quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O VÔO-CEGO  E  O  CÉU-DE-BRIGADEIRO”



É provável que a expressão - vôo-cego -  estivesse presente na cabeça de grande parte dos integrantes da Comitiva Real,  deslocada às pressas de Portugal nos idos de 1807, para aportar, separadamente, em terras brasileiras. A história registra que a esquadra lusitana navegou à deriva, tendo muitas vezes pela frente,  além das águas turvas e revoltas, as calmarias com sol escaldante, os perigosos rochedos e, naturalmente,  o vazio sem fim e a falta de rumo!... Já a segunda expressão, aplica-se ao brasileiro Santos Dumont, que surge, aproximadamente, 35 anos depois;  e que, ao contrário de D. João VI que aqui desembarcava, o futuro “ás dos ares” partia do Brasil por volta de 1890, na esperança de encontrar – e por vezes, até encontrou – um céu de brigadeiro para mostrar ao mundo a sua mais importante invenção. (Obviamente, Santos Dumont também desejava os céus parisienses em dias sem nuvens,  de um azul brilhante e límpido, literalmente).

D.João VI teria sido o nosso ‘Santos Dumont’, que ao pousar numa colônia longínqua e desconhecida (e com tudo por fazer), dera fé às palavras do escritor britânico Christopher Lee, para quem  “as pessoas fazem a história, mas elas nem sempre se dão conta do que estão fazendo”.  Sendo assim,  a vinda da  Corte em  1808, teria permitido a ‘invenção do Brasil’.  E o ‘14-bis’ de D.João VI   eclodiria multiplicado em navios singrando as águas marinhas,  abrindo caminhos para o nosso intercâmbio com o novo mundo... Santos Dumont foi o nosso ‘Príncipe Regente’, benquisto pelo povo, elogiado por todos, e  que aportara nos rincões parisienses  à cata  de conhecimentos maiores, capaz de ajudá-lo a erguer  os seus dirigíveis e a manter sobre controle o seu  mais-pesado-que-o-ar...

Separados pelo tempo, cada qual distante do seu torrão natal  e  apreensivos a seu modo, em comum, lançaram-se, ambos, ao encontro do destino num  misto de realidade e aventura, fracassos e conquistas, créditos e descrença...A Comitiva real, há duzentos anos, lançava-se ao mar, às pressas,  tendo nos calcanhares  o genioso, intrépido e perigoso inimigo, Napoleão Bonaparte. Com o apoio da escolta inglesa, D.João VI, (ainda que em fuga), decidira colocar em prática um antigo plano da coroa portuguesa, para ocupar de vez aquelas terras distantes, ou seja, o Brasil; na verdade, um arremedo de país  sem  infraestrutura de transportes, construções, saneamento, saúde , educação, comunicações, comércio, indústria  e com um sem número de outras, muitas outras dificuldades.

O inquieto menino sonhador, Alberto Santos Dumont, nascido no interior do país, mas de ascendência francesa, alguns anos à frente do “Rei do Brasil”,   com sua insistência infinita, com tamanha generosidade, e às suas custas,   mantinha-se de pé, literalmente, diante das dezenas de  tombos e imprevistos, das quedas e dos  desastres que sempre o rondaram em cada desafio...  Enquanto D. João VI chegava à colônia pelas águas, tendo o seu  olhar voltado às matas, aos mares, à geografia, às artes e à música, aos aglomerados urbanos, e por que não dizer, às guloseimas que tanto lhe abriam o apetite (segundo os historiadores, em especial, a coxinha de frango,  que o Monarca sempre trazia nos bolsos do casaco)...  Santos Dumont, por sua vez  inquietava-se olhando os ares, os céus, a direção dos ventos,  as  pradarias, os galpões de construção, os motores,  as estruturas técnicas  e os novos  cânones da engenharia!...

D. João VI, somado aos quase quinze mil lusitanos que aqui chegaram,  encontraria um “país” por fazer, um reinado por construir e toda a sorte de dificuldades com a distante coroa portuguesa que abandonara...  Santos Dumont, ainda que próximo aos maiores centros tecnológicos do mundo, e com indiscutível perseverança, por vezes, parecia bater em ferro-frio para fazer avançar  os seus projetos. No entanto,  em tempo algum, recuaria:  “ ...O inventor não faz saltos: progride manso, evolui ” , diria ao apresentar para o mundo o seu mais-pesado-que-o-ar,  o projeto híbrido denominado 14-bis!... 

Se, originariamente, D.João VI envidara sua ‘fuga’ como um vôo-cego em direção à colônia, em verdade, uma vez aqui aportado, suas iniciativas elevaram o Brasil à categoria de um país emergente, permitindo aos brasileiros de então, a cunhagem gradativa da sua própria auto-estima. Não nos faltam razões para inferir que a abertura dos portos, a revogação de leis restritivas ao comércio e à industria, a criação de canais de decisão e soberania, a abertura de estradas, o  incentivo à imprensa,  os investimentos nos cenários de educação e saúde,  o impulso aos ambientes artístico-cultural, todos eles, juntos,  criaram  injeções de otimismo e euforia na pacata “Vila Brasil”  daqueles tempos.

O panorama do país, de norte a sul, nunca mais fora o mesmo. Por isso, realmente, há quem afirme que “ quando a família real portuguesa  aportou em Salvador, no dia 22 de janeiro de 1808, o Brasil começou a ser inventado”.  E de forma a fortalecer esse conceito, o escritor Laurentino Gomes acentua que “ num intervalo de apenas 13 anos, entre a chegada da corte e a volta do rei para Lisboa, uma colônia atrasada e ignorante ficou pronta para se tornar uma nação soberana”. Dessa forma, a nacionalidade do país estava criada. A vinda de D. João VI nos dera asas. Promovera o desenvolvimento do país. Unificara as regiões distantes. Fizera surgir aqui, uma identidade nacional.

O passo seguinte, portanto, seria inevitável: o Brasil aspirava por liberdade, ansiava  pela independência; o país, agora, seguiria para alcançar o vôo-livre,  e  para tal, precisaria, sozinho, fazer-se um bom piloto, tornar-se um bom comandante, aprender a dirigibilidade, manejar os instrumentos de bordo, enfim, rasgar os céus, conquistar os ares,  tal qual  Santos Dumont fizera quase cem anos depois, culminando com aquele vôo histórico do seu 14-bis em 12 de novembro de 1906, em Paris,  no Campo  de Bagatelle!... Quase cem anos antes, em 1808, D. João VI, ainda que carente da meticulosidade, da criatividade e do  árduo empenho do inventor,  legara-nos, aqui mesmo,  ao rés do chão,  uma diversificada benfeitoria, um arsenal estratégico e fundamental, capaz de promover  o surgimento da nossa brasilidade e da própria nação brasileira.



(*) Menção Honrosa no Concurso de Crônicas da Academia de Letras de Campos Gerais/  Ponta Grossa-PR. 2008

                                        

“A CANETA REAL”    -                                                



  

Há canetas simples, que se prestam unicamente para escrever, e outras, verdadeiras jóias, verdadeiras peças de arte, muito mais destinadas à ostentação do que ao ato da escrita.   Segundo se sabe, as primeiras canetas  que substituíram a pena de ave, eram  pedaços de madeira com uma ponta de metal, mas isso só viria a acontecer no século 18, quando começaram surgir as variações desse objeto.  Não nos faltam razões para inferir que a “caneta-tinteiro real” de D.João VI, já no século 19, a seu tempo, era moderna, atualizada e destinada às ações e aos fatos, afinal, parece-nos ter sido utilizada sem titubeios, servindo à abertura dos portos,  à revogação de leis restritivas ao comércio e à indústria, à criação de canais de decisão e soberania na colônia, à abertura de estradas, ao  incentivo à imprensa,  aos investimentos nos cenários de educação e saúde, aos impulsos importantes  nos ambientes artístico-cultural, entre outras medidas que,  juntas,  injetaram  doses de   muito otimismo e euforia na pacata “vila Brasil”  daquela época. 
Tampouco nos falta razão para admitir que a comitiva real, a despeito da fuga, apressada, diante da invasão Napoleônica, colocara em ação um antigo plano B, reservado, estratégica  e preventivamente,   para  se evitar um provável novo ataque ao território português.   Afinal, Portugal passara 60 anos sob o domínio da Espanha, e nada garantia que estivesse imune e protegido dessas “intempéries”.   Portanto, nesse caso, o “Brasil” poderia ser uma saída à altura.  Para se convencer disso, na opinião da Professora de história Francisca Nogueira Azevedo (UFRJ), basta que se atenha às palavras do diplomata português Luis da Cunha, ainda no começo do século 18, dirigidas à Sua Majestade D.João V, numa ‘carta quase profética’:  “ Considerei que S.M. se achava na idade de ver potentíssimo e bem povoado  aquele imenso continente do Brasil e nele tomasse o titulo de Imperador do Ocidente (...) Na minha opinião o lugar próprio de sua residência seria a cidade do Rio de Janeiro”. (grifo nosso). Segundo a historiadora, a idéia estendeu-se ao século 19,  e  encontrou em D.Rodrigo de Souza Coutinho, o chefe do Tesouro Real, um defensor ferrenho, como se pode avaliar nessas palavras “ Portugal não é a melhor parte da monarquia, nem a mais essencial. Depois de devastado por uma longa e sanguinolenta guerra, ainda resta ao seu Soberano, e aos seus povos, irem criar um poderoso império no Brasil”
Não nos faltam razões para inferir que a caneta- tinteiro real utilizada em 1808, mantinha-se embebida  dessa história, e por isso mesmo fora utilizada com uma certa maestria  por  D.João VI e sua equipe, quando, rapidamente, em solo brasileiro, não pouparam  tintas para traçar um novo colorido social, econômico e cultural nas terras brasileiras.  E por certo, os pigmentos dessa tinta    remontam  a quatro séculos, pois em  6 de fevereiro de 1608,  nascia em Portugal, o Padre Antônio Vieira que, ainda criança, emigraria para o Brasil onde se prepararia para uma atuação expressiva sob os auspícios da Companhia dos Jesuítas.  Os ecos da sua brilhante participação estão presentes  em, praticamente, todos os campos de exigência lúcida, seja como diplomata, profeta, pregador, missionário, literato, entre outros, e ainda permanecem sob atenção e estudos.  É de se supor, portanto,  que essa “voz”  capaz de reverberar nas terras do Brasil e da Europa, ora  nas  singelas aldeias indígenas, ora nos mais renomados  púlpitos de pregação religiosa, ou ainda, nos sofisticados recintos palacianos, tenha avançado o suficiente para garantir  brilho à tintura real, dois séculos à frente,  quando  a Corte portuguesa com aproximadamente 15 mil pessoas,   aqui aportou às pressas, fugindo  da iminente invasão francesa de Napoleão Bonaparte.

Do Padre Vieira, basta dizer,  para surpresa dos leitores  “que seus escritos de quase quatro séculos podem ser mais reveladores da atualidade do que as notícias do jornal do dia”,  como assinala o professor Francisco Maciel Silveira (USP), na coluna de Francisco Quinteiro Pires, da Agência Estado.   Duzentos anos depois de Vieira,   D.João VI e sua equipe,  ainda que sem a lucidez,  a visão holística do seu antecessor,  sem a  sua formação Jesuítica,  a erudição política e econômica, e até mesmo,  carentes  da habilidade do artista-escultor,  como pregava Vieira sobre o papel do Missionário,   ao que parece, o séqüito real deteve-se apenas no mundinho das possibilidades reais,  das necessidades primárias e prementes da colônia (o que não foi pouco, obviamente.)...  Mas, ao agir assim com a sua caneta-real, Sua Majestade  pareceu cumprir de uma só tacada dois aforismos que lhe caem como uma luva. Um deles, do escritor inglês, Christopher Lee, ao nos dizer que “ As pessoas fazem a história, mas elas nem sempre se dão conta do que estão fazendo”. O outro, do próprio Padre Antônio Vieira que, no campo das probabilidades, parece ter saído dos antigos tinteiros,  que o Pregador, por certo,  sempre deixava disponível para os seus momentos repletos de engenhosidade de raciocínio e clareza de estilo. Com sua “pena de ave”,  Vieira nos legaria um recado que, não custa reiterar, traz consigo um certificado de validade universal e atemporal:  “ Não tem de olhar para o céu, mas para as cegueiras do mundo”. O seu cumprimento, entretanto,  faz exigência de verdadeiras canetas reais, aquelas simples, práticas, sem rococós, destinadas unicamente a produzir  o  encantamento  e as idéias concretas,  passíveis de  serem  desdobradas ao infinito,  em todas as suas possibilidades,  para  se  atingir o  “bem-comum” dos súditos de todas as  gerações.


* Crônica classificada em 2o. Lugar no concurso da Academia de Letras dos Campos Gerais – Ponta Grossa/PR – Concurso “ 200 anos da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil ” (2008 )


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

“O BORBULHO DAS ÁGUAS”


Fatiar a água
e servi-la aos pedaços...
Agarrar o tempo sob os braços e adulá-lo
tão eternecido como se afagasse um filho
ao som de um  estribilho de ninar...

Fatiar a água
e servi-la em porções...
Celebrar o instante  em banho-maria:
reservar no mais sublime dos corações,
o calor  de dois corpos que se atraem
em frenética paixão...

Fatiar a água
e torná-la hóstia...
E então ser capaz da pura calma
ao comer o próprio corpo
e sorver-lhe a primazia da alma:
enxergar a revelação do fugaz,
a transitoriedade da vida,
o frágil e a sensibilidade
em seu ápice de concretude.

Fatiar a água
 e assentá-la, ainda incandescente,
por entre as labaredas do fogo.
Dominar na fervura, os desejos do corpo
e da alma:  traduzir  em gestos nus
a ansiedade candente no âmago 
da mais profunda calma.

Fatiar a água
e conduzi-la em carruagens-origami
pelas galáxias infindáveis  do universo...
tocar na razão e no existir de todas as formas de vida,
e  traduzi-la  sem meias palavras:
trincar o passado...ruir o presente
e reinventar o Avatar  do novo futuro.

Fatiar a água
e  esculpi-la como um barco-navegante
aos  mares de si mesmo:
rumo à terra dos homens dignos,
à espraiada da inocência e  compreensão,
rumo ao país de todos os amores.

ESTUPOR (mensagem intergaláctica)




Ando à míngua, 
trago comigo todas as  línguas-mortas
na ponta da minha língua.
Uma outra linguagem, o que sou:
surda-muda.
Ando à míngua...
à espera de um aceno no reino do universo,
e então serei farto em prosa e verso:
Vou me saciar a pleno pulmões,
e não há de estuporar essa íngua,
pois recusarei o banquete de Pélope
e  não viverei o suplício de Tântalo*...
Nunca mais a fome, nunca mais a sede...
Seguirei ímpar, multilíngüe, como sei, como sou,
 incansável decifrador de hierógrafos,
sou a nave-mãe levando o meu epitáfio para o futuro:
“saudações, quem quer que seja.
Trago boa vontade e paz através do espaço”**





(*) Tântalo, filho de Zeus, casado com Dione, teve três filhos.  Ousando testar  os deuses, serviu-lhes a carne do próprio filho Pélope. Lançado ao Tártaro, num vale com abundante vegetação e água,  foi castigado  a não poder saciar sua fome nem a sede. 
(**) Paráfrase à mensagem da Missão Espacial Européia em pesquisa sobre a origem do sistema solar e a vida na terra, cuja nave-mãe recebeu o nome de Rosetta.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

terça-feira, 4 de agosto de 2015

SALTO SEM BARREIRAS

Conto de Celso Lopes, Escritor


Em casa quando a situação ficava tensa era fácil de saber: a Mãe se recolhia num canto do sofá da sala folheando sem parar as mesmas páginas de um livro do Machado de Assis; o Pai, o Pai rondava de um lado pra outro, pensativo e silencioso; e eu, de violão em punho, acelerava as batidas, tremulando acordes desconexos e desafinados... enfim, criando um som alto e desigual, cujo objetivo era apenas atiçar o ambiente daquele espaço chamado “lar” com as minhas provocações. O violão parecia dizer em alto e bom som: “- Ei, Dona Nancy, você não engana a ninguém... largue esse maldito livro e grite as suas mágoas para o seu marido, vamos!” A Mãe tremia sob a minha música desconcertante; era visível que resistia, o quanto possível, em tocar fogo no lar-doce-lar quando se tratava do Pai. Pode-se dizer que o romance da “Dona Nancy” com o Pai, nascido de uma acirrada disputa com uma tal de “Mariana”, esbarrava nas artimanhas criadas pelo mestre da literatura. Se substituíssemos apenas os nomes, teríamos a história de ambos recontada pela psicologia endiabrada do Bruxo do Cosme Velho: “O 'Pai' quis sinceramente fugir, mas já não pode: 'Dona Nancy', como uma serpente, foi se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou- lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, susto, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima das ervas e pedregulhos.

Para a Mãe, “Dona Nancy”, aquelas ausências acumuladas do Pai, que antes lhe soavam como um sussurro carinhoso, agora explodiam. Explodiam e apunhalavam. E, por certo, doíam-lhe como nunca! Em casa quando a situação ficava, assim, tensa, eu, sem saber o porquê, gritava aqueles acordes no violão e disparava as minhas farpas todas contra o Pai. Fel puro e desprezo, as minhas palavras. Nascia em mim uma crueldade mesquinha que me levava a provocar o Pai, a ironizar, a trucidá-lo até, se preciso. Tantas vezes, tanto fiz. E tanto fiz, tanto fiz, que naquele dia a Mãe também soltou todos os seus demônios contra ele. “Dona Nancy” aliou-se a mim disparando estilhaços por todos os lados, os seus golpes mais profundos. Palavras duras e cruéis as de uma esposa para o seu homem. A Mãe esbravejava, parecendo tirar das páginas do livro aberto em suas mãos, todos os seus ais, as suas mágoas e as suas dores: “- O Júnior tem razão... Pra você, somente os amigos, os amigos e as competições!” A Mãe falava em altos brados e eu sorria por dentro. E vitorioso, como se desafinasse a minha voz acompanhando o violão, eu insistia sem trégua que ele queria mesmo era fugir da gente; o que o Pai pretendia mesmo era livrar-se da sua mulher e do seu filho! Instigada por essa infâmia carregada de inveja e rancor criados por mim, a Mãe pegou o jeito, soprou forte e avivou as brasas, e depois, depois entornou de vez a água fervente:
...Comigo? ...comigo apenas alguns minutos, sempre sem uma palavra de carinho e sem tempo algum, só cobranças e cobranças... Mandou lavar o meu uniforme? Viu minha chuteira? Cadê meu tênis? Eu?... Eu que me lixasse nesse abandono, nessa sala que mais parece um mausoléu ... Antes, eu juro, antes eu tivesse deixado você com a espevitada da Mariana, melhor seria... À noite, muitas noites, quando eu mais te queria, me via ali, sozinha. Eu no meu quarto, o Júnior no dele. Sozinhos, os dois. Sem homem, sem pai, sem palavra de amigo. Sempre sozinha, eu. E você? Você lá no bem-bom, comemorando vitórias... E você? Você ali, na cama, dormindo, roncando de cansaço...Pior, um homem sem vida pra mim! Sem os desafios que eu queria! E eu, a boba, a boboca, a vida inteira na platéia, impotente, me remoendo, assistindo a essa sua epopéia olímpica maldita. Maldito, você!

Naquela tarde, enquanto a Mãe espezinhava o seu homem, o Pai extravasava sua raiva, fazendo desabar sob nossos pés ali na sala, todos os seus troféus esportivos, as suas medalhas, as fotografias emolduradas, os seus diplomas e os certificados... Eu, sem lhe dar a trégua exigida, acentuando o ritmo frenético do meu potente instrumento, fulminava-o com minhas setas certeiras e venenosas. Palavras cruéis as de um filho para um pai; dardos pontiagudos que o feriam sem dó, como se partissem de um atirador de facas que mirasse todos os seus punhais no coração da vítima... Eu repetia, repetia até que me faltasse o fôlego, como numa competição em busca de recordes: “- Medalhas, troféus, diplomas...grande merda, tudo isso! Enquanto você vivia nessas malditas competições esportivas, eu ficava aqui, sozinho, sem pai, sem amigo, sem ninguém.... Às favas, esse tal de Moses! E você ganhou o quê, me diga? Nada! Fez, fez e morreu na praia!

Em meio à guerra que lhe fazíamos, aquilo que durante anos fora para ele os “louros da vitória”, agora, acomodavam-se de qualquer jeito em duas caixas grandes de papelão. O Pai sem dizer uma palavra, como um autômato, pouco-a-pouco livrava as nossas paredes do apartamento, as prateleiras e as duas estantes da sala, de tudo aquilo que o mundo esportivo lhe dera; e odiando a Mãe e a mim, descia, furiosamente, as escadarias do prédio pra depositar todas as suas conquistas no suporte da lixeira, junto à calçada da rua. Foram raras oportunidades em que vimos o Pai numa competição; quem o conhecia, no entanto, quem conhecia aquele esportista polivalente, de excelente compleição física, um atleta determinado e talentoso, nascido no mesmo dia, mês e ano da lenda-viva do atletismo mundial, Edwin Moses, garantia que dele, o Pai absorvera ingredientes imprescindíveis: a velocidade, a força muscular e a capacidade de treinar, treinar e treinar... Hoje, ali, junto ao parapeito da janela do sétimo andar, o olhar do Pai nos evitava, mas mantinha sob vigília todos os seus troféus amontoados lá embaixo, dentro das caixas de papelão sobre o suporte da lixeira. Olhar não é bem o termo, eu jurava que naquele momento, o Pai tinha visão de águia, capaz de contemplar, minuciosamente, cada um daqueles objetos. Abrisse a boca pra dizer, o Pai repetiria exaustivo que a medalha de “natação” fora conquistada na raia olímpica do Tênis Clube, quando fora batido apenas pelo tricampeão Ruizinho Leme! Abrisse a boca pra contar, o Pai diria que a medalha, cromada em ouro 18, estava lá embaixo, jogada, descartada na lixeira da rua. Depois, depois diria que estava lá também a medalha do “futebol”, quando emplacara três a zero nos Pequeninos do Jóquei, e com isso, fora o campeão e artilheiro daquele ano! A Mãe lia pela milésima vez o conto “A Cartomante”, sempre embevecida pela história de uma tal “Nancy”; e talvez, como a personagem, a Mãe também sofresse, remoendo-se em lamentos pelo que dissera ao Pai. Por isso, dissimulando o tanto exato, a Mãe seguia a tudo com os olhos pregados no livro, mas era visível, era nítido pelos seus gestos, que estava a poucos instantes de se redimir. O Pai, o Pai por certo também enxergou entre as suas “honrarias”, lá embaixo, o troféu Hélio Rubens, homenagem a uma referência do basquete brasileiro, que ele conquistara na partida final contra o dream team do Colorado A.C.; O Pai não se cansava de nos dizer que virara o jogo com duas cestas-de-três, o que lhe valera o reconhecimento de toda a arquibancada, inclusive dos adversários!...O troféu, agora, também estava lá na lixeira, tal qual o do “handebol”, que o Pai ganhara numa partida memorável, 3 segundo ele, contra o Paineirão F.C., quando enfiou um, dois, três... quinze espetaculares arremessos indefensáveis contra o goleiro Gilmar Moreno!... Vez ou outra, os olhos aquilinos do Pai voltavam-se para o interior da sala rastreando o vazio das paredes, a limpidez das estantes e a profundidade das prateleiras... Por vezes, o Pai mirava seus olhos reticentes endereçados a mim e à Mãe, mas em poucos instantes deixava-nos ao abandono, negligenciava-nos, demonstrando que na lixeira da rua continuava a razão de ser de toda a sua vida. Apoiado no beiral de uma das janelas da sala, e agora dedilhando com ligeira suavidade as cordas do violão, eu pude ver quando os ruídos da rua estamparam-no um sorriso no rosto. O menino, visto do alto, não tinha mais de 12 anos. Primeiro, o garoto olhou para os lados, depois subiu os olhos como quem tivesse algo a conferir naquele edifício a sua frente. O Pai, mais visível ali na janela principal, esquivou-se para a cortina, temeroso de algum confronto; pelo jeito o Pai queria apenas que alguém ficasse com tudo aquilo, de maneira a gostar, a amar, acarinhar... E lá estava o menino, ora puxando das caixas um troféu, ora uma fotografia, ora uma medalha... Chegou até mesmo a apanhar o porta retrato do Edwin Moses. Abandonou-o rápido, por certo desconhecia o famoso atleta mundial dos 400 metros com barreiras... a lenda-viva! O menino, agora, retirava da caixa um quadro emoldurado. O Pai, com a voz embargada, com os olhos marejados ali na sala, e sem se dar conta da minha irritante melodia, como se ignorasse a nossa presença ou nunca a tivesse percebido, o Pai soletrava baixinho, de cor e emocionado, como se acompanhasse a leitura em voz alta nos lábios do garoto: “Conferimos o certificado de Honra ao Mérito ao atleta Jairo Santos Silva por sua participação nos 50 metros com barreiras...” O olhar do garoto voltou-se, outra vez, para o alto do edifício e, prudente, o Pai recolheu-se para fora do beiral. Mas, fora mesmo a medalha, aquela cromada em ouro 18, a de natação, que roubara o interesse do menino. Num relance, como quem subisse a um pódio imaginário, vestiu-a sobre o pescoço, e alegre como nunca, lá foi ele feliz, rua afora, com a medalha no peito, simulando braçadas numa raia olímpica invisível... O sorriso do Pai, naquele instante, inundava o ar. Respirando emoção e entretido até a medula, o Pai só voltou a si diante da minha nova ofensiva, com as batidas fortes, estridentes e cortantes do violão, como a lhe dizer com o dedo em riste: “Vai ficar aí parado feito estátua? O estrago já está feito, agora é consertar ou quebrar de vez! Esses prêmios estão mesmo no lugar merecido: sabe onde? No Lixo! Lá embaixo, na lixeira da rua! Quem sabe, agora, daqui pra frente, você arruma um tempo pro seu filho e pra sua mulher, hein?” Depois disso, um longo e interminável silêncio se interpôs entre nós ali na sala. Em gestos lentos, lentíssimos até, o que o Pai fez foi matar dois coelhos de uma só vez: o seu filho e a sua mulher, agora, teriam de amargar uma culpa pela vida inteira; carregar a ferida exposta, eternamente, como uma chaga viva! Um revide de pura vingança contra a nossa indiferença pelas suas competições esportivas. E ali, bem ali diante do nosso nariz, o Pai, como quem fosse subir ao pódio sob flashes, aplausos e chuva de pétalas... O Pai, do alto de seus 1,80 metros, e com a jovialidade de cinco décadas, tentou ainda, em prantos, impedir que os homens da Limpeza Pública brutalizassem suas conquistas, mas a voz soou-lhe débil, frágil, como um sussurro desesperado... E naquele instante, ainda que a Mãe tentasse um grito impeditivo: “ - Não, Jairo, pelo amor de Deus, isso não!”, e eu, emudecendo o instrumento sob minhas mãos trêmulas, eu lhe endereçasse uma palavra profunda clamando por tradução: “Calma, Pai!...Calma, Pai!..Calma!”; o Pai, como quem se preparasse para uma enterrada definitiva no garrafão, ou para chutar um pênalti sem qualquer chance de defesa para o goleiro, ou ainda, cortar em diagonal a bola suplicante da rede, ou quem sabe, num esforço sobre-humano, deixar à deriva todos os seus competidores na pista com barreiras, à la Moses. O Pai, silenciosamente, sem dizer uma palavra sequer, sem tréguas ao cronômetro da vida, num ímpeto de agilidade e impulso, lançou-se janela abaixo em busca de si mesmo; precisamente, trinta e dois metros e vinte e três centímetros, como atestaria a Perícia Técnica no laudo do exame necroscópico.


NOTA: As referências ao autor Machado de Assis são do conto “A Cartomante”.