terça-feira, 4 de agosto de 2015

SALTO SEM BARREIRAS

Conto de Celso Lopes, Escritor


Em casa quando a situação ficava tensa era fácil de saber: a Mãe se recolhia num canto do sofá da sala folheando sem parar as mesmas páginas de um livro do Machado de Assis; o Pai, o Pai rondava de um lado pra outro, pensativo e silencioso; e eu, de violão em punho, acelerava as batidas, tremulando acordes desconexos e desafinados... enfim, criando um som alto e desigual, cujo objetivo era apenas atiçar o ambiente daquele espaço chamado “lar” com as minhas provocações. O violão parecia dizer em alto e bom som: “- Ei, Dona Nancy, você não engana a ninguém... largue esse maldito livro e grite as suas mágoas para o seu marido, vamos!” A Mãe tremia sob a minha música desconcertante; era visível que resistia, o quanto possível, em tocar fogo no lar-doce-lar quando se tratava do Pai. Pode-se dizer que o romance da “Dona Nancy” com o Pai, nascido de uma acirrada disputa com uma tal de “Mariana”, esbarrava nas artimanhas criadas pelo mestre da literatura. Se substituíssemos apenas os nomes, teríamos a história de ambos recontada pela psicologia endiabrada do Bruxo do Cosme Velho: “O 'Pai' quis sinceramente fugir, mas já não pode: 'Dona Nancy', como uma serpente, foi se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou- lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, susto, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima das ervas e pedregulhos.

Para a Mãe, “Dona Nancy”, aquelas ausências acumuladas do Pai, que antes lhe soavam como um sussurro carinhoso, agora explodiam. Explodiam e apunhalavam. E, por certo, doíam-lhe como nunca! Em casa quando a situação ficava, assim, tensa, eu, sem saber o porquê, gritava aqueles acordes no violão e disparava as minhas farpas todas contra o Pai. Fel puro e desprezo, as minhas palavras. Nascia em mim uma crueldade mesquinha que me levava a provocar o Pai, a ironizar, a trucidá-lo até, se preciso. Tantas vezes, tanto fiz. E tanto fiz, tanto fiz, que naquele dia a Mãe também soltou todos os seus demônios contra ele. “Dona Nancy” aliou-se a mim disparando estilhaços por todos os lados, os seus golpes mais profundos. Palavras duras e cruéis as de uma esposa para o seu homem. A Mãe esbravejava, parecendo tirar das páginas do livro aberto em suas mãos, todos os seus ais, as suas mágoas e as suas dores: “- O Júnior tem razão... Pra você, somente os amigos, os amigos e as competições!” A Mãe falava em altos brados e eu sorria por dentro. E vitorioso, como se desafinasse a minha voz acompanhando o violão, eu insistia sem trégua que ele queria mesmo era fugir da gente; o que o Pai pretendia mesmo era livrar-se da sua mulher e do seu filho! Instigada por essa infâmia carregada de inveja e rancor criados por mim, a Mãe pegou o jeito, soprou forte e avivou as brasas, e depois, depois entornou de vez a água fervente:
...Comigo? ...comigo apenas alguns minutos, sempre sem uma palavra de carinho e sem tempo algum, só cobranças e cobranças... Mandou lavar o meu uniforme? Viu minha chuteira? Cadê meu tênis? Eu?... Eu que me lixasse nesse abandono, nessa sala que mais parece um mausoléu ... Antes, eu juro, antes eu tivesse deixado você com a espevitada da Mariana, melhor seria... À noite, muitas noites, quando eu mais te queria, me via ali, sozinha. Eu no meu quarto, o Júnior no dele. Sozinhos, os dois. Sem homem, sem pai, sem palavra de amigo. Sempre sozinha, eu. E você? Você lá no bem-bom, comemorando vitórias... E você? Você ali, na cama, dormindo, roncando de cansaço...Pior, um homem sem vida pra mim! Sem os desafios que eu queria! E eu, a boba, a boboca, a vida inteira na platéia, impotente, me remoendo, assistindo a essa sua epopéia olímpica maldita. Maldito, você!

Naquela tarde, enquanto a Mãe espezinhava o seu homem, o Pai extravasava sua raiva, fazendo desabar sob nossos pés ali na sala, todos os seus troféus esportivos, as suas medalhas, as fotografias emolduradas, os seus diplomas e os certificados... Eu, sem lhe dar a trégua exigida, acentuando o ritmo frenético do meu potente instrumento, fulminava-o com minhas setas certeiras e venenosas. Palavras cruéis as de um filho para um pai; dardos pontiagudos que o feriam sem dó, como se partissem de um atirador de facas que mirasse todos os seus punhais no coração da vítima... Eu repetia, repetia até que me faltasse o fôlego, como numa competição em busca de recordes: “- Medalhas, troféus, diplomas...grande merda, tudo isso! Enquanto você vivia nessas malditas competições esportivas, eu ficava aqui, sozinho, sem pai, sem amigo, sem ninguém.... Às favas, esse tal de Moses! E você ganhou o quê, me diga? Nada! Fez, fez e morreu na praia!

Em meio à guerra que lhe fazíamos, aquilo que durante anos fora para ele os “louros da vitória”, agora, acomodavam-se de qualquer jeito em duas caixas grandes de papelão. O Pai sem dizer uma palavra, como um autômato, pouco-a-pouco livrava as nossas paredes do apartamento, as prateleiras e as duas estantes da sala, de tudo aquilo que o mundo esportivo lhe dera; e odiando a Mãe e a mim, descia, furiosamente, as escadarias do prédio pra depositar todas as suas conquistas no suporte da lixeira, junto à calçada da rua. Foram raras oportunidades em que vimos o Pai numa competição; quem o conhecia, no entanto, quem conhecia aquele esportista polivalente, de excelente compleição física, um atleta determinado e talentoso, nascido no mesmo dia, mês e ano da lenda-viva do atletismo mundial, Edwin Moses, garantia que dele, o Pai absorvera ingredientes imprescindíveis: a velocidade, a força muscular e a capacidade de treinar, treinar e treinar... Hoje, ali, junto ao parapeito da janela do sétimo andar, o olhar do Pai nos evitava, mas mantinha sob vigília todos os seus troféus amontoados lá embaixo, dentro das caixas de papelão sobre o suporte da lixeira. Olhar não é bem o termo, eu jurava que naquele momento, o Pai tinha visão de águia, capaz de contemplar, minuciosamente, cada um daqueles objetos. Abrisse a boca pra dizer, o Pai repetiria exaustivo que a medalha de “natação” fora conquistada na raia olímpica do Tênis Clube, quando fora batido apenas pelo tricampeão Ruizinho Leme! Abrisse a boca pra contar, o Pai diria que a medalha, cromada em ouro 18, estava lá embaixo, jogada, descartada na lixeira da rua. Depois, depois diria que estava lá também a medalha do “futebol”, quando emplacara três a zero nos Pequeninos do Jóquei, e com isso, fora o campeão e artilheiro daquele ano! A Mãe lia pela milésima vez o conto “A Cartomante”, sempre embevecida pela história de uma tal “Nancy”; e talvez, como a personagem, a Mãe também sofresse, remoendo-se em lamentos pelo que dissera ao Pai. Por isso, dissimulando o tanto exato, a Mãe seguia a tudo com os olhos pregados no livro, mas era visível, era nítido pelos seus gestos, que estava a poucos instantes de se redimir. O Pai, o Pai por certo também enxergou entre as suas “honrarias”, lá embaixo, o troféu Hélio Rubens, homenagem a uma referência do basquete brasileiro, que ele conquistara na partida final contra o dream team do Colorado A.C.; O Pai não se cansava de nos dizer que virara o jogo com duas cestas-de-três, o que lhe valera o reconhecimento de toda a arquibancada, inclusive dos adversários!...O troféu, agora, também estava lá na lixeira, tal qual o do “handebol”, que o Pai ganhara numa partida memorável, 3 segundo ele, contra o Paineirão F.C., quando enfiou um, dois, três... quinze espetaculares arremessos indefensáveis contra o goleiro Gilmar Moreno!... Vez ou outra, os olhos aquilinos do Pai voltavam-se para o interior da sala rastreando o vazio das paredes, a limpidez das estantes e a profundidade das prateleiras... Por vezes, o Pai mirava seus olhos reticentes endereçados a mim e à Mãe, mas em poucos instantes deixava-nos ao abandono, negligenciava-nos, demonstrando que na lixeira da rua continuava a razão de ser de toda a sua vida. Apoiado no beiral de uma das janelas da sala, e agora dedilhando com ligeira suavidade as cordas do violão, eu pude ver quando os ruídos da rua estamparam-no um sorriso no rosto. O menino, visto do alto, não tinha mais de 12 anos. Primeiro, o garoto olhou para os lados, depois subiu os olhos como quem tivesse algo a conferir naquele edifício a sua frente. O Pai, mais visível ali na janela principal, esquivou-se para a cortina, temeroso de algum confronto; pelo jeito o Pai queria apenas que alguém ficasse com tudo aquilo, de maneira a gostar, a amar, acarinhar... E lá estava o menino, ora puxando das caixas um troféu, ora uma fotografia, ora uma medalha... Chegou até mesmo a apanhar o porta retrato do Edwin Moses. Abandonou-o rápido, por certo desconhecia o famoso atleta mundial dos 400 metros com barreiras... a lenda-viva! O menino, agora, retirava da caixa um quadro emoldurado. O Pai, com a voz embargada, com os olhos marejados ali na sala, e sem se dar conta da minha irritante melodia, como se ignorasse a nossa presença ou nunca a tivesse percebido, o Pai soletrava baixinho, de cor e emocionado, como se acompanhasse a leitura em voz alta nos lábios do garoto: “Conferimos o certificado de Honra ao Mérito ao atleta Jairo Santos Silva por sua participação nos 50 metros com barreiras...” O olhar do garoto voltou-se, outra vez, para o alto do edifício e, prudente, o Pai recolheu-se para fora do beiral. Mas, fora mesmo a medalha, aquela cromada em ouro 18, a de natação, que roubara o interesse do menino. Num relance, como quem subisse a um pódio imaginário, vestiu-a sobre o pescoço, e alegre como nunca, lá foi ele feliz, rua afora, com a medalha no peito, simulando braçadas numa raia olímpica invisível... O sorriso do Pai, naquele instante, inundava o ar. Respirando emoção e entretido até a medula, o Pai só voltou a si diante da minha nova ofensiva, com as batidas fortes, estridentes e cortantes do violão, como a lhe dizer com o dedo em riste: “Vai ficar aí parado feito estátua? O estrago já está feito, agora é consertar ou quebrar de vez! Esses prêmios estão mesmo no lugar merecido: sabe onde? No Lixo! Lá embaixo, na lixeira da rua! Quem sabe, agora, daqui pra frente, você arruma um tempo pro seu filho e pra sua mulher, hein?” Depois disso, um longo e interminável silêncio se interpôs entre nós ali na sala. Em gestos lentos, lentíssimos até, o que o Pai fez foi matar dois coelhos de uma só vez: o seu filho e a sua mulher, agora, teriam de amargar uma culpa pela vida inteira; carregar a ferida exposta, eternamente, como uma chaga viva! Um revide de pura vingança contra a nossa indiferença pelas suas competições esportivas. E ali, bem ali diante do nosso nariz, o Pai, como quem fosse subir ao pódio sob flashes, aplausos e chuva de pétalas... O Pai, do alto de seus 1,80 metros, e com a jovialidade de cinco décadas, tentou ainda, em prantos, impedir que os homens da Limpeza Pública brutalizassem suas conquistas, mas a voz soou-lhe débil, frágil, como um sussurro desesperado... E naquele instante, ainda que a Mãe tentasse um grito impeditivo: “ - Não, Jairo, pelo amor de Deus, isso não!”, e eu, emudecendo o instrumento sob minhas mãos trêmulas, eu lhe endereçasse uma palavra profunda clamando por tradução: “Calma, Pai!...Calma, Pai!..Calma!”; o Pai, como quem se preparasse para uma enterrada definitiva no garrafão, ou para chutar um pênalti sem qualquer chance de defesa para o goleiro, ou ainda, cortar em diagonal a bola suplicante da rede, ou quem sabe, num esforço sobre-humano, deixar à deriva todos os seus competidores na pista com barreiras, à la Moses. O Pai, silenciosamente, sem dizer uma palavra sequer, sem tréguas ao cronômetro da vida, num ímpeto de agilidade e impulso, lançou-se janela abaixo em busca de si mesmo; precisamente, trinta e dois metros e vinte e três centímetros, como atestaria a Perícia Técnica no laudo do exame necroscópico.


NOTA: As referências ao autor Machado de Assis são do conto “A Cartomante”.

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