas provocações. O violão parecia dizer em alto e bom som: “- Ei, Dona Nancy, você não engana a ninguém... largue esse maldito livro e grite as suas mágoas para o seu marido, vamos!” A Mãe tremia sob a minha música desconcertante; era visível que resistia, o quanto possível, em tocar fogo no lar-doce-lar quando se tratava do Pai. Pode-se dizer que o romance da “Dona Nancy” com o Pai, nascido de uma acirrada disputa com uma tal de “Mariana”, esbarrava nas artimanhas criadas pelo mestre da literatura. Se substituíssemos apenas os nomes, teríamos a história de ambos recontada pela psicologia endiabrada do Bruxo do Cosme Velho: “O 'Pai' quis sinceramente fugir, mas já não pode: 'Dona Nancy', como uma serpente, foi se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou- lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, susto, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima das ervas e pedregulhos.

Para a Mãe, “Dona Nancy”, aquelas ausências acumuladas do Pai, que antes lhe soavam como um sussurro carinhoso, agora explodiam. Explodiam e apunhalavam. E, por certo, doíam-lhe como nunca! Em casa quando a situação ficava, assim, tensa, eu, sem saber o porquê, gritava aqueles acordes no violão e disparava as minhas farpas todas contra o Pai. Fel puro e desprezo, as minhas palavras. Nascia em mim uma crueldade mesquinha que me levava a provocar o Pai, a ironizar, a trucidá-lo até, se preciso. Tantas vezes, tanto fiz. E tanto fiz, tanto fiz, que naquele dia a Mãe também soltou todos os seus demônios contra ele. “Dona Nancy” aliou-se a mim disparando estilhaços por todos os lados, os seus golpes mais profundos. Palavras duras e cruéis as de uma esposa para o seu homem. A Mãe esbravejava, parecendo tirar das páginas do livro aberto em suas mãos, todos os seus ais, as suas mágoas e as suas dores: “- O Júnior tem razão... Pra você, somente os amigos, os amigos e as competições!” A Mãe falava em altos brados e eu sorria por dentro. E vitorioso, como se desafinasse a minha voz acompanhando o violão, eu insistia sem trégua que ele queria mesmo era fugir da gente; o que o Pai pretendia mesmo era livrar-se da sua mulher e do seu filho! Instigada por essa infâmia carregada de inveja e rancor criados por mim, a Mãe pegou o jeito, soprou forte e avivou as brasas, e depois, depois entornou de vez a água fervente:
...Comigo? ...comigo apenas alguns minutos, sempre sem uma palavra de carinho e sem tempo algum, só cobranças e cobranças... Mandou lavar o meu uniforme? Viu minha chuteira? Cadê meu tênis? Eu?... Eu que me lixasse nesse abandono, nessa sala que mais parece um mausoléu ... Antes, eu juro, antes eu tivesse deixado você com a espevitada da Mariana, melhor seria... À noite, muitas noites, quando eu mais te queria, me via ali, sozinha. Eu no meu quarto, o Júnior no dele. Sozinhos, os dois. Sem homem, sem pai, sem palavra de amigo. Sempre sozinha, eu. E você? Você lá no bem-bom, comemorando vitórias... E você? Você ali, na cama, dormindo, roncando de cansaço...Pior, um homem sem vida pra mim! Sem os desafios que eu queria! E eu, a boba, a boboca, a vida inteira na platéia, impotente, me remoendo, assistindo a essa sua epopéia olímpica maldita. Maldito, você!

Naquela tarde, enquanto a Mãe espezinhava o seu homem, o Pai extravasava sua raiva, fazendo desabar sob nossos pés ali na sala, todos os seus troféus esportivos, as suas medalhas, as fotografias emolduradas, os seus diplomas e os certificados... Eu, sem lhe dar a trégua exigida, acentuando o ritmo frenético do meu potente instrumento, fulminava-o com minhas setas certeiras e venenosas. Palavras cruéis as de um filho para um pai; dardos pontiagudos que o feriam sem dó, como se partissem de um atirador de facas que mirasse todos os seus punhais no coração da vítima... Eu repetia, repetia até que me faltasse o fôlego, como numa competição em busca de recordes: “- Medalhas, troféus, diplomas...grande merda, tudo isso! Enquanto você vivia nessas malditas competições esportivas, eu ficava aqui, sozinho, sem pai, sem amigo, sem ninguém.... Às favas, esse tal de Moses! E você ganhou o quê, me diga? Nada! Fez, fez e morreu na praia!

Em meio à guerra que lhe fazíamos, aquilo que durante anos fora para ele os “louros da vitória”, agora, acomodavam-se de qualquer jeito em duas caixas grandes de papelão. O Pai sem dizer uma palavra, como um autômato, pouco-a-pouco livrava as nossas paredes do apartamento, as prateleiras e as duas estantes da sala, de tudo aquilo que o mundo esportivo lhe dera; e odiando a Mãe e a mim, descia, furiosamente, as escadarias do prédio pra depositar todas as suas conquistas no suporte da lixeira, junto à calçada da rua. Foram raras oportunidades em que vimos o Pai numa competição; quem o conhecia, no entanto, quem conhecia aquele esportista polivalente, de excelente compleição física, um atleta determinado e talentoso, nascido no mesmo dia, mês e ano da lenda-viva do atletismo mundial, Edwin Moses, garantia que dele, o Pai absorvera ingredientes imprescindíveis: a velocidade, a força muscular e a capacidade de treinar, treinar e treinar... Hoje, ali, junto ao parapeito da janela do sétimo andar, o olhar do Pai nos evitava, mas mantinha sob vigília todos os seus troféus amontoados lá embaixo, dentro das caixas de papelão sobre o suporte da lixeira. Olhar não é bem o termo, eu jurava que naquele momento, o Pai tinha visão de águia, capaz de contemplar, minuciosamente, cada um daqueles objetos. Abrisse a boca pra dizer, o Pai repetiria exaustivo que a medalha de “natação” fora conquistada na raia olímpica do Tênis Clube, quando fora batido apenas pelo tricampeão Ruizinho Leme! Abrisse a boca pra contar, o Pai diria que a medalha, cromada em ouro 18, estava lá embaixo, jogada, descartada na lixeira da rua. Depois, depois diria que estava lá também a medalha do “futebol”, quando emplacara três a zero nos Pequeninos do Jóquei, e com isso, fora o campeão e artilheiro daquele ano! A Mãe lia pela milésima vez o conto “A Cartomante”, sempre embevecida pela história de uma tal “Nancy”; e talvez, como a personagem, a Mãe também sofresse, remoendo-se em lamentos pelo que dissera ao Pai. Por isso, dissimulando o tanto exato, a Mãe seguia a tudo com os olhos pregados no livro, mas era visível, era nítido pelos seus gestos, que estava a poucos instantes de se redimir. O Pai, o Pai por certo também enxergou entre as suas “honrarias”, lá embaixo, o troféu Hélio Rubens, homenagem a uma referência do basquete brasileiro, que ele conquistara na partida final contra o dream team do Colorado A.C.; O Pai não se cansava de nos dizer que virara o jogo com duas cestas-de-três, o que lhe valera o reconhecimento de toda a arquibancada, inclusive dos adversários!...O troféu, agora, também estava lá na lixeira, tal qual o do “handebol”, que o Pai ganhara numa partida memorável, 3 segundo ele, contra o Paineirão F.C., quando enfiou um, dois, três... quinze espetaculares arremessos indefensáveis contra o goleiro Gilmar Moreno!... Vez ou outra, os olhos aquilinos do Pai voltavam-se para o interior da sala rastreando o vazio das paredes, a limpidez das estantes e a profundidade das prateleiras... Por vezes, o Pai mirava seus olhos reticentes endereçados a mim e à Mãe, mas em poucos instantes deixava-nos ao abandono, negligenciava-nos, demonstrando que na lixeira da rua continuava a razão de ser de toda a sua vida. Apoiado no beiral de uma das janelas da sala, e agora dedilhando com ligeira suavidade as cordas do violão, eu pude ver quando os ruídos da rua estamparam-no um sorriso no rosto. O menino, visto do alto, não tinha mais de 12 anos. Primeiro, o garoto olhou para os lados, depois subiu os olhos como quem tivesse algo a conferir naquele edifício a sua frente. O Pai, mais visível ali na janela principal, esquivou-se para a cortina, temeroso de algum confronto; pelo jeito o Pai queria apenas que alguém ficasse com tudo aquilo, de maneira a gostar, a amar, acarinhar... E lá estava o menino, ora puxando das caixas um troféu, ora uma fotografia, ora uma medalha... Chegou até mesmo a apanhar o porta retrato do Edwin Moses. Abandonou-o rápido, por certo desconhecia o famoso atleta mundial dos 400 metros com barreiras... a lenda-viva! O menino, agora, retirava da caixa um quadro emoldurado. O Pai, com a voz embargada, com os olhos marejados ali na sala, e sem se dar conta da minha irritante melodia, como se ignorasse a nossa presença ou nunca a tivesse percebido, o Pai soletrava baixinho, de cor e emocionado, como se acompanhasse a leitura em voz alta nos lábios do garoto: “Conferimos o certificado de Honra ao Mérito ao atleta Jairo Santos Silva por sua participação nos 50 metros com barreiras...” O olhar do garoto voltou-se, outra vez, para o alto do edifício e, prudente, o Pai recolheu-se para fora do beiral. Mas, fora mesmo a medalha, aquela cromada em ouro 18, a de natação, que roubara o interesse do menino. Num relance, como quem subisse a um pódio imaginário, vestiu-a sobre o pescoço, e alegre como nunca, lá foi ele feliz, rua afora, com a medalha no peito, simulando braçadas numa raia olímpica invisível... O sorriso do Pai, naquele instante, inundava o ar. Respirando emoção e entretido até a medula, o Pai só voltou a si diante da minha nova ofensiva, com as batidas fortes, estridentes e cortantes do violão, como a lhe dizer com o dedo em riste: “Vai ficar aí parado feito estátua? O estrago já está feito, agora é consertar ou quebrar de vez! Esses prêmios estão mesmo no lugar merecido: sabe onde? No Lixo! Lá embaixo, na lixeira da rua! Quem sabe, agora, daqui pra frente, você arruma um tempo pro seu filho e pra sua mulher, hein?” Depois disso, um longo e interminável silêncio se interpôs entre nós ali na sala. Em gestos lentos, lentíssimos até, o que o Pai fez foi matar dois coelhos de uma só vez: o seu filho e a sua mulher, agora, teriam de amargar uma culpa pela vida inteira; carregar a ferida exposta, eternamente, como uma chaga viva! Um revide de pura vingança contra a nossa indiferença pelas suas competições esportivas. E ali, bem ali diante do nosso nariz, o Pai, como quem fosse subir ao pódio sob flashes, aplausos e chuva de pétalas... O Pai, do alto de seus 1,80 metros, e com a jovialidade de cinco décadas, tentou ainda, em prantos, impedir que os homens da Limpeza Pública brutalizassem suas conquistas, mas a voz soou-lhe débil, frágil, como um sussurro desesperado... E naquele instante, ainda que a Mãe tentasse um grito impeditivo: “ - Não, Jairo, pelo amor de Deus, isso não!”, e eu, emudecendo o instrumento sob minhas mãos trêmulas, eu lhe endereçasse uma palavra profunda clamando por tradução: “Calma, Pai!...Calma, Pai!..Calma!”; o Pai, como quem se preparasse para uma enterrada definitiva no garrafão, ou para chutar um pênalti sem qualquer chance de defesa para o goleiro, ou ainda, cortar em diagonal a bola suplicante da rede, ou quem sabe, num esforço sobre-humano, deixar à deriva todos os seus competidores na pista com barreiras, à la Moses. O Pai, silenciosamente, sem dizer uma palavra sequer, sem tréguas ao cronômetro da vida, num ímpeto de agilidade e impulso, lançou-se janela abaixo em busca de si mesmo; precisamente, trinta e dois metros e vinte e três centímetros, como atestaria a Perícia Técnica no laudo do exame necroscópico.


NOTA: As referências ao autor Machado de Assis são do conto “A Cartomante”.