quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O VÔO-CEGO  E  O  CÉU-DE-BRIGADEIRO”



É provável que a expressão - vôo-cego -  estivesse presente na cabeça de grande parte dos integrantes da Comitiva Real,  deslocada às pressas de Portugal nos idos de 1807, para aportar, separadamente, em terras brasileiras. A história registra que a esquadra lusitana navegou à deriva, tendo muitas vezes pela frente,  além das águas turvas e revoltas, as calmarias com sol escaldante, os perigosos rochedos e, naturalmente,  o vazio sem fim e a falta de rumo!... Já a segunda expressão, aplica-se ao brasileiro Santos Dumont, que surge, aproximadamente, 35 anos depois;  e que, ao contrário de D. João VI que aqui desembarcava, o futuro “ás dos ares” partia do Brasil por volta de 1890, na esperança de encontrar – e por vezes, até encontrou – um céu de brigadeiro para mostrar ao mundo a sua mais importante invenção. (Obviamente, Santos Dumont também desejava os céus parisienses em dias sem nuvens,  de um azul brilhante e límpido, literalmente).

D.João VI teria sido o nosso ‘Santos Dumont’, que ao pousar numa colônia longínqua e desconhecida (e com tudo por fazer), dera fé às palavras do escritor britânico Christopher Lee, para quem  “as pessoas fazem a história, mas elas nem sempre se dão conta do que estão fazendo”.  Sendo assim,  a vinda da  Corte em  1808, teria permitido a ‘invenção do Brasil’.  E o ‘14-bis’ de D.João VI   eclodiria multiplicado em navios singrando as águas marinhas,  abrindo caminhos para o nosso intercâmbio com o novo mundo... Santos Dumont foi o nosso ‘Príncipe Regente’, benquisto pelo povo, elogiado por todos, e  que aportara nos rincões parisienses  à cata  de conhecimentos maiores, capaz de ajudá-lo a erguer  os seus dirigíveis e a manter sobre controle o seu  mais-pesado-que-o-ar...

Separados pelo tempo, cada qual distante do seu torrão natal  e  apreensivos a seu modo, em comum, lançaram-se, ambos, ao encontro do destino num  misto de realidade e aventura, fracassos e conquistas, créditos e descrença...A Comitiva real, há duzentos anos, lançava-se ao mar, às pressas,  tendo nos calcanhares  o genioso, intrépido e perigoso inimigo, Napoleão Bonaparte. Com o apoio da escolta inglesa, D.João VI, (ainda que em fuga), decidira colocar em prática um antigo plano da coroa portuguesa, para ocupar de vez aquelas terras distantes, ou seja, o Brasil; na verdade, um arremedo de país  sem  infraestrutura de transportes, construções, saneamento, saúde , educação, comunicações, comércio, indústria  e com um sem número de outras, muitas outras dificuldades.

O inquieto menino sonhador, Alberto Santos Dumont, nascido no interior do país, mas de ascendência francesa, alguns anos à frente do “Rei do Brasil”,   com sua insistência infinita, com tamanha generosidade, e às suas custas,   mantinha-se de pé, literalmente, diante das dezenas de  tombos e imprevistos, das quedas e dos  desastres que sempre o rondaram em cada desafio...  Enquanto D. João VI chegava à colônia pelas águas, tendo o seu  olhar voltado às matas, aos mares, à geografia, às artes e à música, aos aglomerados urbanos, e por que não dizer, às guloseimas que tanto lhe abriam o apetite (segundo os historiadores, em especial, a coxinha de frango,  que o Monarca sempre trazia nos bolsos do casaco)...  Santos Dumont, por sua vez  inquietava-se olhando os ares, os céus, a direção dos ventos,  as  pradarias, os galpões de construção, os motores,  as estruturas técnicas  e os novos  cânones da engenharia!...

D. João VI, somado aos quase quinze mil lusitanos que aqui chegaram,  encontraria um “país” por fazer, um reinado por construir e toda a sorte de dificuldades com a distante coroa portuguesa que abandonara...  Santos Dumont, ainda que próximo aos maiores centros tecnológicos do mundo, e com indiscutível perseverança, por vezes, parecia bater em ferro-frio para fazer avançar  os seus projetos. No entanto,  em tempo algum, recuaria:  “ ...O inventor não faz saltos: progride manso, evolui ” , diria ao apresentar para o mundo o seu mais-pesado-que-o-ar,  o projeto híbrido denominado 14-bis!... 

Se, originariamente, D.João VI envidara sua ‘fuga’ como um vôo-cego em direção à colônia, em verdade, uma vez aqui aportado, suas iniciativas elevaram o Brasil à categoria de um país emergente, permitindo aos brasileiros de então, a cunhagem gradativa da sua própria auto-estima. Não nos faltam razões para inferir que a abertura dos portos, a revogação de leis restritivas ao comércio e à industria, a criação de canais de decisão e soberania, a abertura de estradas, o  incentivo à imprensa,  os investimentos nos cenários de educação e saúde,  o impulso aos ambientes artístico-cultural, todos eles, juntos,  criaram  injeções de otimismo e euforia na pacata “Vila Brasil”  daqueles tempos.

O panorama do país, de norte a sul, nunca mais fora o mesmo. Por isso, realmente, há quem afirme que “ quando a família real portuguesa  aportou em Salvador, no dia 22 de janeiro de 1808, o Brasil começou a ser inventado”.  E de forma a fortalecer esse conceito, o escritor Laurentino Gomes acentua que “ num intervalo de apenas 13 anos, entre a chegada da corte e a volta do rei para Lisboa, uma colônia atrasada e ignorante ficou pronta para se tornar uma nação soberana”. Dessa forma, a nacionalidade do país estava criada. A vinda de D. João VI nos dera asas. Promovera o desenvolvimento do país. Unificara as regiões distantes. Fizera surgir aqui, uma identidade nacional.

O passo seguinte, portanto, seria inevitável: o Brasil aspirava por liberdade, ansiava  pela independência; o país, agora, seguiria para alcançar o vôo-livre,  e  para tal, precisaria, sozinho, fazer-se um bom piloto, tornar-se um bom comandante, aprender a dirigibilidade, manejar os instrumentos de bordo, enfim, rasgar os céus, conquistar os ares,  tal qual  Santos Dumont fizera quase cem anos depois, culminando com aquele vôo histórico do seu 14-bis em 12 de novembro de 1906, em Paris,  no Campo  de Bagatelle!... Quase cem anos antes, em 1808, D. João VI, ainda que carente da meticulosidade, da criatividade e do  árduo empenho do inventor,  legara-nos, aqui mesmo,  ao rés do chão,  uma diversificada benfeitoria, um arsenal estratégico e fundamental, capaz de promover  o surgimento da nossa brasilidade e da própria nação brasileira.



(*) Menção Honrosa no Concurso de Crônicas da Academia de Letras de Campos Gerais/  Ponta Grossa-PR. 2008

                                        

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