quinta-feira, 27 de agosto de 2015

“A CANETA REAL”    -                                                



  

Há canetas simples, que se prestam unicamente para escrever, e outras, verdadeiras jóias, verdadeiras peças de arte, muito mais destinadas à ostentação do que ao ato da escrita.   Segundo se sabe, as primeiras canetas  que substituíram a pena de ave, eram  pedaços de madeira com uma ponta de metal, mas isso só viria a acontecer no século 18, quando começaram surgir as variações desse objeto.  Não nos faltam razões para inferir que a “caneta-tinteiro real” de D.João VI, já no século 19, a seu tempo, era moderna, atualizada e destinada às ações e aos fatos, afinal, parece-nos ter sido utilizada sem titubeios, servindo à abertura dos portos,  à revogação de leis restritivas ao comércio e à indústria, à criação de canais de decisão e soberania na colônia, à abertura de estradas, ao  incentivo à imprensa,  aos investimentos nos cenários de educação e saúde, aos impulsos importantes  nos ambientes artístico-cultural, entre outras medidas que,  juntas,  injetaram  doses de   muito otimismo e euforia na pacata “vila Brasil”  daquela época. 
Tampouco nos falta razão para admitir que a comitiva real, a despeito da fuga, apressada, diante da invasão Napoleônica, colocara em ação um antigo plano B, reservado, estratégica  e preventivamente,   para  se evitar um provável novo ataque ao território português.   Afinal, Portugal passara 60 anos sob o domínio da Espanha, e nada garantia que estivesse imune e protegido dessas “intempéries”.   Portanto, nesse caso, o “Brasil” poderia ser uma saída à altura.  Para se convencer disso, na opinião da Professora de história Francisca Nogueira Azevedo (UFRJ), basta que se atenha às palavras do diplomata português Luis da Cunha, ainda no começo do século 18, dirigidas à Sua Majestade D.João V, numa ‘carta quase profética’:  “ Considerei que S.M. se achava na idade de ver potentíssimo e bem povoado  aquele imenso continente do Brasil e nele tomasse o titulo de Imperador do Ocidente (...) Na minha opinião o lugar próprio de sua residência seria a cidade do Rio de Janeiro”. (grifo nosso). Segundo a historiadora, a idéia estendeu-se ao século 19,  e  encontrou em D.Rodrigo de Souza Coutinho, o chefe do Tesouro Real, um defensor ferrenho, como se pode avaliar nessas palavras “ Portugal não é a melhor parte da monarquia, nem a mais essencial. Depois de devastado por uma longa e sanguinolenta guerra, ainda resta ao seu Soberano, e aos seus povos, irem criar um poderoso império no Brasil”
Não nos faltam razões para inferir que a caneta- tinteiro real utilizada em 1808, mantinha-se embebida  dessa história, e por isso mesmo fora utilizada com uma certa maestria  por  D.João VI e sua equipe, quando, rapidamente, em solo brasileiro, não pouparam  tintas para traçar um novo colorido social, econômico e cultural nas terras brasileiras.  E por certo, os pigmentos dessa tinta    remontam  a quatro séculos, pois em  6 de fevereiro de 1608,  nascia em Portugal, o Padre Antônio Vieira que, ainda criança, emigraria para o Brasil onde se prepararia para uma atuação expressiva sob os auspícios da Companhia dos Jesuítas.  Os ecos da sua brilhante participação estão presentes  em, praticamente, todos os campos de exigência lúcida, seja como diplomata, profeta, pregador, missionário, literato, entre outros, e ainda permanecem sob atenção e estudos.  É de se supor, portanto,  que essa “voz”  capaz de reverberar nas terras do Brasil e da Europa, ora  nas  singelas aldeias indígenas, ora nos mais renomados  púlpitos de pregação religiosa, ou ainda, nos sofisticados recintos palacianos, tenha avançado o suficiente para garantir  brilho à tintura real, dois séculos à frente,  quando  a Corte portuguesa com aproximadamente 15 mil pessoas,   aqui aportou às pressas, fugindo  da iminente invasão francesa de Napoleão Bonaparte.

Do Padre Vieira, basta dizer,  para surpresa dos leitores  “que seus escritos de quase quatro séculos podem ser mais reveladores da atualidade do que as notícias do jornal do dia”,  como assinala o professor Francisco Maciel Silveira (USP), na coluna de Francisco Quinteiro Pires, da Agência Estado.   Duzentos anos depois de Vieira,   D.João VI e sua equipe,  ainda que sem a lucidez,  a visão holística do seu antecessor,  sem a  sua formação Jesuítica,  a erudição política e econômica, e até mesmo,  carentes  da habilidade do artista-escultor,  como pregava Vieira sobre o papel do Missionário,   ao que parece, o séqüito real deteve-se apenas no mundinho das possibilidades reais,  das necessidades primárias e prementes da colônia (o que não foi pouco, obviamente.)...  Mas, ao agir assim com a sua caneta-real, Sua Majestade  pareceu cumprir de uma só tacada dois aforismos que lhe caem como uma luva. Um deles, do escritor inglês, Christopher Lee, ao nos dizer que “ As pessoas fazem a história, mas elas nem sempre se dão conta do que estão fazendo”. O outro, do próprio Padre Antônio Vieira que, no campo das probabilidades, parece ter saído dos antigos tinteiros,  que o Pregador, por certo,  sempre deixava disponível para os seus momentos repletos de engenhosidade de raciocínio e clareza de estilo. Com sua “pena de ave”,  Vieira nos legaria um recado que, não custa reiterar, traz consigo um certificado de validade universal e atemporal:  “ Não tem de olhar para o céu, mas para as cegueiras do mundo”. O seu cumprimento, entretanto,  faz exigência de verdadeiras canetas reais, aquelas simples, práticas, sem rococós, destinadas unicamente a produzir  o  encantamento  e as idéias concretas,  passíveis de  serem  desdobradas ao infinito,  em todas as suas possibilidades,  para  se  atingir o  “bem-comum” dos súditos de todas as  gerações.


* Crônica classificada em 2o. Lugar no concurso da Academia de Letras dos Campos Gerais – Ponta Grossa/PR – Concurso “ 200 anos da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil ” (2008 )


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