O VÔO-CEGO E
O CÉU-DE-BRIGADEIRO”
É provável que a
expressão - vôo-cego - estivesse
presente na cabeça de grande parte dos integrantes da Comitiva Real, deslocada às pressas de Portugal nos idos de
1807, para aportar, separadamente, em terras brasileiras. A história registra
que a esquadra lusitana navegou à deriva, tendo muitas vezes pela frente, além das águas turvas e revoltas, as
calmarias com sol escaldante, os perigosos rochedos e, naturalmente, o vazio sem fim e a falta de rumo!... Já a
segunda expressão, aplica-se ao brasileiro Santos Dumont, que surge,
aproximadamente, 35 anos depois; e que,
ao contrário de D. João VI que aqui desembarcava, o futuro “ás dos ares” partia
do Brasil por volta de 1890, na esperança de encontrar – e por vezes, até
encontrou – um céu de brigadeiro para mostrar ao mundo a sua mais
importante invenção. (Obviamente, Santos Dumont também desejava os céus
parisienses em dias sem nuvens, de um
azul brilhante e límpido, literalmente).
D.João VI teria
sido o nosso ‘Santos Dumont’, que ao pousar numa colônia longínqua e
desconhecida (e com tudo por fazer), dera fé às palavras do escritor britânico
Christopher Lee, para quem “as
pessoas fazem a história, mas elas nem sempre se dão conta do que estão
fazendo”. Sendo assim, a vinda da
Corte em 1808, teria permitido a
‘invenção do Brasil’. E o ‘14-bis’ de
D.João VI eclodiria multiplicado em
navios singrando as águas marinhas,
abrindo caminhos para o nosso intercâmbio com o novo mundo... Santos
Dumont foi o nosso ‘Príncipe Regente’, benquisto pelo povo, elogiado por todos,
e que aportara nos rincões
parisienses à cata de conhecimentos maiores, capaz de ajudá-lo a
erguer os seus dirigíveis e a manter
sobre controle o seu mais-pesado-que-o-ar...
Separados pelo tempo, cada qual distante do seu torrão
natal e
apreensivos a seu modo, em comum, lançaram-se, ambos, ao encontro do
destino num misto de realidade e
aventura, fracassos e conquistas, créditos e descrença...A Comitiva real,
há duzentos anos, lançava-se ao mar, às pressas, tendo nos calcanhares o genioso, intrépido e perigoso inimigo,
Napoleão Bonaparte. Com o apoio da escolta inglesa, D.João VI, (ainda que em
fuga), decidira colocar em prática um antigo plano da coroa portuguesa, para
ocupar de vez aquelas terras distantes, ou seja, o Brasil; na verdade, um
arremedo de país sem infraestrutura de transportes, construções,
saneamento, saúde , educação, comunicações, comércio, indústria e com um sem número de outras, muitas outras
dificuldades.
O inquieto
menino sonhador, Alberto Santos Dumont, nascido no interior do país, mas de
ascendência francesa, alguns anos à frente do “Rei do Brasil”, com sua insistência infinita, com tamanha
generosidade, e às suas custas,
mantinha-se de pé, literalmente, diante das dezenas de tombos e imprevistos, das quedas e dos desastres que sempre o rondaram em cada
desafio... Enquanto D. João VI chegava à
colônia pelas águas, tendo o seu olhar
voltado às matas, aos mares, à geografia, às artes e à música, aos aglomerados
urbanos, e por que não dizer, às guloseimas que tanto lhe abriam o apetite
(segundo os historiadores, em especial, a coxinha de frango, que o Monarca sempre trazia nos bolsos do
casaco)... Santos Dumont, por sua
vez inquietava-se olhando os ares, os
céus, a direção dos ventos, as pradarias, os galpões de construção, os
motores, as estruturas técnicas e os novos
cânones da engenharia!...
D. João VI,
somado aos quase quinze mil lusitanos que aqui chegaram, encontraria um “país” por fazer, um reinado
por construir e toda a sorte de dificuldades com a distante coroa portuguesa
que abandonara... Santos Dumont, ainda
que próximo aos maiores centros tecnológicos do mundo, e com indiscutível
perseverança, por vezes, parecia bater em ferro-frio para fazer avançar os seus projetos. No entanto, em tempo algum, recuaria: “ ...O inventor não faz saltos: progride
manso, evolui ” , diria ao apresentar para o mundo o seu mais-pesado-que-o-ar, o projeto híbrido denominado 14-bis!...
Se, originariamente,
D.João VI envidara sua ‘fuga’ como um vôo-cego em direção à colônia, em
verdade, uma vez aqui aportado, suas iniciativas elevaram o Brasil à categoria
de um país emergente, permitindo aos brasileiros de então, a cunhagem gradativa
da sua própria auto-estima. Não nos faltam razões para inferir que a abertura
dos portos, a revogação de leis restritivas ao comércio e à industria, a
criação de canais de decisão e soberania, a abertura de estradas, o incentivo à imprensa, os investimentos nos cenários de educação e
saúde, o impulso aos ambientes
artístico-cultural, todos eles, juntos,
criaram injeções de otimismo e
euforia na pacata “Vila Brasil”
daqueles tempos.
O panorama do
país, de norte a sul, nunca mais fora o mesmo. Por isso, realmente, há quem
afirme que “ quando a família real portuguesa aportou em Salvador, no dia 22 de
janeiro de 1808, o Brasil começou a ser inventado”. E de forma a fortalecer esse conceito, o
escritor Laurentino Gomes acentua que “ num intervalo de apenas 13
anos, entre a chegada da corte e a volta do rei para Lisboa, uma colônia
atrasada e ignorante ficou pronta para se tornar uma nação soberana”.
Dessa forma, a nacionalidade do país estava criada. A vinda de D. João VI nos
dera asas. Promovera o desenvolvimento do país. Unificara as regiões distantes.
Fizera surgir aqui, uma identidade nacional.
O passo
seguinte, portanto, seria inevitável: o Brasil aspirava por liberdade,
ansiava pela independência; o país,
agora, seguiria para alcançar o vôo-livre,
e para tal, precisaria, sozinho,
fazer-se um bom piloto, tornar-se um bom comandante, aprender a dirigibilidade,
manejar os instrumentos de bordo, enfim, rasgar os céus, conquistar os
ares, tal qual Santos Dumont fizera quase cem anos depois,
culminando com aquele vôo histórico do seu 14-bis em 12 de novembro de
1906, em Paris, no Campo de Bagatelle!... Quase cem anos antes, em
1808, D. João VI, ainda que carente da meticulosidade, da criatividade e do árduo empenho do inventor, legara-nos, aqui mesmo, ao rés do chão, uma diversificada benfeitoria, um arsenal
estratégico e fundamental, capaz de promover
o surgimento da nossa brasilidade e da própria nação brasileira.
(*) Menção
Honrosa no Concurso de Crônicas da Academia de Letras de Campos Gerais/ Ponta Grossa-PR. 2008